O que pode a Literatura?
Texto extraído do livro A Literatura em Perigo, de Tzvetan Todorov. In: TODOROV, Tzvetan. A Literatura em perigo. Tradução: Caio Meira. se. Rio de Janeiro: Diefel, 2009.
Em sua Autobiografia, publicada logo após a sua morte, em 1873, John Stuart Mill narra a intensa depressão da qual foi vítima aos 20 anos. Ele se torna "insensível a toda alegria, assim como a toda sensação agradável, num desses mal-estares em que tudo o que em outras ocasiões proporciona prazer se torna insípido e indiferente". Todos os remédios que experimenta se mostram ineficazes, e sua melancolia se instala de forma contínua. Ele continua a cumprir mecanicamente os gestos habituais, mas sem nada sentir. Esse estado doloroso se prolonga por dois anos. Depois, pouco a pouco, se dissipa. Um livro que Mill lê por acaso naquele momento tem papel particular em sua cura: trata-se de uma coletânea de poemas de Wordsworth. Mill encontra no livro a expressão de seus próprios sentimentos sublimados pela beleza dos versos. "Eles me pareceram ser a fonte na qual eu podia buscar a alegria interior, os prazeres da simpatia e da imaginação que todos os seres humanos podem compartilhar [ ... ]. Eu precisava que me fizessem sentir que há na contemplação tranquila das belezas da natureza uma felicidade verdadeira e permanente. Wordsworth me ensinou tudo isso não somente sem me desviar da consideração dos sentimentos cotidianos e do destino comum da humanidade, mas também duplicando o interesse que eu trazia por eles."
Aproximadamente 120 anos mais tarde, uma mulher ainda jovem se encontra numa prisão de Paris, presa por ter conspirado contra o invasor alemão. Charlotte Delbo está sozinha em sua cela; submetida ao regime de "Noites e nevoeiro"*, ela não tem acesso à leitura. Mas a detenta da cela de baixo pode retirar livros da biblioteca. Então, Delbo tece uma corda com fios retirados do seu cobertor e faz subir um livro pela janela. A partir desse momento, Fabrice del Dongo** passa a ser seu companheiro de cela. Apesar de não falar muito, ele permite que ela interrompa sua solidão. Alguns meses mais tarde, no vagão de animais que a conduz a Auschwitz, Dongo desaparece, mas Charlotte ouve uma outra voz, a do Alceste, o misantropo***, que lhe explica em que consiste o inferno para o qual ela se dirige e lhe mostra o exemplo da solidariedade. No campo, outros heróis sedentos do absoluto lhe fazem visita: Electra, Don Juan, Antígona. Uma eternidade mais tarde, de volta à França, Delbo sofre para voltar à vida: a luz cegante de Auschwitz varreu toda ilusão, proibiu toda imaginação, declarou falsos os rostos e os livros ... até o dia em que Alceste retorna e a arrebata com sua palavra. Em face do extremo, Charlotte Delbo descobre que as personagens dos livros podem se tornar companheiras confiáveis. "As criaturas do poeta", ela escreve, "são mais verdadeiras que as criaturas de carne e osso, porque são inesgotáveis. É por essa razão que elas são minhas amigas, minhas companheiras, aquelas graças às quais estamos ligados a outros seres humanos, na cadeia dos seres e na cadeia da história.
Não vivi nada tão dramático quanto Charlotte Delbo, tampouco conheci as agruras da depressão descritas por John Stuart Mill; no entanto, não posso dispensar as palavras dos poetas, as narrativas dos romancistas. Elas me permitem dar forma aos sentimentos que experimento, ordenar o fluxo de pequenos eventos que constituem minha vida. Elas me fazem sonhar, tremer de inquietude ou me desesperar. Quando estou mergulhado em desgosto, a única coisa que consigo ler é a prosa incandescente de Marina Tsvetaeva; todo o restante me parece insípido. Outro dia, descubro uma dimensão da vida somente pressentida antes e, porém, a reconheço imediatamente como verdadeira: vejo Nastassia Philipovna através dos olhos do príncipe Míchkin, "o idiota" de Dostoiévski, ando com ele nas ruas desertas de São Petersburgo, impulsionado pela febre de um iminente ataque de epilepsia. E não posso me impedir de me perguntar: por que Míchkin, o melhor dos homens, aquele que ama aos outros mais do que a si mesmo, deve terminar sua existência reduzido à debilidade, enclausurado em um asilo psiquiátrico?
A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. A literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurdamente reduzida do literário. O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenas pode ensinar o desespero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria condenada a desaparecer num curto prazo.
Como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é assim tão complexo), a experiência humana. Nesse sentido, pode-se dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto os maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade entre o primeiro saber e o segundo. Tal é o "gênero comum" da literatura; mas ela tem também "diferenças específicas". Vimos anteriormente que os pensadores da época do Iluminismo assim como os do período romântico tentaram identificá-las; retomemos suas sugestões – completando-as com outras.
Uma primeira distinção separa o particular e o geral, o individual e o universal. Seja pelo monólogo poético ou pela narrativa, a literatura faz viver as experiências singulares; já a filosofia maneja conceitos. Uma preserva a riqueza e a diversidade do vivido, e a outra favorece a abstração, o que lhe permite formular leis gerais. É o que faz com que um texto seja absorvido com maior ou menor grau de dificuldade. O Idiota, de Dostoiévski, pode ser lido e compreendido por inúmeros leitores, provenientes de épocas e culturas muito diferentes; um comentário filosófico sobre o mesmo romance ou a mesma temática seria acessível apenas à minoria habituada a frequentar esse tipo de texto. Entretanto, para aqueles que os compreendem, os propósitos dos filósofos têm a vantagem de apresentar proposições inequívocas, ao passo que as metáforas do poeta e as peripécias vividas pelas personagens do romance ensejam múltiplas interpretações.
Ao dar forma a um objeto, um acontecimento ou um caráter, o escritor não faz a imposição de uma tese, mas incita o leitor a formulá-la: em vez de impor, ele propõe, deixando, portanto, seu leitor livre ao mesmo tempo em que o incita a se tornar mais ativo. Lançando mão do uso evocativo das palavras, do recurso às histórias, aos exemplos e aos casos singulares, a obra literária produz um tremor de sentidos, abala nosso aparelho de interpretação simbólica, desperta nossa capacidade de associação e provoca um movimento cujas ondas de choque prosseguem por muito tempo depois do contato inicial. A verdade dos poetas ou a de outros intérpretes do mundo não pode pretender ter o mesmo prestígio que a verdade da ciência, uma vez que, para ser confirmada, precisa da aprovação de numerosos seres humanos, presentes e futuros; de fato, o consenso público é o único meio de legitimar a passagem entre, digamos, "gosto dessa obra" e "essa obra diz a verdade”. Ao contrário, o discurso do cientista – que aspira alcançar uma verdade de correspondência e se apresenta como uma afirmação – pode ser submetido de imediato a uma verificação, pois será refutado ou (provisoriamente) confirmado. Não precisamos esperar por séculos e interrogar leitores de todos os países para saber se o autor diz ou não a verdade. Os argumentos relacionados logo suscitam contra-argumentos: inicia-se um debate racional em lugar de se ceder à admiração e ao devaneio. O leitor do texto científico se arrisca menos a confundir sedução e exatidão.
A todo momento, um membro de uma sociedade está imerso num conjunto de discursos que se apresentam a ele como evidências, dogmas aos quais ele deveria aderir. São os lugares-comuns de uma época, as ideias preconcebidas que compõem a opinião pública, os hábitos de pensamento, as banalidades e os estereótipos, aos quais podemos também chamar de "ideologia dominante", preconceitos ou clichês. Desde a época do Iluminismo, pensamos que a vocação do ser humano exige que ele aprenda a pensar por si mesmo, em lugar de se contentar com as visões do mundo previamente prontas, encontradas ao seu redor. Mas como chegar lá? No Emílio, Rosseau usa a expressão "educação negativa" para designar esse processo de aprendizagem, sugerindo que se mantenha o adolescente longe de livros, a fim de afastá-lo de toda a tentação de imitar a opinião de outrem. Pode-se, entretanto, raciocinar de maneira distinta, já que os preconceitos, sobretudo os atuais, não precisam de livros para se instalarem de forma permanente no espírito dos jovens: a televisão já passou por lá! Os livros dos quais ele se apropria poderiam ajudá-lo a deixar as falsas evidências e libertar seu espírito. A literatura tem um papel particular a cumprir nesse caso: diferentemente dos discursos religiosos, morais ou políticos, ela não formula um sistema de preceitos; por essa razão, escapa às censuras que se exercem sobre as teses formuladas de forma literal. As verdades desagradáveis – tanto para o gênero humano ao qual pertencemos quanto para nós mesmos – têm mais chances de ganhar voz e ser ouvidas numa obra literária do que numa obra filosófica ou científica.
Num estudo recente, o filósofo americano Richard Rorty propôs caracterizar diversamente a contribuição da literatura para a nossa compreensão do mundo. Ele recusa o uso de termos como "verdade" ou "conhecimento" para descrever essa contribuição, afirmando que a literatura faz menos remediar nossa ignorância do que nos curar de nosso "egotismo", termo entendido como uma ilusão de autossuficiência. A leitura de romances, segundo ele, tem menos a ver com a leitura de obras científicas, filosóficas ou políticas do que com outro tipo bem distinto de experiência: a do encontro com outros indivíduos. Conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas, com a diferença de que podemos descobri-las interiormente de imediato, pois cada ação tem o ponto de vista do seu autor. Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo. Essa amplitude interior (semelhante sob certos aspectos àquela que nos proporciona a pintura figurativa) não se formula com o auxílio de proposições abstratas, e é por isso que temos tanta dificuldade em descrevê-la; ela representa, antes, a inclusão na nossa consciência de novas maneiras de ser, ao lado daquelas que já possuímos. Essa aprendizagem não i;nuda o conteúdo do nosso espírito, mas sim o próprio espírito de quem recebe esse conteúdo; muda mais o aparelho perceptivo do que as coisas percebidas. O que o romance nos dá não é um novo saber, mas uma nova capacidade de comunicação com seres diferentes de nós; nesse sentido, eles participam mais da moral do que da ciência. O horizonte último dessa experiência não é a verdade, mas o amor, forma suprema da ligação humana.
Será mesmo necessário descrever a compreensão ampliada do mundo humano, à qual ascendemos mediante a leitura de um romance, como a correção de nosso egocentrismo, assim como o deseja a descrição sugestiva de Rorty? Ou então como a descoberta de uma nova verdade de desvelamento, verdade necessariamente partilhada por outros homens? A questão terminológica não me parece ser de suma importância, desde que se aceite a forte relação estabelecida entre o mundo e a literatura, assim como a contribuição específica do discurso literário relativamente ao discurso abstrato. Aliás, como bem observa Rorty, a fronteira separa o texto de argumentação não do texto de imaginação, mas de todo discurso narrativo, seja ele fictício ou verídico, desde que descreva um universo humano particular diverso daquele do sujeito: nessa perspectiva, o historiador, o etnógrafo e o jornalista se veem ao lado do romancista. Todos participam do que Kant, no famoso capítulo da Crítica da Faculdade do juízo, considerava como um passo obrigatório no caminho para o "senso comum", ou seja, para nossa pró-pria humanidade: "Pensar colocando-se no lugar de todo e qualquer ser humano." Pensar e sentir adotando o ponto de vista dos outros, pessoas reais ou personagens literárias, é o único meio de tender à universalidade e nos permite cumprir nossa vocação. É por isso que devemos encorajar a leitura por todos os meios -inclusive a dos livros que o crítico profissional considera com condescendência, se não com desprezo, desde Os Três Mosqueteiros até Harry Potter: não apenas esses romances populares levaram ao hábito da leitura milhões de adolescentes, mas, sobretudo, lhes possibilitaram a construção de uma primeira imagem coerente do mundo, que, podemos nos assegurar, as leituras posteriores se encarregarão de tornar mais complexas e nuançadas.
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* Referência ao documentário de Alain Resnais, Nuit et Brouillard (1955), primeiro a abordar e mostrar ao mundo os horrores dos campos de concentração nazistas. O documentário é escrito e narrado pelo poeta e romancista Jean Cayrol, autor do livro Poèmes de la nuit et du brouillard (1945). A expressão "noite e nevoeiro" é retirada do decreto alemão Nacht und Nebel, que determinava o encarceramento em locais secretos dos acusados de conspirar contra o regime nazista. (N.T.)
** Fabrice del Dongo é o herói do romance A Cartuxa de Parma (1839), de Stendal. (N.T.)
*** Alceste é personagem da peça O Misantropo (1666), de Molière. (N.T.)
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