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Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

O Cânone Literário

13.09.21

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Todo(a) o(a) leitor(a) curioso(a) e disposto(a) a imergir a fundo na literatura, seja ela clássica, romântica, moderna ou contemporânea, nacional, internacional, ocidental ou universal (aqueles livros que são referências históricas para várias culturas...) acaba se apegando ao cânone para iniciar suas leituras. E não tem como ser diferente. Sem esse referencial já cristalizado, torna-se impossível tomar ciência de um corpus tão extenso e variado como o literário, sendo consequentemente inviável a tarefa de adentrar profundamente nesse universo mágico e importante da literatura.

É um tema instigante este (o do cânone) e que inculca aquele(a) leitor(a) mais experimentado(a) e questionador(a), que sai em busca de leituras e respostas para uma problemática contemporânea da literatura: o que é o cânone literário? Esta mesma uma questão complexa e que se desdobra em várias outras, como: de onde ele vem?; por que existe?; qual o seu propósito?...

Antes de iniciarmos este "diálogo", devo dizer contudo que a ideia deste texto surgiu da leitura de um interessante artigo intitulado Educação literária e cânone literário escolar, de Blanca-Ana Roig Rechou, da Universidade de Santiago de Compostela que, em apenas 05 páginas, levantou questões bastante interessantes a respeito do cânone escolar e alguns de seus desdobramentos. Devo salientar, no entanto, que, embora considere bastante relevante a leitura deste ensaio acadêmico, este artigo é independente do de Rechou, sendo mais ligado em propósito e ideias àqueles que cito e referendo no final do texto. De Blanca-Ana me veio a "inspiração"! E com base no que penso sobre literatura o diálogo fraterno e enriquecedor - ao menos para mim.

Blanca-Ana inicia sua argumentação a partir de uma discussão surgida em Platão, o qual defendia o estabelecimento de um canône a partir da formulação de discursos (logoi). Para o filósofo grego pouco importa se são verdadeiros ou falsos estes discursos, desde que sejam discursos. Essa perspectiva platônica, a meu ver, não simplifica o problema, mas o acentua. E desde o seu tempo! Primeiramente porque Platão foi um idealista, que divinizava fenômenos sociais e políticos com os quais não podia ou não queria aprofundar. Lembremos que Platão fora representante intelectual de uma aristocracia parasitária que administrava os recursos da cidade oriundos das atividades laborais dos escravos ou então dos navegadores comerciantes, outra classe eminente na sociedade e que ajudou a formular a filosofia materialista (Parmênides, Demócrito, os atomistas...) anterior a Platão e rival direta de suas ideias. Não à toa a formulação intelectual centrada eminentemente no discurso (logos), desvinculada - muitas vezes - de uma análise mais profunda e interna dos fenômenos sócio-político-culturais e naturais.

Essa formulação teórica a extraímos da obra OS SOFISTAS. Em Atenas, à época de Platão, dava-se à oratória - enquanto ferramenta de formulação do discurso em si - um papel relevante dentro do estado. Aquele que não dominava essa técnica praticamente não tinha chances de ascensão ao poder. Em Atenas, para poder existir (e isso pressupunha um cargo de destaque na hierarquia estatal altamente excludente) era necessário "saber falar". E isso era uma atividade eminentemente divina, já que pertencia aos deuses o dom da linguagem*. Se o logos (o discurso) existia para dizer as coisas como elas eram, aos homens cabia confiar nele. Independentemente de se dizer o certo ou o errado para o tempo, pouca validade tinha isso para o pensamento platônico; o importante era saber fazê-lo da forma mais similar possível a dos deuses.

À parte de sua genialidade, dentre os idealistas Platão talvez fora o menos dialético. Parece contradição exigir de um idealista a arma dialética, que adentra ao fenômeno buscando interpretá-lo à luz das condições do seu tempo. Mas foi uma tônica da filosofia grega clássica. E Aristóteles - seu discípulo que se tornou seu mestre - compreendeu muito bem isso**.

Vejamos a complexidade do conceito de cânone já à época de Platão: em uma sociedade composta majoritariamente por escravos e com uma classe social pequena composta por comerciantes não afeita ao pensamento filosófico, cabia - na visão do filósofo - o controle do estado àqueles que detinham um poder divino, o da oratória. E quem detinha, dentre os habitantes daquela sociedade, o privilégio do ócio senão uma aristocracia? Não à toa Platão formula sua República (livro de onde podemos extrair o mito da caverna) dirigida por filósofos.

Ou seja, a despeito do jogo frasal centrado na formulação de discursos ou narrativas, cânone pressupõe a criação de um gosto formulado a partir de valores e conceitos aceitos por uma determinada sociedade. Esses valores são determinados por indivíduos que controlam o poder político e econômico dessa sociedade, que formulam ideologias como forma também de justificar seu proeminente status social. Em suma, canonizar é acima de tudo EXCLUIR. E esta exclusão - embora se desenvolva a partir da formulação de ideologias (discursos ou narrativas para outros) - se dá partindo de pressupostos de ordem econômica, isto é, a partir de uma perspectiva de classe social. O próprio conceito de filosofia pré-socrática é um exemplo. Se na luta de classes da Grécia antiga tivessem vencido os comerciantes marítimos, de repente conheceríamos a filosofia grega a partir de Demócrito, o maior de todos os materialistas gregos. E então, todos os filósofos posteriores ficariam reconhecidos como pós-Democritianos.

Eis um ponto importante e que o utilizo para discutir de maneira franca com Blanca-Ana Roig Rechou, a qual é partidária da complexidade da problemática partindo do problema das nacionalidades e suas línguas oficiais. Tendo a discordar parcialmente desta questão. Digo parcialmente porque, a depender da condição à qual submetemos nossa análise, é de fato um elemento a se levar em conta. Como bem citou a autora, as ideias pressupostas na obras O CÂNONE OCIDENTAL, de Harold Bloom, pressupõem um cânone universal centrado a partir de Shakespeare e de um cânone ocidental incluindo ao seu lado Dante Alighieri.

Homem, branco e estadunidense, professor de uma universidade nos Estados Unidos, Bloom teve toda a sua formação espiritual calcada em valores ocidentais, que, se não tem mais a Europa como centro de irradiação intelectual universal, ao menos de forma isolada, foi a gestora de nossas sociedades contemporâneas. Principalmente a partir da Revolução francesa, em finais do século XVIII, período que colocou a burguesia europeia no controle da nova dinâmica social. Dinâmica esta que nascera séculos antes em Portugal e, em seguida, na Espanha, mas que amadurece a partir do desenrolar politico em França e da Revolução industrial anos mais tarde, na Inglaterra.

Sob esta ótica universal e/ou ocidental, creio ser um problema sim essa discussão canônica, porém somente a partir de uma discussão local europeia (levando em conta as nações periféricas deste continente) ou mesmo das nacionalidades, onde há línguas que se sobrepõem a outras. Mas aí surgem questões importantes. Por que temos línguas que sobrepõem no panorama social de uma região a outras? Será pela sua sonoridade, ou pela sua dinâmica interna de funcionamento, ou ainda pela quantidade de falantes? Creio que saibamos a resposta para essas questões: essa relação se dá a partir de uma imposição cultural e política. Eis o fulcro da questão. E a partir dele é que temos que mirar nossos olhares.

Em texto que precedeu este (Para além dos clássicos! Ou nem tanto...), indaguei por que não ter caído em nossas mãos literaturas de escritor@s indígenas do Paraguai. É uma questão interessante, haja vista estarmos falando de uma nação cuja maioria absoluta da população opta pelo guarani como língua de comunicação em detrimento do idioma do colonizador: o espanhol. E isso não é pouco se pensarmos que os poucos escritores paraguaios que conhecemos escrevem no idioma de Cervantes e não no de Krenak ou Jekupê.

Acho que já compreendemos o papel do cânone: determinar o gosto, a forma de nos dizer o que é certo ou errado, bom ou ruim, aceitável ou inaceitável dentro de um determinado assunto. É a partir dele que os valores sociais hegemônicos são disseminados, tornando-se incontestes. Contudo, algo de positivo há nele: bem ou mal nos referencia uma lista daquilo que devemos ler, possibilitando-nos a formulação do conhecimento no decorrer da história em seus momentos não somente de relativa estabilidade, mas também de vital ruptura. Afinal, não se teoriza algo que não se esteja em construção. Às ideias sobrepõem-se a dinâmica do mundo em funcionamento. O problemas são discutidos somente quando eles existem.

E eles existem! Aos montes. E é bom que assim seja, principalmente na Arte, pois é sinal de que ela se expressa ainda como uma espécie de martelo que molda elementos prosaicos da vida, dando-lhes uma nova cor e conferindo-lhes um novo significado. Mas para que cheguemos a ela - não em sua totalidade, pois isso exigiria de nós algumas vidas - um caminho interessante é o próprio cânone, que acaba nos norteando, ao menos no início. Em outras palavras, qual a melhor forma de um leitor brasileiro curioso conhecer a literatura angolana senão apoiando-se nas referências do cânone? Sinceramente, não vejo outro jeito se não o de se escorar sobre seus "pilares" e, a partir deles, confortavelmente, dar uma espiadela em seus arredores.

Falamos, falamos e falamos... Porém, e a literatura, objeto de nossos prazeres e dessas discussões, como ela fica? No lugar que lhe cabe: no pedestal que a Arte lha reservou. Afinal, corroboro com Candido algo que o cânone às vezes despreza justamente pela necessidade de haver esse recorte como forma de se sobrepor valores sociais e econômicos: a arte nos humaniza, coloca ordem no caos estabelecido, traz em seu âmago, a partir de uma lógica tão somente sua, de leis intrínsecas e muitas vezes revolucionárias, a expressão daquilo que nos faz humano e de como essa humanidade nos faz agir dessa maneira e não daquela, levando-nos à reflexão de nós e do mundo***.

Estes pormenores são aceitos, a meu ver, quando a discussão é uma literatura hoje reconhecidamente de outro tipo: a infantil. Como bem explanou Rechou, surge somente na era vitoriana um cânone infantil e parte este da necessidade de se organizar um conjunto de obras que se adaptassem à formação espiritual dos filhos da burguesia europeia, principalmente a inglesa e a francesa. Obviamente que uma literatura elaborada para um público infantil ou jovem é obra não do século XIX, mas já do século XVII, e um cânone, como aquele já instituído, é obra posterior, sendo estes agentes, os mesmos da literatura já consagrada por este meio. Vemos o que falou Rechou:

"Entre esses agentes contamos com os pais, bibliotecários, animadores culturais e o professorado com grande poder de decisão, ainda que este, em parte, esteja submetido aos administradores, com base no currículo desenhado pelas políticas educacionais e socioculturais e mesmo pela cultura escolar de cada instituição, que reproduz a sua ideologia. Também interferem nesse processo as promoções e políticas editoriais, os meios de comunicação e os recursos econômicos. (...) Dá-se, assim, uma convergência de critérios na seleção de textos escolares. De um lado, situam-se as variáveis empresariais, econômicas, ideológica; de outro, as acadêmicas, que deveriam basear-se, penso, como veio ocorrendo através dos tempos na literatura central, na qualidade literária, no conceito de clássico, nos modelos literários, em suma, nos juízos de valor, que mesmo as novas teorias sistêmicas não deixam de reconhecer".

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* Dentro da mitologia grega não são poucos os exemplos do logro por meio da mentira (astúcia) como forma de superação de um obstáculo. Vemos por exemplo a cena de Odisseu na caverna dos Ciclopes (Homero. ODISSEIA - canto 9).

** Aliás, não somente da filosofia clássica (aquela greco-romana, sabe); boa parte da filosofia idealista foi dialética. Os bons idealistas estão mais próximos da dialética rica, que os materialistas vulgares.

*** Um belo exemplo para o que falo é Caio Fernando Abreu: em vários de seus contos nos faz ter empatia por suas personagens. Empregando uma linguagem poética, insere-nos na trama como se fôssemos nós mesmos quem estivéssemos vivendo aqueles dramas, como é o caso daqueles do conto "Aqueles Dois", talvez seu texto mais conhecido. A verdadeira arte vislumbra valores que já existem em nossa sociedade, mas que ainda não são proeminentes. E as entrelinhas do pensamento de Even-Zohar só reforçam esta ideia quando afirma que essas evidências supra-históricas estão contidas no texto.

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