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Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

O Marxismo para enfrentar o dogmatismo

23.12.21

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Há meses escrevi um artigo cujo foco foi a discução sobre as ideologias a partir da perspectiva marxista. Por meio de um texto repleto de exemplos ilustrativos, onde me "apropriei" das animações de Os Flinststones, dissertei sobre a temática, de forma a elucidar o conceito. Este texto, bem da verdade, fez parte de uma “trilogia teórica” iniciada com um curto ensaio sobre a decadência do capitalismo vista a partir da figura de um bilionário e continuada por uma discussão – tomando como base um livro de José Saramago – sobre a democracia burguesa e seus limites.

É a partir daquele texto (sobre as ideologias) que entraremos no tema proposto, o dogmatismo. Isto é bom e ruim, na medida em que posso encurtar a escritura, produzindo um texto enxuto, tangenciando o diálogo e não aprofundando elementos conceituais caros à discussão, desde que (é claro!) não se deixe ler o texto que justifica este aqui.

Para iniciarmos o debate levemos em conta a ideia de que toda sociedade comunga de um conjunto de valores que moldam o comportamento social e que são fundamentais para que aquela sociedade funcione. A esse conjunto de valores dá-se o nome de ideologia. Já os dogmas, que oriundam destas, são afirmações tidas como verdadeiras sem qualquer espécie de comprovação científica.

Ou seja, dogmáticas são afirmações do tipo: “o ser humano é bom ou mal por natureza”; “o ser humano é honesto ou corrupto por natureza”; “o mundo é justo ou injusto”; “a natureza humana é esta ou é aquela”. Frases como estas são muito comuns e bastante utilizadas para justificar, por exemplo, o fracasso do modelo econômico-social em que vivemos. E isto é um problema sério, não somente pelo seu caráter anticientífico, mas principalmente pelo seu sectarismo.

E aí é que entra o marxismo. Ao adentrar profundamente no objeto sobre o qual se propõe a estudar, sem desconsiderar inclusive a ideia que se faz acerca deste objeto ao analisá-lo, a verdadeira crítica marxista se diferencia destas concepções de mundo burguesas justamente por não aplicar ao objeto estudado concepções preestabelecidas. Pelo contrário! Enquanto o dogmático critica o mundo (e também o dogma alheio) a partir de seu próprio dogma, o marxismo busca compreendê-lo em toda a sua complexidade, em toda sua riqueza e contradições.

Por isso que entre dois grupos diferentes de dogmáticos existe um abismo impossível de ser transposto. Cada um parte de seu dogma para criticar o outro, tornando o convencimento impossível. Daí a afirmação de ser essa crítica externa e não dialética. Vejamos: um marxista vulgar geralmente parte suas análises única e exclusivamente a partir de um viés economicista. Para este falso marxista todas as relações humanas, nos mais diversos campos, devem ser vistas única e exclusivamente sob o viés econômico, suplantando à superestrutura a estrutura. A partir dessa concepção errônea, sem adentrar em seu objeto de estudo, este marxista de meia pataca “analisa” o mundo a sua volta. De fenômenos sociais dos mais diversos às disciplinas humanas (como literatura e arte) nada escapa a essa fórmula. Nada mais falso!

Melhor: um falso marxista pode tomar as classes sociais de forma dogmática. Toda sociedade, dirá ele, se baseia na exploração de uma classe sobre a outra. E ponto final. Conversa encerrada. Do outro lado, um grupo de trabalhadores pode acreditar que a sociedade é feita por pessoas independentes e livres. Pessoas que podem se dar bem ou mal na vida, a depender unicamente de suas decisões, escolhas e seu mérito individual.

Creio não ser difícil, neste caso, perceber a impossibilidade de diálogo entre as partes, já que um – a partir de suas crenças – afirmará em alto e bom som: “O mundo é assim!”, sendo imediatamente retrucado pelo outro: “Não é, o mundo é assado!”. Conversa encerrada.

Invés disso, a concepção marxista parte do pressuposto de que até mesmo as ideias erradas possuem uma base social na qual se escoram. Assim, ao estudar a sociedade não basta ao marxista compreender apenas a natureza mais profunda na qual ela se estrutura (a exploração de classes, por exemplo), mas igualmente como uma sociedade assim estruturada pode aparecer de outra forma. E mais: como sociedades distintas, vivendo sob uma mesma égide econômica (no caso o capitalismo) podem aparecer de formas distintas. Exemplo: Suíça e Brasil, ou Estados Unidos e Portugal. Compreender esses fenômenos, invés de julgá-los a partir de estereótipos ou de dogmas, é o que buscam os marxistas sérios.

Assim, compreender e explicar como uma sociedade controlada por um grupo minoritário de proprietários que vive do excedente produzido pela massa de trabalhadores pode parecer, sem análise prévia, como um conjunto de indivíduos livres e independentes, ou compreender como um Estado, cuja função única é manter essa sociedade baseada na exploração aparece como algo neutro, que supostamente corrige as desigualdades sociais, é uma tarefa na qual o marxismo se debruça. Contudo, ao fazê-lo, estuda essas estruturas por dentro, visando a compreendê-las não somente sincronicamente, mas também diacronicamente, buscando entender as bases concretas que possibilitaram os seus surgimentos, sem se abster de estudar seus processos evolutivos até sua maturação. Somente a partir deste exercício é que se busca uma resolução para superar essas estruturas de poder (Porra, que pós-moderno!).

As ideologias burguesas são, de fato, falsas. Apesar disso, elas possuem (como base) aspectos reais e verdadeiros que são por elas isolados e transformados em dogmas que explicam a sociedade inteira. Os liberais explicam a sociedade inteira pela forma como os indivíduos aparecem no mercado: como átomos soltos no mundo. Os que acreditam ser possível resolver os problemas do capitalismo por intervenção estatal, tomam o modo formal como o Estado aparece sem conectá-lo com o restante da sociedade.

O marxismo olha atrás da cortina de fumaça, por trás das aparências. A concepção marxista parte das formas mais comuns com que o capital aparece diante de todos: mercadoria, dinheiro, pessoas juridicamente livres e independentes e por aí vai e assume temporariamente as ilusões que decorrem dessas formas unilaterais. Daí a afirmação de que, para o marxismo, a ideia faz ela também parte do objeto.

Somente após este exercício de desconstrução – onde aquilo que parecia se mostrar uma face completamente contrária ao que de fato é – é que cada parte é conectada, revelando, por exemplo, que a liberdade entre os indivíduos é a forma da exploração de uma classe sobre a outra; ou, ainda, demonstrando que a separação formal do Estado é a forma como ele garante a violência permanente de uma classe sobre a outra. Por isso, em O Capital, de Marx, a luta de classes, apesar de ser o fundamento da sociedade inteira, aparece de forma explícita apenas ao final: como conclusão.

No livro, exemplar da concepção marxista, durante o percurso, as bases sociais das ilusões burguesas são gradativamente reveladas e, somente assim, elas passam a ser criticadas. Assumiu-se, por exemplo, os pontos de partidas dos próprios liberais, para somente então mostrar como esses pontos de partida são unilaterais e, por isso, suas conclusões são falsas.

A este processo de “desconstrução interna” chama-se crítica dialética. E é fundamental para os marxistas. Este método, além de nos possibilitar a compreensão do funcionamento do capitalismo, ajuda-nos a entender as ilusões dos trabalhadores que, apesar de explorados, acabam se jogando como peixinhos nas bocas dos tubarões. E mais: possibilita que – enquanto classe explorada – dialoguemos com os demais trabalhadores de forma não sectária, visando a estabelecer uma conexão entre aquilo que pensam e a necessidade de uma revolução socialista que transforme a sociedade em seu conjunto.

Dessa forma, não é atitude de qualquer militante marxista sério o prejulgamento de nenhum trabalhador, por exemplo. Essa forma de política que visa a desmoralizar uma pessoa levando-se em conta o seu candidato nas últimas eleições (como bolsomínions ou mortadelas) é uma prática estranha ao marxismo e aos marxistas honestos.

Não a toa a necessidade que têm os marxistas de compreender todo o processo político econômico-social que levaram as pessoas, as classes e a sociedade a agirem e a funcionar deste ou daquele jeito e não de outro. Esse o método correto e somente por meio dele, quer seja em uma conversa pessoal, quer seja na propaganda ou agitação para grandes massas, se pode desconstruir, por dentro, as falsas concepções que a própria classe trabalhadora assume. Somente assim as massas poderão aprender com a sua própria experiência. Esta é precisamente a crítica interna ou dialética que caracteriza a concepção marxista.

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