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Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Norma Oculta

11.09.22

Retirantes, de Cândido Portinari

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Pego emprestado o título de um livro bastante conhecido entre os estudantes de Letras do Brasil para intitular este meu artigo. E o faço simplesmente pela sua relevância. Escrita pelo linguista, escritor, tradutor e professor Dr. no programa de Letras da UNB (Universidade de Brasília) Marcos Bagno, A Norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira é uma dessas obras indispensáveis para qualquer estudante de Letras, assim como para qualquer profissional da educação.

E não somente para compreender fenômenos linguísticos característicos típicos do português brasileiro, mas para ajudar a compreender o próprio país.

Publicado em 2003, Norma oculta discute, dentre outras coisas, o tratamento preconceituoso com o que é tratado o tema pela imprensa, pela mídia, fazendo uma viagem histórica bastante importante pela língua portuguesa, sem deixar de combater as várias esferas em que se manifesta o preconceito linguístico - que tem um fundo social e de classe -, propondo, por fim, uma gramática do português brasileiro. Como ressalta o editor: "A Norma oculta discute o jogo ideológico por trás da defesa de um conjunto padronizado de regras linguísticas, retira o disfarce de uma discriminação que é, em tudo, social, ao demonstrar que a própria negação do preconceito linguístico é prova mais do que eloquente de que as coisas não podem seguir como estão". Nas palavras do autor:

Faz algum tempo que venho me dedicando ao estudo do preconceito linguístico na sociedade brasileira. A principal conclusão que tirei dessa investigação é que, simplesmente, o preconceito linguístico não existe. O que existe, de fato, é um profundo preconceito social. Se discriminar alguém por ser negro, índio, pobre, nordestino, mulher, deficiente físico, homossexual etc já começa a ser considerado "publicamente inaceitável" (o que não significa que essas discriminações tenham deixado de existir) e "politicamente incorreto" (lembrando que o discurso de "politicamente correto" é quase sempre pura hipocrisia), fazer essa mesma discriminação com base no modo de falar da pessoa é algo que passa com muita "naturalidade", e acusação de "falar tudo errado", "atropelar a gramática" ou "não saber português" pode ser proferida por gente de todos os espectros ideológicos, desde o conservador mais empedernido até o revolucionário mais radical. Por que será que é assim? (Bagno, 2003, p.15-16)

Vamos avançar na discussão, que apenas se inicia, e que enveredará parcialmente para outros caminhos, abordando outro recorte extraído de obra do mesmo autor. Para tanto, demos dois ou três passinhos para trás, retornando às portas do século XXI e olhemos para o didático O Preconceito linguístico, livro publicado em 1999, e que levanta várias questões muito importantes sobre o tema. Sob a ótica abordada, e complementando o já explorado, vejamos o que fala o autor em determinado momento:

O preconceito linguístico se baseia na crença de que só existe, como vimos no Mito n° 1, uma única língua portuguesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e catalogada nos dicionários. Qualquer manifestação linguística que escape desse triângulo escola-gramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito linguístico, “errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente”, e não é raro a gente ouvir que “isso não é português”.
  Um exemplo. Na visão preconceituosa dos fenômenos da língua, a transformação de L em R nos encontros consonantais como em Cráudia, chicrete, praca, broco, pranta é tremendamente estigmatizada e às vezes é considerada até como um sinal do “atraso mental” das pessoas que falam assim. Ora, estudando cientificamente a questão, é fácil descobrir que não estamos diante de um traço de “atraso mental” dos falantes “ignorantes” do português, mas simplesmente de um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão. (...)
  Como é fácil notar, todas as palavras do português-padrão listadas acima tinham, na sua origem, um L bem nítido que se transformou em R. E agora? Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia, chicrete e pranta têm algum “defeito” ou “atraso mental”, seríamos forçados a admitir que toda a população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema na época em que a língua portuguesa estava se formando. E que o grande Luís de Camões também sofria desse mesmo mal, já que ele escreveu ingrês, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra que é considerada até hoje o maior monumento literário do português clássico, o poema Os Lusíadas. E isso, é “craro”, seria no mínimo absurdo. (BAGNO, 1999, p.40-41)

Língua e sociedade são dois elementos que se intercruzam. Isso porque a função da língua nada mais é que estabelecer o contato social entre indivíduos de determinados grupos sociais. A própria língua enquanto sistema acompanha a evolução técnica e material de cada sociedade, refletindo os padrões de comportamento, que variam no tempo e no espaço. Para aqueles que ainda não compreenderam o teor desta narrativa, que fique claro que estamos falando de linguagem e de todo o poder que dela deriva. O processo de colonização de um povo, por exemplo, não é pautado apenas por saques, por mortes e pela escravidão (direta ou indireta, como a que vivemos hoje).

Esse processo é materializado também - e principalmente - por meio da língua. É por ela que o colonizador se impõe! Por meio da linguagem que o colonizador expande sua perspectiva de mundo as suas colônias, pois a língua denota o caráter e a forma como uma sociedade se relaciona entre si e com o meio ambiente que a cerca. Isso sem contar o sentido de unidade forjada pelo idioma: ao se falar a mesma língua que o colonizador, o colonizado adquire um sentido de pertencimento à cultura de seu verdugo. Em suma, é por meio da língua que aprendemos (os colonizados) a pensar a partir da perspectiva do opressor e não do oprimido. Sem a língua e suas variantes culturais, como a literatura, a música etc, a exploração se torna muito mais difícil, na medida em que ela contribui para cristalização de uma identidade forjada, na qual a visão do colonizador é mais rica, diversa e civilizada que a do colonizado. E é dessa relação entre opressores e oprimidos - visando a resguardar o direito da exploração do homem pelo homem - que são criadas as normas sociais.Fac-símile de OS LUSÍADAS, com destaque para o Canto Sexto. Para ter acesso ao documento na íntegra, clique sobre a imagem.

No que tange à língua, por exemplo, a norma padrão / standard é a norma culta, ou seja, a norma moldada a partir dos valores compartilhados pelas elites. Entretanto, uma das qualidades da língua é seu caráter heterogêneo, variável, múltiplo, sempre em (des)(re)construção. Por ser fruto de atividades sociais, a língua (e a linguagem, obviamente!) está sempre em ebulição, característica bastante distinta da norma padrão, esculpida em carrara à moda clássica.

É importante termos estas questões bem claras. Da perspectiva sociológica (e, portanto, sob a ótica sociolinguística) o "erro" depende precisamente da distribuição dos falantes dentro da pirâmide social. Em outras palavras, o "erro linguístico" tem um caráter de classe e sua validação é baseada no valor social atribuído ao falante: se determinado léxico faz parte do arcabouço linguístico do grupo social hegemônico ele é o "correto" e "puro"; caso contrário, "incorreto" e "impuro".

Vejamos um exemplo para clarificar a questão, um que gosto de utilizar em minhas explanações: o pronome pessoal "a gente". Até bem pouco tempo atrás esse pronome sequer era reconhecido pelos gramaticistas oficiais (aqueles que assinam as gramáticas chamadas normativas). Típico da linguagem oral, este pronome suprime o pronome "Nós" em 1pessoa do plural como forma de economia linguística, já que evita-se a pluralização dos demais elementos da frase. No entanto, como este pronome se tornou "vulgar" ao ponto de se alastrar para os membros das classes mais abastadas de nossa sociedade, muito gramaticista - da noite para o dia e sem qualquer explicação científica que o respalde - o reconheceu como um pronome pessoal de nossa língua, passando, o português falado no Brasil, a ter não oito (Eu, Tu, Ele / Ela, Nós, Vós, Eles / Elas), mas nove pronomes desta espécie. Claro que ainda hoje há muitos gramaticistas que o excluem de suas exposições, como o é o caso da Gramática Básica do Português Contemporâneo, do conhecidíssimo Celso Cunha. Ao menos lá em seu capítulo 09 - Pronomes - ele não aparece.

Este é um dos vários exemplos. Marcos Bagno tem duas metáforas muito bonitas para explicar essa relação entre língua e gramática normativa. Para o autor, "A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo, e a gramática normativa é a tentativa de descrever apenas uma parcela mais visível dele, a chamada norma culta. Essa descrição, é claro, tem seu valor e seus méritos, mas é parcial (no sentido literal e figurado do termo) e não pode ser autoritariamente aplicada a todo o resto da língua - afinal, a ponta do iceberg que emerge representa apenas um quinto do seu valor total". Na sequência, continua: "Você sabe o que é igapó? Na Amazônia, igapó é um trecho de mata inundada, uma grande poça de água estagnada às margens de um rio, sobretudo depois da cheia. Parece-me uma boa imagem para a gramática normativa. Enquanto a língua é um rio caudaloso, longo e largo que nunca se detém em seu curso, a gramática normativa é apenas um igapó, uma grande poça de água parada, um charco, um brejo, um terreno alagadiço, à margem da língua. Enquanto a água do rio / língua, por estar em movimento, se renova incessantemente, a água do igapó / gramática normativa envelhece e só se renovará quando vier a próxima cheia". (BAGNO, 1999, p.09-10)

Todavia, engana-se quem pensa que o preconceito social é expresso somente a partir desta ótica. Como na luta de classes, o preconceito social expresso por meio da língua se dá em vários extratos. E o mais cruel deles talvez seja aquele no campo semântico, como exposto no início de nossa argumentação. Mas ali demonstramos casos mais claros, em que ficam mais evidentes uma dissonância em relação à norma dita culta. Há, contudo, exemplos muito mais sutis em que a mesma ótica se aplica, como no exemplo comum da palavra "advogado". Segundo o Dicionário latino português de F. R. dos Santos Saraiva, advogado deriva do latim advocatus, particípio passado de advocare, formado a partir preposição ad - que nesse caso designa movimento, ou aproximação: perto, junto - e vocare - chamar, "apelar para". No português brasileiro, dentro de diversas situações de comunicação, encontramos um fenômeno chamado de metaplasmo, que nada mais é que transformações que o português sofre e vem sofrendo ao longo do tempo. Esses fenômenos se originam a partir de algumas leis fonéticas, tais como: a de economia linguística, a da permanência da consoante inicial, a da persistência da sílaba tônica, dentre outras.

Estes metaplasmos são responsáveis pela adição, subtração ou pela alteração de algum fonema durante a pronúncia de uma determinada palavra, algumas vezes para garantir a economia linguísitca, como no caso de caxa, poco etc, outras para para dar maior fluidez à palavra, como no caso do vocábulo "advogado", que sofre o acréscimo de um fonema quando falado. É uma tendência da língua, como já dito! E no caso de nosso idioma brasileiro, bastante híbrido e com referenciais em línguas, grupos linguísticos e culturas díspares a sua origem, como a bantu e tupi-guarani, há sempre a tendência de adicionar um fonema após essa preposição latina ad. É o caso de palavras como "adjetivo", "adstringente", "administrativo" e "advogado", em que pronuciamos "adijetivo", "adistringente", "adiministrativo" e "adivogado". Isso ocorre para quebrar a pausa que o "d" mudo do radical latino provocaria na palavra.

Acho que já compreenderam onde pretendo chegar. É que, no caso deste léxico utilizado para designar aquele profissional jurídico, há uma diferença de pronunciação entre pessoas de classes sociais menos abastadas e os setores médios e altos da sociedade. Pessoas pertencentes a grupos sociais mais pobres costumam pronunciar "adevogado" em detrimento a "adivogado". E essa simples diferença fonética, provocada pelo mesmo fenômeno linguístico, é propulsora de escárnio e de diferenciação social, divisora de campos de circulação dentro do mesmo espaço. Os falantes da variante utilizada pelas pessoas mais abastadas (ou aqueles que circulam com mais frequência nestes meios) declaram-se aqueles que melhor manejam a língua por utilizarem a norma culta padrão, enquanto aqueles mais pobres são os que as pronunciam de forma incauta, que deturpam nosso idioma. O pior é que, partindo dos princípios fonéticos estabelecidos pelos gramaticistas normativos, ambos estão incorretos - ambos incorrem na mesma falta, na verdade. Em suma, nos baseamos em um conjunto de normas abstratas e sem base concreta com a língua falada para basilarmos uma pseudo-análise linguística, na qual a única função prática é a de discriminação social. Qualquer análise séria sobre um idioma deve partir de seus registros orais e não o inverso; a escrita vem a posteriori à fala, orbitando-a, e tem a função única de representá-la graficamente. E não o contrário! Pensar e agir assim é fazer como aquele famoso ditado popular: o poste mijando no cachorro. Este um exemplo, mas há outros que poderíamos citar, no português brasileiro e em outros idiomas.

Tudo o que falamos até aqui é de suma importância não somente para a compreensão do funcionamento social de nosso idioma. Vai muito além! O conceito de norma culta e sua função decorre de uma padronização social que tem origem, gênero, raça e classe social. Quando alguém afirma, por exemplo, que a norma culta da língua é a única linguagem, o único meio a partir do qual se consegue fazer interpretações de textos mais elaboradas, este(a) sujeito(a) político(a) está excluindo toda e qualquer outra forma de comunicação social. E isso nos leva a uma indagação: o que é uma norma culta? Pelo já exposto, acho que compreendemos bem o que seria: uma norma destinada a desacreditar o discurso daqueles que não dominam um conjunto de regras arbitrárias, cuja função prática é a de excluir o restante ignorante da população inculta. E por "inculta" subtende-se também um conceito em que sua antítese carrega valores sociais burgueses pautados em um conjunto de símbolos e códigos cuja origem se dá a partir da tradição clássica europeia, com raízes na Grécia antiga. Somente aqueles protegidos atrás dos muros de palácios, dos muros da igreja e dos muros de museus são os cultos, aqueles que têm cultura, com capacidade de dominar esses códigos.

Sob essa ótica se enquadra também o conceito de norma culta padrão. Acontece que a própria noção de gramática, tão explorada aqui neste texto, é - até certo ponto - um conceito em disputa. Explico-me: se há a gramática normativa, que é aquela que afirma: "você tem que falar assim!", há também a descritiva, que diz: "os falantes da língua falam assim!". Esta, obviamente, fica mais restrita a um grupo de pessoas estudiosas (embora alguns de seus conceitos respinguem nas novas gramáticas normativas) e jamais será aplicada enquanto vivermos em sociedades pautadas na exploração do homem pelo homem.

Então, avançando, uma norma (culta) nada mais é que o estabelecimento de um conjunto de regras elaboradas pela classe social economicamente reinante com o intuito de impor seus valores e seu modo de vida às classes subalternas. E sua formação é histórica. Na França medieval, por exemplo, a norma culta da língua era a que a realeza escolhia. Cada rei que se sentava ao trono à escolhia ao seu bel prazer, ou seja, reconfigurava a forma com a qual as palavras eram escritas. Até o surgimento dos dicionários e o surgimento dos lexicógrafos, no final do século XVIII, a forma correta de se escrever e de se pronunciar as palavras era aquela feita pelo rei. E, após o surgimento dos dicionários, a forma canonizada do idioma escrito - e, por conseguinte, a falada - passou a ser aquela pautada por um conjunto de intelectuais consagrados pela elite, tendo como base valores por elas impostos.

E isso é válido para todas as normas: as etiquetas, o direito (pensado aqui como um conjunto de leis), a cultura etc. Inclusive a moral - vista como aquele conjunto de regras, costumes e formas de pensar de um grupo social, que define o que devemos ou não devemos fazer em sociedade - que nos são transmitidas como um conjunto de valores "naturais" e imutáveis tem fundamentação histórica e social e alteram conforme a sociedade avança. Essas regras, vistas pela ética, o ramo de estudo da Filosofia que busca a fundamentação e a teorização dos aspectos morais da vida social e da vida individual, como a conduta e as ações, são elaboradas e difundidas pelas instituições de nossos estados burgueses modernos, seja por meio de leis, normas e / ou por meio de valores sociais que nos são transmitidos pela mídia, pela igreja e pelas instituições de ensino desses estados. A este conjunto de ideias e valores dá-se o nome de Ideologia.

Dessa forma, mais importante do que dominar a norma culta de um idioma como forma de elaboração de um raciocínio crítico mais elaborado, é buscar uma formação no mínimo crítica, já que não nos é possível ainda uma formação libertadora. É buscar compreender a elaboração de fundo de um determinado texto, o que se está buscando dizer em suas entrelinhas. Não é com a norma culta, por exemplo, que se compreende o caráter machista e de classe imbuído no discurso de Bentinho, personagem de Dom Casmurro, de Machado de Assis, um romance escrito em primeira pessoa e que descreve, exclusivamente sob a ótica de Bento Santiago (Santo + Iago, personagem responsável pela morte de Desdêmona na peça Otelo, de Shakespeare), sua relação com a Capitu, mas com um conhecimento social e histórico mínimo de nossa formação enquanto nação na periferia do capitalismo.

Afinal, se pensarmos nosso idioma português - mesmo desconsiderando nossa variante brasileira, sensivelmente mais rica - a partir dessa perspectiva, chegaremos facilmente à conclusão que essa flor do Lácio, inculta e bela, não passa de uma corruptela do Latim, de uma língua latina inculta e mal falada. E não será difícil de se concluir que essa corrupção da "mater linguae" fora obra não de artífices da linguagem escrita, mas de pessoas analfabetas, que, mesmo não sabendo ler e escrever o Latim, gestaram, se comunicando pela fala, este lindo, plural e "impuro" idioma.

E, da mesma forma que a norma culta é engessada e nada diz respeito à capacidade de comunicação, tampouco é o domínio pleno das regras de etiqueta que nos torna sujeitos "melhores", mais "polidos", ou "sofisticados" que outros que não as dominam. Assim como comer de garfo e faca não nos torna mais civilizados que outros povos que não o façam.

Edward W. Said, grande intelectual palestino, no brilhante livro Orientalismo - oriente como invenção do ocidente nos mostra como a civilização ocidental fabricou a noção de oriental com o intuito não de compreendê-lo, mas de dominá-lo. Escrito em 1978 este clássico dos estudos culturais nos mostra que o “Oriente” não é um nome geográfico entre outros, mas uma invenção cultural e política do “Ocidente” que reúne as várias civilizações a leste da Europa sob o mesmo signo do exotismo e da inferioridade. Recorrendo a fontes e textos diversos - descrições de viagens, tratados filológicos, poemas e peças, traduções de textos clássicos, como As Mil e uma noites, teses e gramáticas -, Said mostra os vínculos estreitos que uniram a construção dos impérios e a acumulação de um fantástico e problemático acervo de saberes e certezas europeias. A investigação da origem e dos caminhos do Orientalismo como disciplina acadêmica, o gosto literário e mentalidade dominadora circundam a obra.

Octávio Paz, poeta e crítico literário mexicano, em sua obra Os Filhos do barro, abordou um assunto bastante interessante. Para o poeta nobel de literatura, nessa obra ainda mais antiga que a de Said, escrita em 1974, o ocidente construiu uma estética artística calcada na desconstrução contínua, na tradição de uma ruptura que se inicia a partir do final do século XVIII com o romantismo alemão. Acertadamente, o intelectual observa o nascimento, o florescimento e esmaecimento de correntes de vanguarda que se seguem e se negam, mas sempre tendo como base uma tradição comum ocidental, calçada em um cânone.

Segundo Paz, a sociedade contemporânea inventou a expressão "tradição moderna" como uma espécie de ritual que se tornou tradição, desvinculada ao passado ou algum princípio imóvel, em que a lógica se tornou na construção e desconstrução corrente por meio da crítica, tendo a mudança perpétua como seu princípio basilar. Em outras palavras, para o ocidente, desconstruir é (re)construir. E é assim que olha para outras tradições: aqueles que não fazem o mesmo, que não o imitam, não são dignos de apreço, às vezes sequer de julgo. Mais uma vez uma construção unilateral com base em valores vistos como eternos e com um fulcro imperialista.

Foi Ludwig Wittgenstein que, em seu Investigações filosóficas - resgatando desde a epígrafe a partir de uma frase da peça Rei Lear, de Shakespeare, na qual afirma: "Vou lhes ensinar diferenças" - mostrou com clareza a arbitrariedade das normas. Nesta obra, o filósofo austríaco nos demonstra como a gramática normativa é toda ela uma abstração, na medida em que é incapaz de dar sentido às coisas. Como expressão máxima da norma culta de um idioma, o filósofo resgata a máxima de Espinosa, em que afirma ter-se "esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por entendê-las" e questiona a ideia civilizatória ocidental de que a norma culta padrão do idioma é a única capaz de produzir pensamentos mais elaborados.

Este discurso, ainda corrente nos materiais didáticos brasileiros e largamente difundido nas redes sociais por meio de vídeos em plataformas como Youtube, deslegitima uma série outras de elaborações intelectuais e sociais que não seguem esse modelo, ou que sequer com ele dialogam. Será que os povos ameríndios sul-americanos nunca produziram pensamento elaborado? Ou somente pode ser validado o pensamento ocidental, que em duzentos de Revolução Industrial produziu duas guerras mundiais, saqueou, matou e aniquilou povos e culturas inteiros, além destruir o planeta em seu conjunto? Será que os Incas, que aqui viveram em harmonia com a Pachamama, que esculpiram os Andes, construíram Cuzco, Machu Picchu, Kuélap, Choquequirao, Vilcabamba, Ollantaytambo e outras grandiosas cidades, domesticaram centenas de plantas, cultivaram nas escarpas da cordilheira peruana - tudo isso durante a metade deste tempo (100 anos) - não sabem de nada?

Ou será que os mouros africanos, árabes em sua cultura, que durante 700 anos colonizaram a Península Ibérica, levando a medicina, a filosofia, as ciências matemáticas, a física, as técnicas inovadoras de construção e de navegação, as fontes, a azulejaria e que contribuíram para que a Europa evoluísse e fosse hoje o continente hegemônico que é também são ignorantes? Será que a filosofia Ubuntu, as culturas orientais, as civilizações pré-colombianas, os povos originários do Brasil e da mãe África - com suas narrativas orais riquíssimas - são desprovidos de capacidade de pensamento elaborado simplesmente por não compartilharem dos preceitos linguísticos e sociais hegemônicos no ocidente capitalista e por não terem criado uma norma culta à sua imagem e semelhança? Não é difícil de perceber o quão raso, estúpido e idiota é este raciocínio.

É desnecessário falar que não pretendo, na contramão deste discurso, deslegitimar a tradição filosófica ocidental, cuja origem tem suas raízes no oriente, diga-se de passagem. Toda a forma de pensar e ver o mundo tem sua validade e sua fundamentação teórica tem raízes profundas na realidade material. O que pretendi fazer é trazer elementos, baseando-me em um conhecimento histórico e científico médio, mostrar o quão frágil é a falácia da superioridade ocidental, que trata todas as demais culturas como exóticas e incautas (incluindo parte importante de sua própria cultura), escondendo as barbaridades que causou (e causa ainda - basta ver a destruição da África e do Oriente Médio pelos exércitos de nações imperialistas, assim como a destruição ambiental em escala global) no transcorrer de sua história. São reflexões necessárias e que não se encerram por aqui. Eu mesmo, neste espaço que publico este ensaio, em outras oportunidades discuti questões semelhantes a estas. Inclusive um destes textos o referendo abaixo: intitula-se Para além dos clássicos! Ou nem tanto... Nele, discuto o cânone ocidental, desde sua ideia até a sua construção e solidificação, visando a mostrar o quão excludente é, sem deixar de mostrar seus valores. Convido-os a lerem-no!

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