Existem ditaduras de esquerda?
A Lindemberg Saldanha, Vascaíno como eu
Temos visto nestes últimos dias no Brasil manifestações de militantes extremistas que estão nas ruas pedindo intervenção militar. Descontentes com os resultados das eleições presidenciais, que “destronaram” o presidente corrupto e genocida Jair Messias Bolsonaro, trancam rodovias federais com o conluio das polícias militar e federal.
Embora estejam sendo ironizados pela maioria da população e desprezados por quase toda a imprensa brasileira, o fato é que este movimento organizado está testando não somente a paciência da justiça, mas principalmente a capacidade de organização e de mobilização da classe trabalhadora, que é quem realmente pode enfrentar e derrotar o bonapartismo tupiniquim.
Esse movimento, insuflado pelo presidente e seus filhos e por lideranças políticas da extrema-direita como Carla Zambelli e Alexandre Torres, está se organizando para tentar impor um golpe militar nos próximos períodos. Se irão lograr sucesso ou não só a conjuntura e a luta de classes poderão nos dizer.
É um movimento arquitetado com um viés claramente reacionário e que vem sendo chamado de "bolsonarismo", aludindo à figura nefasta do presidente da república. Mas o fato é que a base que o sustenta não passa da velha direita reacionária, setor que incentivou, apoiou e ajudou a financiar a ditadura militar durante os anos de 60, 70 e 80 no Brasil. Ou seja, vai muito além da figura de Bolsonaro e de sua família. Bem da verdade, o presidente acabou por surfar a onda deste ascenso que ganha força no país, mas que é mundial.
O exemplo brasileiro é ilustrativo do que pretendemos falar. Afinal de contas, se é verdade que o governo de Jair Bolsonaro funcionou do início ao fim respeitando as instituições do estado brasileiro, também não é mentira, a julgar pelo que estamos vendo nas ruas deste país, que tenha aparatado, em torno de seu programa, uma pequena e furiosa militância engajada que influencia milhares de pessoas nas redes sociais, além de outras mídias mais convencionais, como algumas emissoras de rádio e de televisão.
Este foi um movimento que não observei no texto que escrevi sobre seu governo, lá em 2019, ainda no início de seu mandato (clique aqui para ler), embora a caracterização do que fora o governo Bolsonaro esteja correta em linhas mais gerais. Não observar esta movimentação paralela pode ter sido um erro, contudo, naquele instante ainda não estava clara essa base furiosa e fiel agindo nos bastidores políticos de seu governo.
É certo que a essa garrafa de oxigênio é pequena, bem o sabemos. Todavia, não o suficiente para não fazer um estrago enorme em nossa sociedade a depender da correlação de forças políticas e das movimentações das classes sociais. Pressupondo, por exemplo, que Bolsonaro conseguisse aplicar um autogolpe, como chegou a se conjeturar, ou então – o que seria pior – que sua base de apoio angariasse forças para apoiar um golpe militar desde a base, qual o caráter deste governo: de direita ou de esquerda? Seria um governo com liberdades democráticas em que trabalhadores conseguissem se organizar ou extremamente violento e autoritário? Dois bombons para aqueles(as) que foram categóricos(as) em afirmar que seria um governo de extrema-direita autoritário, por eclodir como reação a uma situação política desfavorável à visão de mundo destes setores.
E é justamente disso que trataremos neste texto. Afinal, existem problemas mal resolvidos no debate político que precisam – a meu ver – ser melhor trabalhados. Um deles é o próprio conceito de esquerda, visto muitas vezes de maneira ordinária. Outro – e que deriva deste primeiro – é o que chamamos de regimes autoritários, ou melhor, de regimes autoritários de esquerda, ou ainda de ditaduras de esquerda. Existem de fato ditaduras de esquerda?
Afinal, o que seriam esquerda e direita?
É importante frisar que já temos um texto em que abordamos essa problemática em específico, acentuando todas as suas nuanças (para ler o texto clique aqui) e mostrando todos os seus equívocos. E que, portanto, não pretendemos nos repetir por aqui. Nossa ideia aqui é simples: a de, a partir do conceito mais difundido de esquerda (repleto de problemas é bom que se o diga), refletir sobre a existência - ou não - de regimes autoritários que trafegam sobre seu espectro político.
Ora, se é verdade que no debate político há termos que de tão ordinariamente empregados parecem ter significado óbvio, sem necessidade de maior reflexão sobre eles, como é o caso do conceito de esquerda, é ainda mais verdadeiro que sempre o empregamos da maneira mais abstrata e ampla, justamente por pensarmos dominá-lo em toda a sua extensão. Seguindo essa lógica, por exemplo, entre os movimentos de oposição ao ainda atual presidente Jair Bolsonaro todos se identificam como de esquerda, independentemente da composição política da organização. A direita está no governo, seguindo essa mesma lógica. Contudo, a aparente simplicidade oculta questões bastantes profundas.
Mas continuemos com nossa visão mais genérica e global: a de que esquerda seria um conceito referencial de movimentos e ideias compostos com vistas a um projeto de transformação social em benefício das classes oprimidas e exploradas. Dentro desse campo, em seus mais distintos graus (radicalidade), caminhos (projeto político estritamente dito) e formas (partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos...) situaría-se uma esquerda complexa e com um espectro de cores e matizes bastante amplo, porém sempre ligada aos interesses das classes oprimidas, independentemente da localização política daquela organização.
Sob essa ótica, não é difícil de perceber a aproximação da esquerda com a noção de progresso. E sob esse ponto de vista bastante genérico, cabem programas que a princípio são conflitantes teórica e politicamente, mas que estariam unidos – e efetivamente se uniram em certas ocasiões na história – por algum projeto comum contra determinada ordem vigente. No Chile de Allende, por exemplo, o inimigo de Pinochet foi “a esquerda unida de socialistas, comunistas e outros progressistas" – o que a tradição europeia (e aliás a chilena também) conhecia como "frente popular'".
Assim, esquerda seria um campo político. Não necessariamente de classe, como se vê. Pelo contrário! E aí resida talvez o principal problema conceitual. No debate político brasileiro - como em qualquer outro lugar, creio - esquerda e direita não são explicitamente tornados sinônimos de proletariado e burguesia. Isso é herança dos campismos de todos os tipos, sendo, no caso brasileiro, a origem mais imediata propiciada pelas elaborações do PCB (Partido Comunista Brasileiro) sobre a revolução brasileira por etapas, herdadas do stalinismo.
Dessa maneira, seria mais adequado utilizar o conceito de esquerda - e por conseguinte o de direita - não para designar o conflito entre opressores e oprimidos, trabalhador e burguesia etc, mas para descrever a trajetória de determinada organização ou partido, afirmando, por exemplo, que esta(e) "foi à direita" ou "foi à esquerda". Isento desses valores de classes, e sob essa ótica, figuras que comporiam historicamente o espectro político da direita, dentro de uma determinada conjuntura, poderiam girar à esquerda, por exemplo.
Esquerda, portanto, como sinônimo combinado de valores progressistas e da classe trabalhadora (ou classes oprimidas) só faz sentido no âmbito de um tipo determinado histórica, teórica e politicamente de programa da revolução brasileira: o "democrático popular". A esmagadora maioria da esquerda faz uso desse referencial. E é a partir deste conceito genérico que partiremos nossa reflexão, mesmo porque a forma como compreendemos o conceito não alteraria a conclusão de nossa argumentação.
Os regimes bonapartistas
Chamamos de bonapartismo a ideologia política inspirada na forma como Napoleão Bonaparte e seu sobrinho, Napoleão III, governaram. A origem ideológica é francesa e alemã e uma de suas qualidades mais proeminentes é o culto à personalidade.
Afora, feito o apanhado geral sobre a denominação de esquerda (e de direita), avancemos rumo a uma conceitualização rápida do que seriam os regimes autoritários, em especial o bonapartismo, do qual temos mais experiência na América Latina, e o fascismo clássico europeu, cujos casos mais famosos se deram na Alemanha e na Itália. Falaremos também um pouco do stalinismo, regime que suplantou os ideais e as conquistas da Revolução Russa, destruiu vários processos revolucionários e restaurou o capitalismo no primeiro estado operário da história.
Dizer que um governo é democrático não significa que ele não seja violento. A essência de todo Estado, já dizia Engels, é a violência organizada a serviço de uma determinada classe social. Portanto, as democracias são violentas, e praticam a repressão duramente. Basta vermos o quanto mata a polícia brasileira, quantos mil presos temos nos presídios, a quantidade de massacres perpetrados nos últimos 30 anos, para vermos que não é a ausência de violência organizada pelo estado que distingue um regime do outro.
A democracia se distingue de todas os demais regimes de dominação burguesa por ela garantir a todos determinadas liberdades formais (liberdades democráticas). O direito de reunião, de expressão, de livre manifestação, de livre associação são algumas dessas garantias. A garantia de um juízo justo, do direito a ampla defesa, de não ser preso sem um julgamento, nem de ser acusado sem uma lei previamente existente seriam outros.
Dizemos que é uma garantia formal porque, para exercer esses direitos, parte-se de condições muito desiguais e, muitas vezes, é impossível consegui-lo. Por exemplo, para um operário exercer seu direito de livre associação, ele corre o risco de perder seu emprego, pois, afinal de contas, o patrão dele é livre para contratar ou não seu serviço. Não temos nem o que dizer em respeito ao direito a ampla defesa, ao julgamento justo etc.
A outra característica da democracia burguesa é a tripartição dos poderes, divididos em executivo, legislativo e judiciário. É uma fórmula que permite que os diversos setores burgueses se vigiem mutuamente no exercício do controle do Estado.
Um terceiro aspecto importante da democracia burguesa é a elegibilidade dos representantes e governantes. Há lugares em que, inclusive, se elegem juízes e delegados, noutros apenas os deputados. No entanto, não apenas as democracias fazem eleições e o fato de que estas existam não são sinônimos de democracia. Ditaduras, como foi o caso da brasileira, realizam eleições. Nestes casos, os organismos eleitos nas eleições não são normalmente os que governam. Voltaremos a isso mais a frente.
A própria democracia burguesa não ocorre de maneira sempre igual. Em primeiro lugar, ela é fruto das diversas formas em que foi instituída. Temos as repúblicas presidencialistas, onde a figura central é a do poder executivo, do presidente; os regimes parlamentaristas, em que é o parlamento que governa e as monarquias constitucionais que, ao lado do parlamento e do executivo, seguem existindo de forma mais ou menos decorativa as famílias monárquicas.
Além disso, é bom que se diga, a democracia varia ao longo tempo e do espaço. A democracia nos países imperialistas são, normalmente, muito mais democráticas que nos países coloniais e semi coloniais. Há muito mais liberdade real na Europa e nos EUA, que no Brasil, Argentina e México, por exemplo.
A democracia apresenta uma série de vantagens, quando ela pode ser aplicada, com a permissão não apenas para resolução dos problemas entre os distintos setores burgueses de forma mais pacífica, mas, também, por proporcionar as melhores condições para cooptar para dentro do regime burguês a parcelas da classe operária, e mesmo da pequena burguesia que, em determinadas condições, poderiam se enfrentar violentamente contra o Estado e o regime.
Além disso, a democracia se monta em um Estado que funciona à custa de funcionários permanentes, uma burocracia que de fato controla muito mais coisa do que se imagina. Milhões de funcionários permanecem na administração dos negócios de Estado. Muda-se o governo e, inclusive, muda-se o regime e muitos destes permanecessem nesta tarefa. Isto diminui a influência das eleições sobre o conjunto dos negócios burgueses e garante a burguesia que, mesmo que porventura as eleições saiam do controle, e se eleja um parlamento ou um governo menos dócil, o aparelho do próprio estado seja ainda controlado pela burguesia por conta de sua própria natureza.
No entanto, os regimes de dominação das classes não são como um menu onde a classe dominante escolhe, a seu bel prazer, como ela vai dominar as demais classes da sociedade. Entram aí outros fatores que vão muito além da vontade das classes. Uma série de elementos que poderiam ser resumidos na seguinte expressão: “correlação de força na luta de classes”. Neste pomposo nome, encontra-se a situação econômica em geral. Quando se tem uma correlação de forças favorável para a classe dominante, tende-se a permitir uma dominação com menos problemas e, quando ela é desfavorável, é comum, inclusive, que surjam divisões na própria classe dominante, na situação política, na relação entre os estados, no grau de descontentamento das classes dominadas e no seu grau de mobilização etc.
Dadas as contradições dentro da própria burguesia, uma fração dela pode lançar a carta do Bonapartismo. Este regime se difere da democracia, não pelos temas meramente formais, mas pelo conteúdo de sua dominação. Em primeiro lugar, não são nestes órgãos eleitos, no parlamento ou no presidente da república que o poder reside. O Bonaparte se apoia no corpo de funcionários do próprio estado para governar, ou seja, no empoderamento da burocracia estatal, por outro lado, e principalmente, ele se apoia também no exército permanente. É um governo do aparelho do estado que, aparentemente, se torna independente da sociedade. À sua cabeça está o iluminado, o César, o Napoleão, o homem forte.
Além disso, podendo manter a tripartição do poder, ainda que formalmente, a verdade é que o Bonaparte submete a justiça e o legislativo ao seu poder exercido por meio do executivo. Por fim, as chamadas “liberdades democráticas” são reduzidas. Inclusive a liberdade para setores burgueses. Um regime bonapartista fecha jornais, prende opositores, persegue os dissidentes, impede ou dificulta o exercício da liberdade de expressão, de organização e manifestação. Mas faz isso nos limites que seu próprio aparato militar – policial – burocrático permite. Este é um elemento importante, pois, veremos adiante, que no fascismo isso é diferente.
Há uma importante variação do bonapartismo, o chamado bonapartismo sui generis, que são regimes que se apoiam nos setores operários para enfrentar setores de sua própria burguesia e, também, ao imperialismo, e assim conseguir melhores condições para o país no cenário mundial. São regimes que surgem nos países semicoloniais, em condições muito específicas da luta de classes. É um regime burguês bonapartista, ou seja, com características autoritárias, ditatoriais, que também golpeiam os setores operários independentes, mas que faz importantes concessões a outros setores.
Há uma série de exemplos deste tipo de regime que podemos citar; a América Latina passou por vários deles. O governo de Cárdenas (México), Nasser (Egito), Juan Perón (Argentina), Velasco (Peru), Chávez (Venezuela) são todos regimes bonapartistas sui generis. Velasco deu sedes imensas aos sindicatos, Nasser nacionalizou mais de 80% da economia e manteve relações muito próximas com a União Soviética. Cárdenas nacionalizou a indústria petroleira e criou um conselho de administração que incorporava os sindicatos; Perón, na Argentina, criou uma legislação protetiva e ia frequentemente aos sindicatos tomar mate com os trabalhadores e dirigentes sindicais. Do ponto de vista social, podem ser circunstancialmente mais progressivos, pois dão aos trabalhadores melhores condições para a venda de sua força de trabalho. Do ponto de vista político, são uma tragédia, pois borram a consciência dos trabalhadores sobre a necessidade de uma organização política independente. O peronismo, o nasserismo, o velasquismo, o chavismo e por aí vai, são correntes burguesas que se apoiam nesta experiência e no saudosismo que ela causa diante da piora permanente do nível de vida das massas.
Há uma longa discussão sobre se bonapartismo se limita a estes elementos ou se as demais ditaduras e governos autoritários também podem ser considerados bonapartismo. Para além desta polêmica vale a pena destacar alguns pontos. Na América Latina foram comuns as ditaduras militares, uma variante do bonapartismo clássico, onde é a instituição, ou as instituições militares (nomeadamente a marinha, exército e a aeronáutica), que governam. Este é um tipo de regime baseado nas Forças Armadas e que normalmente põe um general para governar. Vale lembrar que Velasco, Chávez, Perón e Nasser eram militares.
O Exército, pelo seu peso social e capilaridade, confere ao regime uma base política que, dependendo das circunstâncias, pode lhe dar longevidade. A ditadura militar brasileira, por exemplo, durou 21 anos. Como todo bonapartismo, a ditadura militar elimina as liberdades democráticas na medida em que seu aparato policial militar o permite, reprimindo, inclusive, setores burgueses dissidentes. Poderíamos falar, ainda, de regimes menos comuns como a teocracia no Irã, baseado nos Aiatolás, ou no governo absolutista da Arábia Saudita, onde ainda se apedreja mulheres, corta-se a mão de ladrões e uma série de "castigos medievais" são aplicados legalmente.
No caso brasileiro em específico, partindo do que presenciamos nos atuais atos de ruas em andamento no Brasil, podemos afirmar que um novo governo sob a batuta das Forças Armadas, tendo como seu principal porta-voz Bolsonaro, seria uma governo ditatorial de direita (como todas as ditaduras militares e como todos os governos bonapartistas), uma variação do bonapartismo clássico. Não um governo fascista como se apregoa, embora muitas das pautas políticas se intercruzam.
O fascismo: a radicalização da opressão
Resolvi iniciar a dissertação sobre estes temas a partir do fascismo. Por ser um tema que já escrevi com mais ênfase neste canal e com mais riquezas de detalhes (clique aqui para ler o texto), vou me dirimir a apresentar alguns pontos importantes para que compreendamos - em linhas gerais - a questão e avancemos no debate.
Por ser um regime eminentemente burguês, o fascismo é bastante diferente do regime bonapartista. E isso não porque não existam pontos de convergência entre ambos; Os há sim! No fascismo, como no bonapartismo, existe a figura do grande chefe, do grande líder, do salvador: o Führer, na Alemanha, e Perón, na Argentina, são exemplos clássicos disso. Uma vez no poder, o fascismo instaura uma ditadura de caráter policial profunda, como o bonapartismo. Assim como em outras formas de ditadura, o fascismo se apoia em uma ideologia que reforça as opressões preexistentes na sociedade (opressão nacional, racial, de gênero e sexual) e ataca as liberdades democráticas.
Esses os pontos de contato. Todavia, pelo seu próprio caráter de massas, o fascismo atinge graus de opressão mais efetivos e mais ferozes, como buscarei elencar a seguir.
Em primeiro lugar, o surgimento do fascismo é fruto de uma crise geral que se instala na sociedade, uma crise que, sendo de origem econômica, é também política e social e que coloca sucessivas vezes o real perigo da derrocada do regime de dominação burguesa. É necessário que setores majoritários da burguesia realmente creiam que estão sob um perigo iminente de sua total destruição para que ela lance mão desta cartada tão decisiva.
Em segundo lugar, o fascismo é fruto da incapacidade do proletariado de dirigir e apresentar uma saída para esta crise. Normalmente, o fascismo surge como uma resposta da pequena burguesia (classe social composta por pequenos empresários e pequenos proprietários arrendatários) por sua perda de fé na capacidade da classe trabalhadora de tomar o poder e resolver a crise nacional a que o país está submergido.
Em terceiro lugar, e muito importante, o fascismo é um movimento de massas, que abarca milhões de pessoas, em sua maioria pequeno-burgueses (pequenos empresários) arruinados pela crise ou temerosos de se arruinar e lúmpens que se enquadram em seus bandos uniformizados, cuja principal tarefa é atacar fisicamente, mesmo antes da tomada do poder, o proletariado.
Este poderoso movimento de massas é organizado e enquadrado militarmente. Apenas para termos uma ideia, os camisas pardas (milícia paramilitar nazista), na Alemanha, organizavam mais de 4,5 milhões de pessoas. É um movimento radical plebeu, em certo sentido descontrolado, que a burguesia usa como um aríete para enfrentar e derrotar o movimento de massas. Neste sentido, pese ter participação nas eleições e representantes parlamentares, o fascismo é antes de mais nada um movimento extraparlamentar, que usa métodos ilegais, desde antes da tomada do poder, para se enfrentar ao movimento de massas e à classe operaria
Esse movimento, que possui algumas características altamente contraditórias, com uma base popular e plebeia, é, uma vez que a burguesia ou alguns setores destas se decidam, armado, uniformizado e alimentado pela alta burguesia e seus setores mais decididos a dar uma lição duradoura à classe operária.
Seguimos então para a quarta característica do fascismo. Em seu processo de desenvolvimento em ascensão para a tomada do poder, mas também após conseguir este objetivo, o fascismo tem como objetivo travar uma guerra civil, sem tréguas, até que se destruam todas as organizações, de todos os tipos, que a classe operária possa ter. A intenção é destruir partidos, sindicatos, clubes, times de futebol, escolas, centros recreativos etc. Isto é diferente dos outros regimes que buscam incorporar as organizações operárias, ou coibi-las, ainda que sem poder acabar com elas. Ou seja, o objetivo do fascismo é a total atomização da classe enquanto ente organizado, em qualquer aspecto da vida social.
Para atingir este fim, não há aparelho policial que dê conta; nenhum Estado pode incorporar em si esta quantidade de agentes: se faz necessário envolver setores sociais inteiros. Por isso, a importância da pequena burguesia e do lumpesinato: eles são os agentes políticos da burguesia nesta luta mortal contra a classe trabalhadora.
Uma vez no poder, o fascismo tem que se adaptar ao Estado burguês e, ao mesmo tempo, exigir que aspectos deste Estado se adaptem a ele. Na Alemanha e na Itália foram necessárias purgas importantes para impor a ordem nas hordas fascistas após a tomada do poder. Famosa é a Noite das Facas Longas, quando, sob o comando de Hitler, as SA (abreviação de Sturmabteilung) passaram por uma pesada purga, em que seus principais dirigentes foram mortos, suas milícias depuradas e, finalmente, foram incorporadas às tropas de proteção nazistas SS (Schutzstaffel) e também ao exército.
Ainda assim, mantiveram-se importantes discrepâncias entre estes grupos armados. Citamos, como exemplo, as diferenças entre as SS, milícias cada vez mais militarizadas, e o próprio exército alemão. Basta lembrarmos que, já no meio da guerra, o general Erwin Rommel narrou em seus diários que ele não havia permitido ao seu filho servir nas SS que, naquele momento, já era um corpo militar de elite, exigindo que ele se engajasse no exército regular alemão.
Estas duas características do fascismo se devem ao mesmo motivo: o fato de ele ser um movimento de massas, que, por um lado, precisa ser controlado uma vez que chegue ao poder e, por outro, a tarefa de criar novos líderes, muitos de origem plebeia e popular. As outras instituições, como as milícias, exigem uma reacomodação ao chegar ao poder. Esta característica, tão importante do fascismo, de ser um movimento de massas é o que ao mesmo tempo: a) faz com que a burguesia o tema e só lance mão dele como último recurso; b) faz dele um inimigo tão perigoso e poderoso, o único que de fato pode levar a cabo sua missão de exterminar politicamente o proletariado.
Outro elemento de confusão importante é que o fascismo não apenas ataca os partidos e as organizações operárias, sejam elas de qualquer orientação política. O fascismo ataca também os liberais e, inclusive, os conservadores burgueses. Isso é assim pois o fascismo vê os liberais, assim como os conservadores mais ou menos “democráticos”, como cúmplices das organizações operárias, uma vez que “permitem” sua existência. Estes setores que muitas vezes apoiam o fascismo em sua ascensão crendo poder controlá-lo e negociar um acordo com ele. Veem-se ao final frustrados e, não raro, acabam encostados ao mesmo paredão que os membros da classe trabalhadora.
Disso não se deduz que o fascismo se coloque acima do capital e do trabalho, como uma expressão própria de Estado por cima das classes. Nada mais equivocado, pois, ao atacar as representações políticas tradicionais da burguesia, o fascismo expropria politicamente esta, mantendo e aprofundando sua dominação econômica. Ao destruir toda forma de organização operária, abrem-se as comportas para um aumento inimaginável da exploração da classe trabalhadora, permitindo congelar e reduzir salários e benefícios que os trabalhadores por ventura gozem. Além disso, o desenvolvimento de uma política armamentista leva a que o Estado se torne um grande comprador, o que acaba por beneficiar o conjunto da burguesia.
Como se pode perceber, o nazismo ascende ao poder fruto de uma reação burguesa à movimentação cada vez mais "radical" da classe trabalhadora. É um movimento reacionário, de massas e descontrolado que surge em um momento de acentuado confronto entre o proletariado e a burguesia. Como em política não existe vácuo, o fascismo entra em cena graças à paralisia das organizações trabalhadoras, graças à inanição de seus partidos, em especial o partido revolucionário e o reformista.
O stalinismo: a vitória da contrarrevolução no 1o Estado operário da história
Um pouco diferente são as condições que levaram ao surgimento do stalinismo, poucos anos depois da conquista pelo poder por parte dos bolcheviques. O primeiro deles é claro: a URSS era uma federação de repúblicas constituídas a partir da Revolução de Outubro de 1917 que colocara o a classe operária e o campesinato na cena política e na direção do primeiro estado operário da história.
Quando eclode a Revolução, no dia Internacional da Mulher, em São Petersburgo - então capital do império russo - a humanidade passava por um dos seus piores momentos: a 1a guerra mundial. É necessário ressaltar a importância da Revolução Russa no tocante a este conflito, pois fora ela, de fato, a grande responsável pelo término da guerra, que se encerrou após a consolidação do poder no país pela classe operária.
Essa vitória, marco na história da humanidade, obrigou os países capitalistas beligerantes, que lutavam pela divisão imperialista do mundo, a se armarem contra o Estado operário recém criado. A ascensão da classe operária ao poder gerou reações imediatas dentro e fora do país. De seu interior, a reação viera de um grupo bastante heterogêneo, formado por monarquistas, anarquistas e pelos socialistas revolucionários de direita. A este grupo, que obtivera o apoio de partições das forças armadas czaristas que não aderiram à Revolução, juntou-se outros 21 exércitos das principais potências do mundo.
Imediatamente à tomada do poder, uma das primeiras medidas a serem tomadas, fora justamente o de tirar a Rússia da 1a guerra mundial a partir de um tratado de paz com os alemães, o Tratado de Brest-Litovsk, o que agravara ainda mais os problemas internos, já que setores políticos conservadores eram eminentemente contrários à saída do país do conflito armado. A Revolução Russa, que praticamente não matara cidadãos (ao que consta morreram 07 pessoas, 05 delas atropeladas, segundo John Reed) durante a tomada do poder pelos trabalhadores, enfrentava um enorme desafio: garantir sua sobrevivência frente aos exércitos mais poderosos do mundo naquele momento. Bem, a URSS saiu vitoriosa do conflito que durou de 1918 a 1921. O exército vermelho, criado e comandado por Leon Trotsky, suplantou o avanço do exército branco, garantindo a manutenção do estado soviético. Mas a duras penas.
Esse conflito matara milhões de russos de fome, de tifo, ou mortos em batalha. E acentuara ainda mais as contradições de uma federação operária recém-criada sob os escombros do império russo, pobre. Dentre os óbitos, alguns milhares de velhos revolucionários, parte da velha guarda do partido bolchevique, que compunha a linha de frente política da Revolução de Outubro. Soma-se a isso, o isolamento da URSS. Estes elementos fizeram crescer setores burocráticos dentro do Partido Bolchevique e do Estado. E com a doença e morte de Lenin, em 1924, o Partido Bolchevique debilitou-se ainda mais.
Eis as bases que fizeram crescer o stalinismo como corrente contrarrevolucionária e reacionária, que, apoiada na burocracia do Estado - uma composição social parasitária oriunda do czarismo - retirou a classe operária do poder, centralizou o poder, assassinou, sucessivamente, a direção do Partido Bolchevique sobrevivente da guerra civil, pactuou com Hitler na 2a guerra mundial, desmobilizou as massas trabalhadoras no mundo, destruiu a Terceira Internacional, retirou praticamente todas as conquistas que a Revolução Russa tinha conferido às minorias nacionais da federação soviética, às mulheres e às liberdades democráticas da classe trabalhadora etc.
Leon Trotsky, o principal opositor do grupo de esquerda ao stalinismo, morto no México por esse poderoso aparato contrarrevolucionário que se tornou a URSS sob o comando de Stalin e seus sucessores, dizia que o que diferenciava o estado soviético da Alemanha de Hitler era justamente sua composição social: enquanto a Alemanha era uma nação capitalista imperialista, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas era um estado operário. Burocratizado, era bem verdade, mas ainda assim um Estado operário. De fato, o stalinismo não representou somente a negação das conquistas da revolução, representou a negação do marxismo enquanto teoria e prática revolucionárias.
Segundo Trotsky, o regime político soviético era idêntico ao fascista alemão, embora tivesse surgido de condições opostas. Reacionário e contrarrevolucionário em sua essência, levaria a primeira experiência operária ao declínio, a não ser que ocorresse uma nova revolução, desta vez política, já que as bases sociais e econômicas já estavam colocadas. Ou a classe operária expurgaria a burocracia stalinista do poder, ou o capitalismo seria restaurado neste Estado (e em todos os outros que controlaria mais tarde e que já nasceram "stalinizados"), o que veio a acontecer 74 anos depois da tomada do poder.
Conclusão
É comum, no debate público, quando se tratado de regimes repressivos, contrapor àqueles supostamente de esquerda: China, Cuba, Coreia do Norte etc, os de direita, como: Emirados Árabes Unidos, Israel, Alemanha Nazista e por aí vai. Contudo, como se viu, todo estado centralizado e autoritário é fruto de processos contrarrevolucionários e/ou reacionários que atacaram e destruíram conquistas progressivas ou revolucionárias ou simplesmente impediram-nas de nascer.
Todas essas nações mantiveram posturas repressivas, políticas e sociais reacionárias, contrarrevolucionárias e opressoras. E mais: nasceram a partir de movimentos reacionários e/ou contrarrevolucionários. Daí a necessidade de se manterem extremamente violentas. Esses regimes nas nações deslocadas do centro de poder do capitalismo, como o Brasil, se estruturam em cooperação com o imperialismo internacional e com a burguesia de outros países, sendo para a composição de governos policlassistas de defesa ao capitalismo, como as frentes populares (governos com os PT no Brasil), sendo para reprimir diretamente revoluções, como o caso da Nicarágua, de levantes contra a burocratização dos estados do Leste europeu, ou da própria China, etc.
É comum também chamar certas nações de comunistas ou socialistas, como a Coreia do Norte, Cuba, Venezuela e China, nações bastante diferentes seja na composição social de suas elites, seja no espaço que ocupam no mapa geopolítico mundial. No que concerne a esta questão, às organizações e pessoas que lhe fizerem essas objeções, indaga-lhes sobre o caráter do estado a quais falam. Pergunta-lhes se o tripé básico de um estado operário socialista está de pé nestes países, como o monopólio do comércio exterior, a economia planificada e a propriedade coletiva dos meios de produção.
Ao fazer esse pequeno exercício, visando a compreender - mesmo que en passant - a economia destes países, não será difícil de se observar que o que vigora nestes países - à exceção da Coreia do Norte, talvez - é a economia de mercado. E que nesses países há, hoje, empresas privadas e empresas multinacionais imperialistas, que atuam como aves de rapina se apropriando do grosso de suas riquezas. Caso a resposta seja negativa para as suas perguntas e positiva para a leitura econômica, é porque sim, essas nações são capitalistas, como qualquer outra nação no mundo hoje em dia.
Não teria dificuldades em concordar que movimentos à esquerda possam ser reacionários. Mas isto seria possível em uma única situação: numa coalizão de frente popular com a burguesia visando a suplantar uma situação revolucionária iminente, como no caso do governo de Kerensky, em 1917, às portas da Revolução de Outubro. Ou por meio de um movimento bastante estranho na leitura política, ao comparar políticas de países distintos. Por exemplo: a conquista ao voto pelas mulheres de uma nação teocrática soaria como reacionária às conquistas que as francesas, que conquistaram até o direito ao aborto, já o tem. Mas isso seria absurdo, como já dito, já que, dentro daquelas condições sociais específicas, seria uma conquista que deveria ser apoiada e aplaudida pela classe trabalhadora do mundo em seu conjunto. Conservadores eles são sim, mas reacionários, a julgar pelas condições que lhes são dadas, os giros à esquerda não o são, mesmo porque, quando ocorrem essas movimentações à esquerda, progressivas em sua essência, elas acontecem graças à pressão popular e à pressão dos trabalhadores. A burguesia não dá uma só migalha às classes oprimidas; toda ela é fruto de lutas e batalhas.
Penso ter ficado claro que todo o governo totalitário, de caráter antidemocrático e centralizador, nasce a partir de condições reacionárias e de movimentos políticos e sociais reacionários completamente estranhos às condições que o precederam, embora fruto dessas mesmas condições. Da ex-URSS - o maior destruidor de revoluções da humanidade - até os regimes bonapartistas da América Latina, passando pela Alemanha nazista, ou pelas nações que nasceram de revoluções controladas já pelo aparato soviético a partir de seus "partidos comunistas", como a extinta Alemanha Oriental, a Coreia do Norte ou o Vietnã. Em suma, a esquerda - mesmo não classista - luta por mais direitos e a direita por mais privilégios. Aqui um adendo histórico: na Assembleia Nacional da Revolução Francesa, a ala liberal que lutava por mais liberdades sentava-se à esquerda do parlamento; a aristocracia, inclusive a religiosa, lutava pela conservação de seus privilégios e sentava-se no lado oposto, à direita. Ficou a analogia pra História.
Para finalizar, vou fazer algo que não é comum: pedir que acessem os textos e vídeos indicados abaixo. Este texto é um breve esboço de assuntos que vêm sendo discutidos mais a fundo neste espaço há tempos, como o fascismo, o stalinismo, as frentes populares, dentre outros. Penso enriquecer demais a compreensão do que tratamos aqui, agregando à discussão novos elementos não abordados neste material. Os textos são quase todos curtos, sendo parte do conteúdo, inclusive, em forma de vídeos. Aproveito também para informar que dia 17/11 sairá um texto sobre o Liberalismo, intitulado Liberalismo é uma Religião, já estando inclusive escrito, e que, em breve, pretendo publicar outros dois textos, um sobre a China e outro sobre o Comunismo. Mas estes ainda sem previsão de sair. É isso!
-----------------------------------
Leia também: