O meio de passar a mensagem é a mensagem
Seria coerente falar que um processo formador representa, no mínimo, uma via de mão dupla, porém cortada por outros caminhos que se intercruzam. Em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre salientou a importância dos pequenos córregos nos rincões do país, que ajudaram – e muito – no transporte de pessoas e de mantimentos necessários para a expansão da colonização europeia em nossa região. Teriam sido estes, e não os grandes rios, aqueles responsáveis pela enorme mobilidade de pessoas para o interior de nosso continente.
Eis uma alegoria interessante do que seria o processo de aprendizagem e ensino, já que ao processo de formação intelectual individual sobrepõe-se a formação espiritual, que é temporal e coletiva. Costumo dizer – com certo tom de galhofa, é bem verdade – que não existe o autodidata, aquele que aprende só, pois, mesmo que busque seu conhecimento de forma livre, de forma desimpedida das instituições de ensino e sem a ajuda de um terceiro, de um(a) professor(a), o verdadeiro conhecimento é polifônico e bastante dialético.
O contato honesto com o conhecimento pressupõe um diálogo nem sempre agradável, mas sim necessário; nem sempre saboroso, mas sempre nutritivo. Aprender – é bom que se diga – pressupõe sempre negar; somente negando-se o existente, a realidade, é que se avança o conhecimento. Einstein questionou os princípios que norteavam a física de seu tempo e construiu a mais bela teoria de sua área: a relatividade.
Darwin, mesmo religioso, jogou uma pá de cal no criacionismo, elevando a um patamar outro todo o conhecimento posterior. Não seria um sofisma chamá-lo de “assassino”. Sim, Darwin matou Deus com D maiúsculo, embora deuses proliferem aos montes em templos improvisados em galpões e salas de cinema pornô. Marx, que junto a Darwin e Nietzsche, formou a trinca mais genial do século XIX, partia suas leituras sempre da ideia feita da coisa, do objeto. Como Hegel, o velho parceiro de Engels considerava a ideia feita sobre um determinado objeto ou fenômeno também parte dele. Ninguém foi mais dialético que Karl Marx: a sua genialidade consiste justamente em adentrar (assim como Darwin) em seu objeto de estudo e, a partir dele, destrinchá-lo, desconstruindo cada conceito ou fragmento e reajustando a massa sobre os tijolos.
Acho ter me feito compreender: negar pressupõe avançar, progredir, desconstruir e destruir. É uma atividade conspiratória, contraventora mesmo. E que exige bastante labor, bastante suor. Mas que é gratificante, podendo ser libertadora desde que genuína. Rosa Luxemburgo, a quem o mundo pouco conhece infelizmente, alertou para o engodo da privatização do "conhecimento", quando ao afirmar que A Liberdade é quase sempre, exclusivamente, a liberdade de quem pensa diferente de nós.
Conclusão similar chegou Sartre em seu famoso artigo La République du silence, de 1944. Nele, o autor de O Ser e o Nada afirmou nunca terem os franceses sido tão Livres quanto à época da ocupação alemã. Este aparente paradoxo resulta de uma reflexão orgânica do autor sobre a realidade ao qual, de certa forma, se inseria. Afinal, por que diabos era livre um povo que tinha seus direitos suprimidos e sua liberdade destruída pelo Reich alemão? Ora, porque para Sartre – dialogando diretamente com Bertolt Brecht – cada gesto era um compromisso. Assim, a resistência – como qualquer outra coisa – significava uma escolha, sendo portanto um exercício de liberdade. Isso significava não renunciar à construção de sua própria existência quando os invasores queriam moldá-la, reduzindo-a a objeto passivo e sem forma.
Apesar de existencialista, Satre foi feliz em notar o caráter de resistência que há no ato de conquistar a liberdade. Isso mesmo: conquistar a liberdade! Qual Marx, ao que me parece, compreendeu naquele momento que não há liberdade sem negação e que esta surge a partir de um exercício dialético e conjunto de reflexão somados à ação, tarefas imprescindíveis ao ato de aprender. Em suma, que a teoria – material orgânico por excelência do conhecimento dialético – ganha forma, se transformando em ação quando internalizada pelas massas. Bem o inverso do Non, je ne regrette rien, hino daqueles tantos miseráveis franceses que foram complacentes e/ou colaboradores com o invasor. Covardemente, trocaram a liberdade por migalhas lançadas pelos nazistas.
Talvez estejamos aqui e agora fazendo um pequeno exercício dialético, à là Marx, pois chegamos a um novo e legítimo conceito de "conhecimento": aquele intrinsecamente ligado ao de resistência, afinal, livres são aqueles que resistem. E não há resistência sem transgressão; não há transgressão sem movimento (lembra da Rosinha? Pois bem, é dela também a frase clássica: quem não se movimenta não reconhece as correntes que o aprisionam). E sem este é impossível a negação, base para o conhecimento.
José Saramago, sempre genial, em bela entrevista (talvez rebatendo àqueles que não lamentam, como a canção interpretada por Piaf), foi cirúrgico:
Eu estava num restaurante em Lisboa e estava sozinho até, e de repente eu pensei: e se nós fossemos todos cegos? E depois, praticamente no segundo seguinte, eu respondi a esta pergunta que eu tinha feito: mas nós estamos realmente todos cegos (...) de tudo aquilo que faz de nós não um ser razoavelmente funcional no sentido da relação humana, mas o contrário. (...) E o espetáculo que o mundo nos oferece é justamente este: um mundo de desigualdade, um mundo de sofrimento, sem justificação. Ou melhor, com justificação; podemos explicar o que se passa, mas não tem justificação.
É impossível não pensar no mito da caverna, assunto do qual falava Saramago, afinal nunca estivemos tão imersos na caverna do Platão quanto nos dias atuais. Ora, vivemos na sociedade do espetáculo de Guy Debord, onde as imagens que nos mostram da realidade, as narrativas construídas sobre essa realidade, substituem elas mesmas a realidade. Uma sociedade que, mais do que construída sob o manto sujo das aparências, esconde suas imundícies e os principais responsáveis pela desgraça em que vivemos, relativizando os males e individualizando problemas que são de ordens econômicas e sociais.
Os seres humanos têm uma visão distorcida da realidade, como diria Platão. No mito, os prisioneiros somos nós que enxergamos e acreditamos apenas em imagens criadas, conceitos e informações que recebemos prontos durante a vida. A caverna simboliza o mundo, pois nos apresenta imagens que não representam a realidade. Só é possível conhecê-la de fato quando nos libertamos destas influências culturais e sociais, ou seja, quando saímos da caverna.
Em suma, superando os limites impostos por aquilo que hoje chamamos de ideologia é que derrubaremos os muros que nos impedem de ver a realidade, de termos acesso ao conhecimento que nos possibilitará conquistar nossa Liberdade. E feito isso (que Revolução!), um passo para a Felicidade será apenas e literalmente um passo.
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