Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

O que é Literatura?

01.01.19

livro_523462210.jpg

A arte, dizem-nos, não é um espelho, mas um martelo. Ela não reflete, modela. Ensina-se o manejo do martelo com o auxílio do espelho sensível que registra todas as etapas do movimento.
Leon Trotsky
 
Nesta bela introdução ao seu livro Teoria da Literatura – uma introdução, Terry Eagleton elenca alguns dos questionamentos mais repetidos pelos estudantes e estudiosos da literatura. Afinal, o que é literatura?
 
Muitas têm sido as tentativas de tentar defini-la, e Eagleton inicia sua arguição com a possibilidade de a literatura ser tida como um texto com um caráter imaginativo, ou seja, nas palavras do próprio autor, “uma escrita imaginativa – no sentido da ficção – escrita que não é literalmente verídica”. Esta, de fato, é uma possibilidade – talvez a mais corrente e prosaica delas – de categorizá-la, na medida em que é geral conceituar-se literatura como um texto não verídico, uma mera estória que muitas vezes é lida para o deleite próprio, tampouco vista como “uma alegorização do real”. Contudo, esta simples distinção entre fato e ficção se mostra logo limitada não somente por ser insatisfatória e questionável, mas principalmente por não abarcar a complexidade com que é vista e lida uma obra tida como literária.
 
Para tanto, Eagleton nos recheia com alguns exemplos de textos que são considerados HOJE como literatura inglesa, mas que à sua época não foram escritos com este intuito, ou não eram vistos como textos literários. E tais exemplos perpassam de discursos fúnebres a epístolas de mães para filhas. De fato, para um leitor do século XXI que se depara com a Odisseia ou com as cartas de amor de Mariana Alcoforado, certamente que não terá dificuldades em categorizá-los como literatura, mesmo que não tenham sido estas as intenções de seus autores. Contudo, textos como o Gênesis ou mesmo os diálogos de Platão podem causar certa confusão, pois uns os lerão como ficção, outros como textos filosóficos ou factuais.
 
Ademais, o considerar a literatura como um texto criativo, imaginativo, é desconsiderar, por exemplo, toda a criatividade e toda a poesia das prosas de Gilberto Freyre, Friedrich Nietzsche e Leon Trotsky, para citar somente três exemplos.
 
Por isso, chega à conclusão de que para se tentar conceituar literatura talvez seja necessária uma abordagem totalmente distinta, muito mais científica que a primeira. E aborda conceitos e princípios previamente trabalhados pelos formalistas russos e bastante explicitados na obra Linguística. Poética. Cinema, uma coletânea de textos de Roman Jakobson, tais como o da literatura como um texto que emprega a linguagem de forma bastante peculiar. Ou, nas palavras de Jakobson, citado por Eagleton: uma “violência organizada da fala comum”1. Isto quer dizer que, ao transferirem a realidade material para o texto literário, os formalistas russos passaram a tratar o texto como uma joia preciosa2, dando ênfase não para o conteúdo, mas para a forma do texto. Em suma, ao aplicarem a linguística aos estudos literários e ao inverterem a forma como expressão do conteúdo, os formalistas inverteram a ordem: o conteúdo passou a ser a “motivação” para a “criação” do texto. Assim, obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Bom dia para os defuntos, de Manuel Scorza, O Exército de cavalaria, de Isaac Babel, ou mesmo Doutor Fausto, de Thomas Mann, não seriam alegorias de elementos sociais e históricos de seu tempo, ou de uma época. Pelo contrário: a sociedade e os acontecimentos políticos à época em que foram escritos é que propiciaram a criação dessas alegorias.
 
A despeito desta “visão unilateral”3, o método de análise formal estruturado pela escola formalista tem seus méritos, na medida em que, mantido dentro de limites razoáveis, pode ajudar a esclarecer as particularidades artísticas e psicológicas da forma, já que os formalistas “consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma, uma espécie de violência linguística: a literatura é uma forma ‘especial’ de linguagem, em contraste com a linguagem ‘comum’, que usamos habitualmente”4. Porém, para se identificar tal desvio, faz-se necessário identificar a norma da qual se afasta. Ou seja, a linguagem comum de um tempo, de uma época, não é a de outra. Assim, um texto prosaico do século XV, em decorrência de seu arcaísmo, pode soar extremamente rebuscado no século XXI, a ponto de talvez lhe ser auferido, no corrente século, o status de literário. Da mesma forma que um texto que causava certa estranheza há um século (literatura pornográfica, por exemplo) pode não causar mais hoje.
 
Assim, considerando como insofismável o argumento de que o discurso não pragmático é uma qualidade indiscutível do texto literário, isto acarretaria dizer, segundo Eagleton, que a literatura não pode ser definida de fato objetivamente, ficando esta definição a cargo da abordagem que o leitor resolve dar a esta ou àquela obra. Ou seja, sob esta ótica, superestima-se a maneira pela qual as pessoas se relacionam com os textos em detrimento de um conjunto de qualidades evidenciadas e atribuídas ao que se denomina “fazer literário”.
 
Contudo, ainda não chegamos a uma definição conclusiva do que seria literatura. Talvez poderíamos afirmar que literatura é um discurso “não pragmático”, já que não há aparentemente uma finalidade pragmática imediata? Eis outro questionamento levantado por Eagleton, que logo elenca suas limitações, já que esta linguagem autorreferencial, esta espécie de metalinguagem sugere que de fato literatura não possa ter uma definição objetiva, ficando a cargo do leitor determinar, por meio de suas experiências e expectativas, o que é ou não é literatura, e não da natureza daquilo que é lido.
 
Obviamente que esta qualidade traria muitos problemas para a classificação do literário, pois certamente que um geografo ou um engenheiro não leriam Os Sertões, de Euclides da Cunha, com o mesmo olhar de um historiador, nem tampouco com a mesma perspectiva que um professor de literatura. Contudo, se é verdade que muito do que é considerado literatura foi produzido na intenção de sê-lo, é bem verdade que outras obras não o foram. E se essa qualificação ocorre graças a mudanças significativas de valores sociais, não é verossímil a afirmação de que a produção do texto em si é bastante mais importante que sua própria produção. Se assim o fosse, poderíamos pensar literatura menos como um conjunto inerente de regras (artísticas, estilísticas…), do que como as várias (quase infindáveis) maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com a escrita.
 
Chega-se ao ponto de partida. Ou seja, nenhum dos conceitos previamente abordados é satisfatório para se definir o que é literatura. Então, Eagleton nos sugere uma quarta e última qualidade: a de que literatura possa ser aquele texto bem escrito, ou melhor, aquele texto escrito de maneira bonita, bela. Essa verdade, como é de se notar, parece um tanto inverídica, na medida em que se consideraria literatura a escrita que nos parecesse bonita. Gilberto Freyre, por exemplo, é “ótimo em seu gênero”; o mesmo não se pode afirmar de Octavio de Faria (ao menos ao meu ver). No entanto, este é considerado literatura; aquele não. Veja que este critério de escrita valorizada, além de bastante questionável e subjetivo, encerra em si uma consequência devastadora: a de que a literatura não é uma categoria objetiva, e de que tudo o que é literatura – em seu sentido mais “eterno” – pode deixar de ser a qualquer momento.
 
Embora todas as obras literárias sejam reescritas pelas sociedades que as leem, não é verdade que literatura seja apenas aquilo que desejamos chamar com tal. “Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão evidentes e inabaláveis quanto o edifício do Empire State. Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais.”5
 
 
----------------------------------------------------
1 Pelo caráter do texto, meramente “informal”, pretendo não me aprofundar nesta discussão. Lev Davidotch Bronstein, em seu livro, “Literatura e Revolução”, de 1923, escreveu um belo capítulo, intitulado “A escola de poesia formalista e o marxismo”, no qual explana as virtudes e os equívocos dos formalistas (inclusive usando como exemplos os intelectuais filiados ao partido bolchevique), comparando suas análises com o método materialista dialético, bastante distinto daqueles.
 
2 Se não estou enganado esta é uma expressão de Yury Tynyanov.
 
3 Relativizo a expressão porque não havia um desprezo completo por elementos externos à obra, mas pelo fato de os formalistas não considerem-no relevante para o trabalho crítico.
 
4 Eagleton, Terry. O que é Literatura. In: Teoria da literatura: uma introdução. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
 
5 EAGLETON, Terry. Op.cit., p.24.

 

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.