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Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Imagens melancólicas do datiloscrito esquecido: um inédito de Jorge Amado*

11.05.19

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1 ALGUNS PRESSUPOSTOS

 

A pesquisadora Eneida Leal Cunha, no seu artigo A casa de Jorge Amado esboça uma forte preocupação pelo manancial documental e arquivístico contido na fundação que homenageia a volumosa obra do escritor baiano.

 

Eneida descreve detalhadamente a dimensão cultural que tal acervo esclarece para aqueles pesquisadores que desejam compreender a dimensão circunstancial ao qual tangencia o processo criativo do autor de Capitães de Areia.

 

Fruto de algumas especulações informativas contidas no acervo do escritor, seu artigo torna-se o trampolim para aqueles que desejam adentrar como detetives nos meandros literários, sociológicos, artísticos, históricos, do acervo de Amado.

 

“Grande parte da documentação pessoal depositada na Fundação é posterior à década de 1950, uma consequência, previsível dos anos de perseguição política e de exílio” (CUNHA, 2003, p. 119). Embora a autora não possua conhecimento suficiente acerca da existência dos materiais concedidos pela pesquisadora Leonor Scliar ao Núcleo de Literatura e Memória, sua assertiva reconhece o período mais obscuro da vida de Jorge Amado, implicando um tratamento mais específico sobre tal assunto.

 

Portanto, é por meio desse mote que iremos guiar o nosso raciocínio; tal movimento servirá como subsídio imprescindível às páginas que seguem.

 

No entanto, linhas adiante a pesquisadora Eneida Cunha revela que tal acervo foi fruto da densa correspondência motivada pela proximidade de Amado com as autoridades políticas e estrangeiras, assim como foi o caso da publicação que investigaremos sobre o suicídio cometido pelo autor Stefan Zweig, autor do livro Brasil, um país do futuro.

 

De acordo com o prefácio escrito por Alberto Dines à obra Brasil, um país do futuro, de Stefan Zweig:

 

Ficcionista e biógrafo de sucesso, um dos autores mais traduzidos nos anos 20 e 30 do século passado, Zweig pretendia oferecer um livro político sem falar em política (que detestava). Em Nova York, onde se encontrava de passagem acertou com os seus editores internacionais um lançamento simultâneo. No auge do primeiro conflito globalizado, conseguiu a proeza de lançar em agosto-setembro de 1941 a edição brasileira, a norte-americana e, no fim do mesmo ano, as edições alemã, sueca (ambas impressas em Estocolmo, já que na Europa ocupada por Hitler as obras de um autor judeu estavam condenadas) e também a portuguesa. No início de 1942, saíram as edições francesas (Nos EUA, pelo mesmo motivo) e espanhola (na Argentina). (DINES, 2006, p. 8)

 

Bem da verdade, o acervo contido no Núcleo corresponde a várias cartas trocadas com os líderes comunistas que eram filiados ao partido naquele período.

 

Como ficamos sabendo, após a publicação desse material, sua consequente morte na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro, foi divulgada boa parte da imprensa nacional e internacional e, naquele período, o escritor Jorge Amado recebera um convite para apresentar seu consolo poético com o artigo “Toda uma literatura suicidou-se com Stefan Zweig”, ao Jornal La Razon, no dia 25 de fevereiro, na cidade de Buenos Aires. O material foi escrito e impresso no ano de 1942.

 

Não obstante, pelo teor da reflexão, anunciando a perda do escritor austríaco Stefan Zweig, podemos perceber que o escritor Jorge Amado possuía uma forte preocupação “[...] que conectavam internacionalmente os intelectuais militantes e, um seu correlato imposto pela história política brasileira, os anos vividos no exílio e as amizades que então desenvolveu.” (CUNHA, 2003, p. 120-121).

 

Portanto, o esclarecimento da pesquisadora acerca da obra de Amado e seus seguidores, reforça a tese de que seu (auto)exílio vivido nas cidades de Montevidéu e Buenos Aires fora reflexo não do escritor Jorge Amado, mas de sua atividade política, que o conectava não somente com os problemas nacionais, mas também internacionais.

 

O presente artigo centrou-se em realizar uma breve análise datiloscrito “Toda uma literatura suicidou-se com Stefan Zweig”, pesquisado na mala do escritor Jorge Amado. Conjecturamos, no decorrer dessa pesquisa documental, respaldar aqueles pesquisadores que desejam tomar conhecimento sobre algumas revelações que iluminem melhor à vida do escritor austríaco.

 

A metodologia aplicada foi à pesquisa bibliográfica e análise do datiloscrito cedido ao Núcleo de Literatura e Memória, já comentado. Para tanto, focalizamos alguns questionamentos pertinentes que permearão o nosso fio condutor nesse trabalho: como é representada a imagem do escritor austríaco Stefan Zweig no artigo de Jorge Amado? Quais foram as circunstâncias literárias e históricas (Brasil e Uruguai) que circunstanciaram o ofício de Amado durante o seu (auto) exílio? Qual a proximidade entre Stefan Zweig e Jorge Amado?2 Qual foi a intenção de Jorge Amado ao fazer as trocas de palavras durante a confecção do artigo? Quais foram as mudanças que ocorreram entre o datiloscrito original e a posterior publicação definitiva no Jornal La Razon? E, por último, a publicação de Amado revela algo sobre o suicídio do escritor austríaco?

 

Portanto, as reflexões aqui reproduzidas não esgotam a conjuntura já levantada por alguns pesquisadores, mas acrescentam possíveis perspectivas e hipóteses de leitura que poderão ser iluminadas, tendo em vista a originalidade e a contribuição desse manuscrito inédito publicado naquele período.

 

 

2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO PERÍODO (1941-1942)

 

Filho da geração de 30, Jorge Amado é um desses intelectuais engajados na luta política de seu país. Filiado e militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro), mudou-se para o Uruguai – a pedido do partido – para que escrevesse uma biografia sobre Luiz Carlos Prestes.3

 

Ciente de que a obra não seria bem recebida no país, pois passávamos pela ditadura getulista, denominada de Estado Novo4, Jorge Amado (auto) exíla-se no Uruguai e na Argentina entre 1941-42.

 

Todavia, se a situação no Brasil não era das mais favoráveis para sua militância, no Uruguai muito menos, já que o país encontrava-se à época governado pelo general Alfredo Baldomir Ferrari, autor do denominado “golpe bueno”, que na prática dissolveu o poder legislativo nacional, assumindo assim, para si, poderes extraordinários.

 

Bem da verdade, é uma época bastante conturbada em todo o continente: se por um lado cria-se o discurso de uma autossustentabilidade latino-americana, por outro cria-se uma dependência político-econômica cada vez maior com os Estados Unidos, potência imperialista da região.

 

No plano econômico mundial, o protecionismo impera entre os países, tanto que, não somente no Brasil, mas também na Argentina desse período criam-se medidas de estímulo e proteção à industrialização nacional: a partir de 1940 o governo argentino, por exemplo, adotou um novo modelo econômico denominado “Industrialização por Substituição de Exportações”.

 

Data igualmente dessa época a criação da UIA (União de Industriais Argentinos), que foi angariando poder com o desenvolvimento da indústria, fomentado pelo governo.

 

No campo cultural, vivemos uma época de grandes mudanças se comparada à época que a precedeu. No Brasil, essa geração de 40 é reflexo, ainda, da década que a precedeu, ou seja, a geração de 30, período em que o intelectual (não somente brasileiro, mas também o latino-americano) foi obrigado a se posicionar politicamente. Em suma, o que ocorre nessa fase (denominada como segunda etapa do Modernismo) é um esmaecimento da radicalidade estética da primeira fase, havendo a opção por uma linguagem mais simples e mais didática que pudesse contribuir para a luta político-ideológica no campo da superestrutura.

 

É um momento muito interessante da literatura brasileira, justamente em decorrência dessa dicotomia ideológica entre os pensamentos de esquerda (inovador e até certo posto “iconoclasta”) e de direita (conservador e autoritário, por vezes até reacionário).

 

Sob essa ótica, não é difícil de perceber a importância que o PCB imprimiu à biografia de Prestes: com o partido então na ilegalidade, a ida de Jorge Amado para Montevidéu e Buenos Aires não representava apenas aproximar politicamente o PCB com os demais partidos comunistas da região, intuindo uma campanha pública pela anistia de Prestes; representava, acima de tudo, salvar-se a si próprio5.

 

Nesse sentido, podemos perceber que, dentro dessa intimidade com as culturas nacional e internacional, Amado fichou assuntos, combinou e recombinou compromissos, multiplicando suas anotações, realizando pesquisas, guardando as cartas trocadas com Luís Carlos Prestes.

 

Devemos salientar que Jorge Amado almejava escrever uma biografia sobre Prestes e, para isso, buscou sedimentar muitos estudos e investigações sobre a vida do líder comunista.

 

Boa parte desses materiais é esquematicamente composto por confidências, desabafos, anotações esparsas, dizeres saudosistas, intrigas, entre outros que armazenam o caráter subjetivo do escritor baiano.

 

O instigante disso tudo é que boa parte desses manuscritos acrescentam novas interpretações que subsidiam a sua produção já publicada, ou mesmo revela novos acréscimos e validações. Devemos salientar que a maior parte dessas fontes primárias já estão fotografadas e arquivadas no acervo do Núcleo de Literatura e Memória.

 

 

3 ALGUNS PERCAÇOS DA PESQUISA NOS ARQUIVOS INÉDITOS DE JORGE AMADO

 

Em uma visita ao laboratório nuLIME, sediado no Centro de Comunicação e Expressão, locado na Universidade Federal de Santa Catarina, na cidade de Florianópolis, e durante o curso “A historiografia da literatura brasileira”, ministrada pela professora Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos, no primeiro semestre de 2013, foram manuseados documentos, manuscritos, datiloscritos, postais, publicações em jornais, correspondências, dentre outros contidos no acervo inédito do escritor Jorge Amado. Tal acervo está sob a custódia do próprio laboratório e da pesquisadora que coordena o mesmo.

 

O núcleo é composto pela preservação e memória dos autores da literatura catarinense, tendo boa parte desse acervo digitalizada, por vários pesquisadores no Portal Literatura Catarina (www.portalcatarina.ufsc.br).

 

É muito interessante a qualidade de preservação desses materiais, mesmo amarelados e corroídos durante o tempo – nada passa despercebido a um olhar mais criterioso – sobre a validade dos mesmos para a crítica cultural acerca do quase total desconhecimento que circunstanciaram os episódios da vida de Amado nos anos de 1941 a 1942.

 

Tivemos acesso ao arquivo do escritor Jorge Amado por intermédio de visita coordenada pela pesquisadora Tânia e sua assistente, a bolsista de graduação Thalita da Silva Coelho, que escreveu sua monografia intitulada Jorge Amado e os anos 1941-1942: documentos para uma história ainda não contada. Em suma, durante a permanência no local, pudemos manusear os espólios e recolher amostras de páginas do mesmo documento referente ao datiloscrito.

 

A maior parte dessa documentação consultada no Núcleo de Literatura e Memória está inserida num período bastante obscuro da vida de Jorge Amado, os anos de 1941 a 1942. Neste, ao que tudo indica, o escritor baiano encontrava-se (auto) exilado durante o regime político do Estado Novo, no Uruguai e na Argentina6.

 

A mala dos documentos foi doada pela professora Dra. Leonor Scliar à Prof. Dra. Tânia Ramos que atualmente coordena o próprio núcleo. “No acervo legado por um escritor estão presentes indícios materiais de toda espécie de elementos que a criatividade literária mobiliza.” (BORDINI, 2005, p. 258).

 

Foi a partir daí que os materiais tiveram a envergadura de serem sequencialmente digitalizados e disponibilizados à comunidade acadêmica de outras universidades. Gradativamente, os materiais foram sendo institucionalizados, no sentido da questão dos direitos autorais e da busca.

 

Não obstante, na mala de documentos de Jorge Amado, é possível encontrar: esboços de romances inacabados, avaliações de romances, esquemas de obras, rascunhos ficcionais, dentre outros.

 

De acordo com Phillipe Willemart (1999, p. 259), os objetos guardados pelo escritor revelam as circunstâncias da produção que o mesmo se encontra envolvidos, transparecendo as razões e motivos do próprio fazer artístico.

 

Os materiais catalogados ofertam várias possibilidades de estudos genéticos que possam revelar um período tão obscuro da vida de Amado7.

 

Todos estão sobrepostos esquematicamente em pastas amarelas, numeradas para facilitar a localização, situadas nas estantes embutidas que compõem o ambiente. É neste repertório que selecionamos a publicação do lamento de Jorge Amado ao suicídio do escritor Stefan Zweig.

 

Em outras palavras, são recordações das variadas circunstâncias que abrangem um período muito pouco conhecido do autor de Terras do Sem Fim.

 

Nesse sentido, são datiloscritos com anotações nas margens, entrelinhas e folhas de guarda, algumas rasuras a lápis ou a tinta na letra do escritor, foram reescritos à sua maneira.

 

Segundo Phillipe Willemart: “[...] o pesquisador trabalha como se essas operações fossem variantes, analisa e opera os textos como se isso tivesse consequências apenas no nível da frase, tentando achar a intenção do escritor que motivou a mudança.” (WILLEMART, 1999, p. 198).

 

Percebemos, na leitura dessas fontes, uma preocupação forte do escritor baiano em suprir a falta que o escritor austríaco faria nas letras nacionais, tendo em vista seu exílio no Rio de Janeiro. Portanto, a investigação desses materiais pode revelar o grau de intimidade do escritor baiano acerca da cultura nacional e suas demais circunstâncias ocorridas no mesmo período.

 

 

4 ANÁLISE DO DATILOSCRITO “TODA UMA LITERATURA SUICIDOU-SE COM STEFAN ZWEIG”

 

A pesquisadora Arlette Farge, no seu clássico ensaio, O sabor do arquivo (2009), tece considerações filosóficas referentes às questões epistemológicas da preservação e investigação dos arquivos espalhados.

 

“Quem tem o sabor do arquivo procura arrancar um sentido adicional dos fragmentos de frases encontradas; a emoção é um instrumento a mais para polir a pedra, a do passado, a do silêncio.” (FARGE, 2009, p. 37).

 

Ora, ao que tudo indica a autora parte de uma reflexão aprofundada sobre o tema e substancia aquele pesquisador que deseja alcançar, por meio do seu esforço, o máximo de interpretação de um determinado arquivo.

 

Se fôssemos seguir a sua reflexão como base, teríamos que buscar uma forma de questionar os datiloscritos do escritor Jorge Amado, tentando ao máximo sondar seus possíveis liames genéticos, ou seja, o sentido das frases, sua sintaxe, carga semântica, arrancando o significado dos vocábulos, ou seja, “tirando o sabor”, como afirma o próprio título do livro. Páginas adiante, teremos novas reflexões acerca de tal conteúdo.

 

Paciência de leitura; em silêncio, o manuscrito é percorrido pelos olhos através de numerosos obstáculos. Pode-se tropeçar no defeito material do documento: os cantos corroídos e as bordas danificadas pelo tempo engolem as palavras [...]. (FARGE, 2009, p. 37)

 

Portanto, os dois fragmentos extraídos da obra de Farge indicam que o esforço gradativo, assim como o empenho realizado na extração do conteúdo da obra, jamais deve ser ignorado ou mesmo abolido.

 

O pesquisador Antonio Celso Ferreiro, no seu artigo A fonte fecunda (2009), estabelece uma série de reflexões sobre o aproveitamento da literatura como fonte indispensável para a articulação dos artefatos e a reconstrução histórica.

 

Navegando seus horizontes por meio da exemplificação de romances como ferramenta epistemológica no trato das fontes históricas, o autor versa sobre os encadeamentos da história com a literatura.

 

O binômio fonte primária/fonte secundária predomina durante a elaboração do seu texto, evidenciando uma preocupação por parte do pesquisador nos procedimentos adotados. O autor

nos ensina que:

 

A pesquisa histórica tem contribuído justamente para a compreensão dos modos como a literatura foi concebida, particularizada em relação a outras expressões orais ou escritas, transmitida, lida, compartilhada ou apropriada pelos diferentes grupos sociais [...]. (FERREIRO, 2009, p. 68)

 

Ora, o estudioso busca alicerçar as diferentes vertentes que o olhar do historiador pode proporcionar ao texto literário. Linhas adiante o autor discorre que: “O papel do historiador é confrontá-las com outras fontes, ou seja, outros registros que permitam a contextualização da obra para assim se aproximar dos múltiplos significados da realidade histórica” (FERREIRO, 2009, p. 77).

 

Em suma, ambos os excertos são constructos necessários à prática do ofício do historiador, corroborando para uma devida reflexão e construção na articulação entre a dualidade das fontes primária e secundária.

 

Uma questão faz-se importante equacionarmos neste momento: como poderíamos estudar o datiloscrito “Toda uma literatura suicidou-se com Stefan Zweig”, redigido por Jorge Amado para o Jornal La Razon?

 

De acordo com a pesquisadora Ana Maria Camargo, em seu artigo Arquivos pessoais são Arquivos (2009), os documentos contidos no arquivo deve ser contextualizado com as suas origens, fazendo o investigador refletir sobre suas correlações genéticas.

 

“Organizar e descrever qualquer arquivo em função de seu valor secundário significa retirar dele, exatamente, os atributos probatórios próprios de sua relação com o contexto de origem” (CAMARGO, 2009, p. 03).

 

Concordamos com as formulações da pesquisadora que tem a devida consciência ao qual todo datiloscrito deve ser contextualizado caso deseje apresentar as devidas condições para fins de interpretação. No mesmo parágrafo, a autora salienta:

 

“A ideia de que só se obtém informação quando se compreende seu significado no contexto em que foi produzida é, aliás, praticada pelos praticantes de várias disciplinas.” (CAMARGO, 2009, p. 03).

 

Sabemos que seria tarefa árdua, elucidarmos todas as informações contidas na publicação realizada por Jorge Amado sobre o suicídio do escritor Stefan Zweig. Mesmo que recorrêssemos a várias fontes e arquivos da história do mesmo período – buscando uma exaustão dessa discussão – não teríamos condições de responder todas as questões formuladas.

 

É sobre esse aspecto que a estudiosa Silvia Hunold Lara, em seu artigo Os documentos textuais e as fontes do conhecimento histórico (2008), versa a atitude de formulação de novas práticas de leitura de arquivos, assim como sua consequente investigação.

 

Logo no início do seu trabalho, a autora orquestra uma ampla problemática, buscando sondar o possível estatuto que tangencia as variadas circunstâncias da investigação através das fontes primárias.

 

Ao longo do raciocínio, Silvia busca responder sem jamais esgotar a relação da prática da pesquisa dos arquivos com algumas formulações de ordem teórica, mergulhando o leitor no mesmo pensamento.

 

Nenhum pesquisador na área da história pode dispor de todos os textos produzidos no passado. Mesmo que isso porventura acontecesse, nenhuma pesquisa poderia ser feita com todos eles – todo trabalho de investigação implica separar e selecionar os documentos capazes de oferecer resposta e perguntas específicas. (LARA, 2008, p. 22).

 

Os datiloscritos8 são numerados a lápis seguindo uma sistematicidade e organicidade que facilita sua localização, assim como seu chamamento de busca para fins de catalogação9.

 

As margens não são ignoradas; apenas a frente das folhas é utilizada pelo escritor; páginas de papel de seda; sem fungos10 ; somando textualmente 28 linhas escritas na primeira folha.

 

O tamanho do papel 28 cm x 22 cm; gramatura 20g/m. A numeração correspondente fica no canto inferior direito do leitor. De igual modo, o papel do datiloscrito apresenta poucas partes amareladas que não comprometem a leitura. Diante do material datilografado em vermelho, o leitor terá a possibilidade de identificar quase um documento que transborda das palavras para emoção.

 

O que se constata é que a escassez de informações margem do papel, deixada por Jorge nesse documento, dificulta o trabalho do pesquisador em busca de novas formas de interpretação.

 

As correções adicionais à caneta preta, letra deitada e pouco legível, realizadas por Amado correspondem boa parte ao nível de sintaxe gramatical da língua portuguesa, ou seja, aquele vocábulo ou frase que pudesse soar melhor ao documento redigido.

 

As rasuras se manifestam sobre a repetição do tipo “XXXX” – (poucos viveram após 1913) substituído (poucos tiveram coragem após 1918) da própria máquina de escrever de Amado, justificando a nulidade daquele vocábulo ou expressão.

 

Portanto, a tentativa de deciframento das rasuras do texto de Amado poderia ser um possível desdobramento a ser explorado durante uma investigação mais detalhada.

 

De um modo geral, existem poucas trocas de palavras ou expressões que desejam trazer novas informações ou adicionar algum dado importante, embora, algumas condizem à busca de um novo sentido.

 

A palavra suprimida não desaparece e fica enterrada no inconsciente genético, embora às vezes o próprio escritor rasure sem grande convicção, deixando a palavra ou a expressão visível, como se previsse uma retomada. (WILLEMART, 1999, p. 92).

 

A troca, quando ocorre, é quase feita por sinônimos que ganham um sentido mais exato ou que arrematam sintaticamente o próprio texto.

 

A escassez de vocábulos soltos no corpo do datiloscrito indica que, possivelmente, o material tenha sido redigido sem a necessidade de um esboço anterior.

 

A língua portuguesa11 escrita naquela época implica em uma série de vocábulos que atualmente caíram em desuso, a saber: “Paiz”; “atraz”; “Quasi”; “Reaes”; “Deante”; “Espirituaes”, entre outros.

 

Cabe mencionarmos que a palavra “hortencia” aparece no início e no último parágrafo anunciando as belezas naturais da cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro.

 

O uso de adjetivos é frequente na escrita de Amado, tendo em vista as exaltações subjetivas de cunho estético, com vistas a “ufanar” a qualidade de escrita de Stefan Zweig.

 

Como mote inspirativo, servindo de lide para aquele leitor mais curioso, o autor Jorge Amado inicia o artigo com uma frase (“Ya no me queda esperanza”) que Zweig deixou anotada antes

de cometer o suicídio.

 

Logo no início do artigo, Jorge Amado constrói retoricamente uma poética contextualização histórica nacional e mundial (Conferência dos Chancelleres no Rio de Janeiro e Segunda Guerra Mundial, na Itália e Alemanha)12 dos principais acontecimentos que circunstanciavam o período de vida do escritor alemão no Rio de Janeiro.

 

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Notas:

 

1(*) Artigo escrito a quatro mãos, por Cristiano Melo de Oliveira e Jóe José Dias, e coordenado pela Professora Doutora Tânia Regina de Oliveira Ramos, em 2014, e publicado na Revista ÁGORA (ISS 0103-3557).

 

2 Segundo esse aspecto, teremos novamente as reflexões da pesquisadora Eneida Leal Cunha: “Os documentos da atuação política articulada à longa atividade literária de Jorge Amado ultrapassam o panorama nacional, não só graças à diferença cultural dramatizada nos romances, mas pela paradoxal convergência de dados biográficos – os vínculos com o Partido Comunista Brasileiro, a consequente inserção do escritor nas redes que conectavam internacionalmente os intelectuais militantes e, um seu correlato imposto pela história política brasileira, os anos vividos no exílio e as amizades que então desenvolveu”. (CUNHA, 2003, p. 120-121)

 

3 Segundo esse aspecto, teremos novamente as reflexões da pesquisadora Eneida Leal Cunha: “Os documentos da atuação política articulada à longa atividade literária de Jorge Amado ultrapassam o panorama nacional, não só graças à diferença cultural dramatizada nos romances, mas pela paradoxal convergência de dados biográficos – os vínculos com o Partido Comunista Brasileiro, a consequente inserção do escritor nas redes que conectavam internacionalmente os intelectuais militantes e, um seu correlato imposto pela história política brasileira, os anos vividos no exílio e as amizades que então desenvolveu”. (CUNHA, 2003, p. 120-121)

 

4 Outrossim, sobre tal contexto histórico, o jornalista e biógrafo de Stefan Zweig, Alberto Dines, busca argumentar: "[...] Vargas proclamara o Estado Novo, cópia do homônimo português, lançado dez anos antes. Congresso fechado, partidos políticos dissolvidos, nova Constituição (conhecida como Polaca, porque inspirada na carta fascista do Marechal Pilsudsky), formalizada a censura antes vigorando disfarçada – eis o regime sutilmente autoritário que Zweig encontrara em 1936, desabrochando numa ditadura clássica.” (DINES, p. 218)

 

5 Para saber mais sobre assunto ver: CARONE, Edgard. A República Velha (vol. 1) Instituições e classes sociais. 3.ed. São Paulo: Diefel, [s/d].

 

6 Para saber maiores detalhes da vida de Jorge Amado consultar o livro. AMADO, Jorge. Navegação de Cabotagem. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

 

7 É importante relatar que no livro autobiográfico Navegação de Cabotagem, do escritor Jorge Amado, os anos de 1941 a 1942 formam grandes lacunas sobre a vida do autor.

 

8 Aqui podemos identificar a noção de manuscrito junto à acepção realizada por Claudia Amigo Pino e Roberto Zular no seu livro Escrever sobre escrever (2007). Os mesmos nos ensinam que “[...] por manuscrito entende-se qualquer documento no qual seja possível encontrar um traço do processo de criação, e não necessariamente os manuscritos autógrafados (do próprio punho do escritor). Assim, a crítica genética considera manuscritos, por exemplo, a correspondência do autor (se nela há discussões sobre a criação de suas obras), os datiloscritos (versões datilografadas diferentes do texto publicado), ou mesmo as gravações de voz com ideias sobre uma obra.” (PINO;ZULAR, 2007, p.18)

 

9 (Localização número das pastas 1165-116) 09 g COELHO, Thalita da Silva. Jorge Amado e os anos 1941-1942. Documentos para uma história ainda não contada. (Trabalho de Conclusão de Curso) Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.

 

10 Sobre a questão dos fungos nos documentos poderíamos relatar: “Manchas producidas por microorganismos. Los longos y bactérias producen manchas de distintos tonos em el transcurso de su desarollo. Este tipo de manchas, al igual que las anteriores, no son habitualmente solubles em agua y sólo pueden ser eliminadas mediante limpeza química.” (CLAVÁÍN, 2009, p. 64)

 

11 Em 1907, a ABL – Academia Brasileira de Letras inicia um processo de simplificação em suas publicações, porém em 1910, quando é implantada a República em Portugal, uma comissão portuguesa inicia um trabalho de simplificação e uniforme do uso ortográfico da língua em publicações oficiais e educacionais. A reforma, contudo, não se estendeu até o Brasil. Portanto, em 1915, a ABL buscou harmonizar a ortografia brasileira com a ortografia portuguesa, mas tal decisão fora revogada em 1919. Depois de ditos e não escritos em cada país, e do acordo de 1931, que nunca sairia do papel; em 1943, em Lisboa, é realizada uma reunião entre Brasil e Portugal para o planejamento de padronização dos vocábulos. Fonte: Disponível em: <http://www.infoescola.com/portugues/historia-dos-acordos-ortograficos>. Acesso em: 08 jul. 2013.

 

12 Sobre a Conferência dos Chancelleres, podemos recuperar algumas reflexões do jornalista Alberto Dines: “A Conferência dos Chancelleres foi um sucesso, na linha antinazista destacaram-se Oswaldo Aranha e o Ministro do Exterior mexicano, Pinilla. A Argentina, de tradição militar germânica, tentou de todas as maneiras impedir a aprovação da resolução recomendando o rompimento das relações dos países do continente com o Eixo. A 28 de janeiro, os mesmos jornais que haviam saudado a vitória de Franco na Espanha anunciavam em letras garrafais o rompimento diplomático com a Alemanha, Itália e Japão.” (DINES, 1988, p. 365-366).