O legado de João Pé-Pé
Reza a lenda que num passado distante, em um lugarejo chamado João Paulo, em Florianópolis - que fazia parte dos bairros do Itacorubi (lado sul, do cemitério de Itacorubi até a Igreja de São Miguel) e Saco Grande (lado norte, da Igreja até onde se instala hoje o cemitério Jardim da Paz), havia um homem velho, de andar manco e pé aleijado, de alcunha João Pé-Pé.
João Pé-Pé, um tradicional pé-de-cana, com seu velho chapéu estilo cowboy, cigarro palheiro de fumo de corda, facão na cintura e com hábitos mateiros, habitava uma casa de chão-batido, com gaiolas de tiês-sangue nas paredes, moringa (pote d’agua de barro) na sombra do beiral do telhado e machado escondido ao lado do fogão à lenha - era dono de um inesgotável acervo de causos, versões e contos, pelo que se autoqualificava o mais destemido, intrépido e valente dentre todos peões e moradores da região.
Com o copo de pinga na mão e a compaixão que tinham por seu pé deformado, João Pé-Pé sobreviveu aos seus arquirrivais de cachaça (Xita e Geraldino) e o também rival de pilotagem de carro de bois, seu João Doca.
Foi nesse enredo que meus pais, seus comparsas e amigos passaram suas infâncias. Em especial José Queiróz, seu sobrinho, que, por não ter conhecido seu pai - falecido antes de seu nascimento -, não teve qualquer dificuldade de se instruir com o seu tio-avô João Pé-Pé. Vem daí seu conhecimento sobre caças, plantios e também trapaças... E veio daí, do seu Post Mortem, o seu dote e os dons para bem fabricar e manusear uma funda (estilingue). Tanto que, se hoje não o reconhecem ainda pelo gatilho mais ligeiro na pelotada, mais cedo ou mais tarde hão de o reconhecer pelo "tiro mais certeiro", porque com ele é assim: a fundada na testa tarda mas não falha.
Mas João Pé-pé, apesar de intrépido, não era único. Junto dele conviviam uma legião de Odisseus: a contar seu Mário negão, seu Dorico e meu avô Jóe, conhecido por fazer as árvores tremerem quando pegava um machado nas mãos. E também não era invencível em seu métier: dona Nina, sua companheira de décadas, o parava. Destemida, corajosa e de poucas palavras, era a única alma viva capaz de acalentar os ânimos do velho João Pé-Pé. Ao menos é o que nos relatam dessa matriarca que pilava uma saca de cafés em poucos minutos.
As tantas histórias e sinas desse seu tio-avô - João Marco Rosa, ou do lendário João Pé-Pé, como queiram - são-nos contadas por José Roberto Queiróz, na condição de tutor de seu legado e condenado, por conseguinte, à saga de mesmo epíteto, amplitude, significados e consequências.
Então saibam todos quantos queiram agora curtir essa resenha que o bairro do João Paulo, por meio de seus precursores ou aborígenes, afros, carijós ou açorianos, em se tratando de pelotadas e glamour, nada deve em comparação aos bangue-bangues estadunidenses, nas formações e ocupações das suas cidades no Velho Oeste, como aquelas semeadas nos estados do Texas, Califórnia, Arizona, Colorado, Virgínia ou Nevada, graças ao João Pé-Pé, que a essas horas deve estar se remexendo de alegria e cuspindo o palheiro para fora do seu caixão.
Há muito mais por aqui, creiam...
Paletó enterrado (José Roberto Queiróz)
Havia aqui
um pé de garapuvu
a fonte das lavadeiras
o canto do sanhaçu.
Havia aqui
a criança arteira e molhada
as broncas do tio João
as palhas pro seu cigarro
a horta pro seu pirão.
Havia sim
na sombra do tronco gigante
as mãos espumadas em sabão
a ave espiando a gaiola
os contos do tio João.
... João Pé-Pé, João Pé-pé!
onde está o morro encantado
que riscou teu pé aleijado
no frear do carro-de-boi?
João Pé-Pé, João Pé-Pé!
Onde está seu conto enterrado
teu chapéu, tesouro suado
e o capão do tatu que se foi?
Onde estás, tio João...?
Onde está teu barracão?
O teu sapato aleijado...
A fumaça do teu fogão?
Onde estás, tio João...?
Onde está dona Luça? Coitada!
as rugas da vida sonhada
companheiras de barracão.
Onde estás, tio João...
pra ouvir nossa oração?
João manco, onde está tua dor?
De paletó, só te vi no caixão.
... Havia aqui
um pé de garapuvu
a fonte das lavadeiras
o canto do sanhaçu.