Um Dom Quixote "miserável" em um país das maravilhas: da necessidade da literatura às adaptações literárias
As sociedades mudam os seus valores à medida que evoluem. Entende-se por evolução aí as necessidades objetivas que surgem a partir de demandas novas oriundas estas das transformações sociais provocadas pelos meios de produção de um determinado tempo. Não é de hoje que o homem tenta compreender seu lugar no mundo e sua relação com o tempo em que vive. Para Plotino, antigo filósofo grego da tradição platônica, o tempo só pode e deve ser medido a partir da eternidade. Isso porque, na visão do filósofo, a divisão do todo (o UNO) em partes seria responsável pela perda da sua essência. Teoria claramente idealista e que jogaria no ocidente uma pá de cal nas primeiras formulações materialistas daqueles filósofos atomistas Leucipo e Demócrito, anteriores a Sócrates. No caso deste, Platão inverteria inclusive a sua lógica ao se "apropriar" de sua teoria dos elementos.
Somente no século XVI o termo materialismo seria (re)pensado de forma consciente pelo matemático alemão Gottfried Leibniz. Nesse campo das ideias filosóficas sugeriu-se o conceito no século XVI, porém, somente no século XIX a escola materialista retornaria com força, dois mil anos mais tarde, graças às formulações teóricas de Karl Marx e Friedrich Engels.
Karl Marx, aliás, acertou em cheio ao inverter a lógica hegeliana, acrescentando-lhe um elemento poderoso: o materialismo. Hegel superestimou a razão especulativa em relação ao próprio processo social. Em Introdução à crítica da Filosofia do direito de Hegel, escreve Marx: “É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser derrocado pelo poder material; mas também a teoria se transforma em poder material, tão logo se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem, e argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical. Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem”. (Grifo meu).
Trazendo essa discussão de Marx para o campo "religioso-filosófico-literário" (iniciemos aqui uma brincadeira), subvertemos um pouco seus pressupostos retornando para o nosso ponto de partida: a antiga civilização grega. E o que nos vem à mente entre nós, estudantes e / ou leitores de literatura, antes mesmo de Demócrito, Aristóteles ou Platão senão sua mitologia? Dentre os mitos abordados na antiga religião helênica talvez um dos mais conhecidos seja o de Prometeu. Mas quem ou que foi Prometeu?
Do grego Προμηθεύς: Promēthéus, "antevisão" ou “premonição”, foi um Titã da segunda geração. Filho da ninfa Clímene com Jápeto, neto de Urano (que comeu os filhos, vomitando-os depois) e irmão de Atlas, Epimeteu (aquele que via aquém, o inverso de Prometeu, que via além) e Menoécio, é conhecido pela sua inteligência e astúcia e por ser um defensor da humanidade ao roubar o fogo de Héstia*, dando-os aos mortais. Eis a narrativa racional que o antigo homem grego formulou para o domínio do fogo, cujo desfecho todos nós o conhecemos: Zeus, que temia que os mortais ficassem tão poderosos quanto os próprios deuses, o teria então punido por este crime, deixando-o amarrado a uma rocha por toda a eternidade enquanto uma grande águia comia diariamente seu fígado — que se regenerava no dia seguinte. Tempos depois foi liberto, mas isso é assunto para outras conversas.
É bastante interessante essa narrativa, principalmente pressupondo que, para os gregos, fora Prometeu aquele quem os libertou do julgo completo dos deuses, concedendo-lhes algo distinto do que o cristianismo trataria por livre-arbítrio, mas dando-lhes a ferramenta necessária para sua libertação, similar ao que propõe Marx no que concerne ao papel da teoria: levar as massas ao movimento assim que por elas assimilada, transformando-se em poder material e em ferramenta de libertação do julgo dos seus opressores. O maior pensador que a humanidade já conheceu que me desculpe a tacanhez dessas reflexões, mesmo porque seu herói predileto fora o gladiador Espártaco, de carne e osso.
Brincadeiras à parte, penso ter ficado claro o intuito deste preâmbulo. As filosofias e mitologias greco-romana, assim como outras mitologias importantes, tais quais as dos povos originários das Américas**, as africanas, egípcia etc estão não somente temporalmente e espacialmente afastadas de nós, mas também – em boa medida – culturalmente. Dessa forma, poderíamos desde aí categorizar que a tradução e a adaptação das obras literárias, filosóficas, místicas, religiosas, os mitos... para públicos receptores distintos são não somente importantes, mas necessárias à compreensão e à disseminação não somente desses cânones, mas igualmente daquilo que nos unifica: a compreensão das nossas características mais humanas vista por meio da forma diferente (mas nem tanto) de como fazemos nossa história.
É importante salientar que Antonio Candido, sempre genial, qualificou de original a leitura “mal feita” que os intelectuais do parnaso brasileiro fizeram de escritores do romantismo francês, senão estou enganado. O que para muitos significaria um defeito artístico, para o crítico simbolizava, em boa medida, originalidade na obra final. E com razão, ainda mais se tratando dos primórdios de nossas letras.
Milton Santos, grande geógrafo brasileiro reconhecido mundialmente pela profundidade de seu pensamento, foi enfático ao afirmar que “A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem enxergar o que os separa e não o que os une.” Li pouco do fundador de nossa geografia, mas do que li me incomodou, no bom sentido do termo. A particularidade com que trata de conceitos como Imperialismo, por exemplo, ampliaram-me não a noção do conceito em si, mas de um período histórico importante para a humanidade: o início do capitalismo mercantilista.
Todavia não é disto que falamos, não é mesmo? Nem por isso o citamos. É que M.S. nesta frase conhecida trata de um conceito central para esta discussão, já elencado por mim em outra ocasião, inclusive em um texto didático sobre o tema: as ideologias (link para o texto aqui). E aí entra a literatura (e a arte), com o seu potencial iconoclasta e sua capacidade de constantemente se reescrever graças ao seu material de trabalho: o ser humano, com suas particularidades (vistas de dentro para fora, forçando-nos à empatia e à aproximação destas diferenças), e também nossas semelhanças.
Daí a necessidade também da arte e da literatura. E de difundi-las, proliferá-las. Mas como fazer isso em larga escala, principalmente aos iniciantes, e mais ainda aos jovens, ainda mais neste século midiático, de narrativas curtas, vorazes, focadas em vídeos de 1 minuto, sem adaptá-las, principalmente os clássicos ou aquelas obras de “difícil digestão”, como James Joyce, Guimarães Rosa e por aí vai? E quando me refiro às adaptações tanto faz que sejam em livros, quadrinhos (as HQs), audiobooks, vídeos na internet ou para o cinema. Pouco importa a plataforma desde que se traga ao público contemporâneo obras literárias e de arte importantes para a humanidade. Quantos de nós lemos Homero em prosa, em edições pequenas, ilustradas, curtas e de fácil acesso no ensino médio? Atire a primeira pedra quem nunca conheceu um clássico por meio do cinema antes de lê-lo? Quantos de nós conhecemos - nem que por nome - estas narrativas graças tão somente às adaptações do cinema e / ou da televisão? Muitas vezes desprezamos, é verdade, porém quantas vezes nos aproximamos da narrativa pelas adaptações? Afinal, quando bem-feitas exercem bem a sua função: transportam o leitor / espectador / ouvinte para o universo mágico da obra original, tornando-o mais aberto e receptivo àquele universo e instigando-lhe a passos maiores e mais promissores, dentro inclusive de um universo literário mais amplo.
Notemos contudo – sem querer polemizar – que salientei a adaptação bem-feita como aquela a transportar o leitor para um universo distinto do seu. Não o inverso. É importante explicar melhor esta ideia. O que seria afinal uma tradução / adaptação bem-feita? Em suma, aquela que não incorresse no erro quase sempre intencional de transportar à personagem protagonista da trama (ou à própria trama como um todo) valores bastante distintos àqueles da obra original, como faz as adaptações de Walt Disney, por exemplo. Afinal, em grande medida qual a distinção de caractere entre Mulan, a guerreira chinesa que vai à guerra, Pocahontas, a indígena americana que fez fama nos EUA, e Alladin, o personagem árabe de As Mil e uma Noites? Aprofundando mais a discussão: quais os valores gerais inseridos nestas três narrativas e quais suas diferenças se comparadas a outras franquias do estúdio como Miney e Mickey e A dama e o vagabundo? São valores distintos daqueles que a Disney defende, eminentemente burgueses, ou Mulan traz em seu cerne características de uma obra com qualidades épicas da China medieval?
Não precisamos de um olhar arguto para percebemos que entre a “América virgem”, a China medieval e os Estados Unidos capitalista haja similitudes de caráter e de valor que são bastante distintos nas obras originais ou em suas personagens. Eis um aspecto bastante negativo e que afasta – invés de aproximar – jovens contemporâneos das narrativas de partida. A esse aspecto talvez Alladin consiga se distinguir. E não por se tratar de uma adaptação que escape às fórmulas da indústria cinematográfica estadunidense (ver texto sobre ideologias referendado anteriormente), mas por trazer certo aspecto mágico que se sobrepõe à própria obra: as noites árabes e todo o encanto que ainda é capaz nos proporcionar. E talvez por este aspecto, alguém se sinta atraído em buscar o "verdadeiro" Alladin.
Subscrevo Marx: não é pela literatura que acabaremos com a exploração, mas ela pode nos ser a porta de entrada para que compreendamos o mundo e suas contradições. Isso se nos deixarmos levar pelo seu universo, é claro. Que venham as adaptações nos mostrar as similitudes entre a mitologia grega e os deuses do candomblé africano, ou entre a mitologia egípcia e as estórias da mitologia cristã. E que venha a literatura nos descortinar narrativas diferentes, com suas cores, particularidades e gostos, nos mostrando que há diferenças entre os homens e que nem todas são saudáveis, precisando algumas ser enfrentadas e superadas. Estará aberta então a via para que nos compreendamos a partir de nossas semelhanças, vislumbrando em nossas diferenças não o paródico, mas o sensível que nos faz humanos, com nossos problemas a serem resolvidos e com a necessidade de buscarmos soluções (espero que de classe) para resolvê-los. Que assim seja!
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* Aqui merece uma nota. Héstia era para os gregos a deusa dos lares. E não à toa, já que, em épocas remotas, antes dos deuses se tornarem universais, ou mesmo expressões típicas de um povo, como as divindades do Olimpo eram para os gregos, eram eles pessoais. Ou seja, cada lar cultuava, de maneira individual, uma divindade, evolução de uma prática oriunda de um tempo ainda mais remoto, onde as pessoas enterravam na terra seus mortos, levando-os comida e bebidas de tempos em tempos visando a saciar-lhes suas necessidades. Neste processo de culto à uma divindade privada, o fogo exercia um papel central, sendo mantido aceso dentro das casas. Essa prática se manteve mesmo após superado esse estágio embrionário das religiões, sendo frequentes em todo o decorrer dos impérios grego e romano. Para compreendermos o início das religiões e o papel central do fogo, uma obra interessante é A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges.
** Muito interessantes são os mitos a respeito do fogo dos povos originários da região brasileira. Embora não haja sacrifícios divinos como os de Prometeu, que usou da astúcia para prover a humanidade com este elemento libertador, há também a esperteza ao enganar os animais que portavam o fogo para que a humanidade pudesse caminhar e se desenvolver. Em suma, nas mitologias ameríndias, o fogo também chegou ao homem por meio de um terceiro e foi conquistado igualmente graças à astúcia, muito comum nas aventuras da mitologia grega.
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