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Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

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Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Duas faces de uma única moeda: "DOIS PAPAS" e a crise da igreja católica

12.01.20

Habitarei com eles
e entre eles andarei;
serei o seu Deus
e eles serão o meu povo.
2 CORÍNTIOS: 6:16

O novo filme do diretor brasileiro Fernando Meirelles, “Dois Papas”, mais do que abordar sobre as dissenções ou proximidades dos pontos de vistas entre Bento XVI e o seu sucessor Francisco I, defende o ponto de vista deste. A narrativa inicia a partir da morte do papa João Paulo II e com a eleição do cardeal alemão Joseph Ratzinger como papa Bento XVI, que permaneceu como tal de abril de 2005 a fevereiro de 2013, até que se viu forçado a renunciar.

À frente da igreja católica praticamente desde a renúncia de Bento XVI, Jorge Mario Bergoglio (o papa Francisco I) assume a “cadeira de São Pedro” para reinstaurar a ordem da igreja após uma profunda crise envolvendo o vazamento de documentos secretos do Vaticano. Este episódio conhecido como Vatileaks expôs apenas uma das várias facetas torpes da igreja: a corrupção.

E é este o “pano de fundo” a partir do qual se desenvolve a trama: a crise da igreja católica. Porém, é bom que se avise que Meirelles não aborda os problemas da igreja em si. Pelo contrário! Sua leitura é mais idealista: a crise instaurada serve como argumento para explicar e justificar a crise de espiritualidade de Bento XVI.

A despeito da sobreposição de cenas e imagens extraídas dos veículos de comunicação oficiais, utilizadas com o intuito de potencializar e fortalecer os traços da realidade e convencer o espectador de sua “tese fictícia”, não é possível de se afirmar que o filme se baseie em fatos reais, como sugere o diretor. Meirelles elabora uma trama calcada nos diálogos entre os dois personagens, o Ratzinger papa e o Bergoglio cardeal, conversas estas que nunca ocorreram, no que pese a afirmação do diretor em que os diálogos “bebem de discursos, entrevistas e escritos (dos dois papas)… em algum momento de suas vidas”.

Assim como a conversa, seu conteúdo é ainda mais especulativo. Na narrativa construída no filme, ambos se encontram para discutir suas divergências em relação à fé cristã. E apesar das concepções diferentes neste campo na contemporaneidade, que realmente parecem ficar claras no diálogo (como a relação da igreja com os fiéis e os pobres, o celibato, a homossexualidade...), a visão de mundo de ambos parecem convergir a uma concepção idêntica da realidade, expressa no filme na concepção comum que ambos têm sobre a espiritualidade e a missão divina.

Embora não concorde com as ideias de Jorge Bergoglio, pouco a pouco Joseph Ratzinger cede às necessidades de mudança de paradigmas da igreja católica defendida por aquele como única saída para “dialogar” com um mundo em transformação. Confissões, perdões e reconciliações de ambos os lados fecham um início tenso e termina com o entendimento mútuo do papel divino que Bergoglio pode cumprir a frente da Igreja. De fato, para o diretor – dialogando diretamente com o que há de mais caro na ideologia cristã: o perdão – não importam as palavras, tampouco o conteúdo daquilo que foi dito. A intenção sincera do arrependimento, confessando seus pecados (de preferência a uma autoridade eleita por deus para representá-lo) é mais importante.

Assim, pouco ou nada importam os crimes cometidos por Joseph Ratzinger*, como os casos de abuso de pedofilia1 frequentemente acobertados pelo estado cristão, a partir dos quais – no filme – inicia sua confissão. Não importam a venda ilegal de audiências, os subornos, a corrupção e o favoritismo de grupos políticos no interior da igreja, tudo vazado pelo seu mordomo. Não importa a história da igreja, a inquisição (da qual Bento XVI faz parte) e que tanto mal fez para a Europa. A única coisa de fato importante é o arrependimento, que leva ao perdão, como descrito, por exemplo, em 1 João 1:9: “Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.”

Curiosamente, contudo, ao se confessar ao futuro papa Francisco I, o áudio reduz gradativamente até ficar inaudível, perdurando o silêncio até o final de sua exposição. Esse arquivamento, esmaecimento da história não ocorre no momento da fala do companheiro cardeal Bergoglio. Seu passado é resgatado e explicado minuciosamente. Forma-se uma espécie de tribunal santo onde o futuro papa responde a todas as acusações realizadas (e já comprovadas) contra ele, como aquelas em que as Mães da Praça de Maio e o Centro de Estudios Legales y Sociales fizeram referentes a sua relação espúria com a ditadura argentina (1976-1983), a mais sanguinária de toda a América Latina, dentre outras. Mas se Meirelles, neste ínterim, não esconde as cobranças que a própria comunidade civil argentina fazia à época a Bergoglio, na condição de superior da Congregação Jesuíta, pressionando-o para que fizesse o que jamais fez: se posicionar contrário à ditadura, esqueceu-se de informar que se apropriou deste mesmo silêncio quando a ditadura de Videla perseguiu, prendeu, torturou e assassinou seus opositores políticos, ou quando negou o conhecimento sobre o sequestro de bebês praticados por militares, o que se provou à posteriori um sofisma. 

O pecado da mentira foi apenas um dos tantos cometidos pelo futuro papa. E o diálogo, mais do que mostrar todas essas contradições, apregoa a ele um significado mais filosófico: o do perdão por meio da confissão. Após ter se confessado, se arrependido e ter aprendido a perdoar a si próprio, poderia ser absolvido pelo representante máximo da igreja e - portanto - de deus, o papa Bento XVI. Uma nova porta se abria por meio da reconciliação com o divino e com a purificação de sua alma: Bergoglio estava pronto para sair de cena, dando espaço ao papa Francisco I.

À parte dessas questões, que sinceramente não as julgo de todo ruins, já que indiretamente desnudam as contradições políticas no interior da igreja, o filme é magnífico. Os detalhes e as sutilezas políticas da instituição mais antiga do mundo são descritas e exploradas com uma técnica narrativa incrível. A atuação marcante de Anthony Hopkins como Bento XVI, assim como a perfeição de Jonathan Pryce no papel de Bergoglio são o ponto alto da obra.

Graças às polêmicas geradas, não recebeu o apoio do estado do Vaticano (sim, Vaticano é um estado teocrático, absolutista e feudal com um programa de poder). Porém, à margem desse fato, “Dois Papas” concorre ao Globo de Ouro nas categoria melhor filme de drama, melhor roteiro, melhor ator de filme de drama e melhor ator coadjuvante; assim como também se configura como um forte candidato ao Oscar 2020 de melhor filme e melhor diretor. Na minha modestíssima opinião, ao compará-lo com o seu grande concorrente neste ano, o filme “Coringa”, merece as estatuetas.

Ainda que no páreo para o Oscar deste ano, o que seria um feito inédito para um diretor brasileiro, não podemos deixar de apontar a compreensão idealista e romantizada sobre o tema. Para Fernando Meirelles (diretor de outras joias do cinema, como “Cidade de Deus” e “Ensaio sobre a cegueira”), a ascensão de Berglogio à cadeira máxima da igreja nada tem a ver com questões políticas vinculadas ao mundo material e concreto, ou seja, à realidade objetiva. O mundo está em chamas e a Igreja em crise; a necessidade de um papa que tenha uma capacidade de realocar a igreja rapidamente neste processo de ebulição e de mudanças, onde revoluções e contrarrevoluções são cada vez mais frenquentes, era imperiosa. Não à toa a escolha de um papa mais carismático e latino-americano  continente onde, por inúmeros fatores, essa crise é mais sentida   como o Francisco I para fazer esse “jogo sujo”. Um papa não é o escolhido por causa de sua fé, mas por reunir as habilidades necessárias à manutenção de um projeto de poder. O catolicismo enfraquece ano a ano e o homem capaz de reinstaurar a ordem, ou ao menos iniciá-la, é o papa Francisco. Não existem santos na grande casa deus.

Para Meirelles e Anthony McCarten explica-se a crise da igreja simplesmente por sua concepção de mundo atrasada, como se as questões políticas mais prementes e que vêm levando à igreja à bancarrota planassem no mundo das ideias, desvinculadas da realidade objetiva e da falência social e política por qual passa atualmente a humanidade. Neste sentido, Jorge Bergoglio aparece, mais do que um reformador mal compreendido ou um simples líder popular e carismático; em verdade, acima das questões materiais, Bergoglio chega a ser vendido como a “voz de Deus”, um “milagre” para salvar a Igreja de sua perdição e egoísmo, interpretado desta forma até mesmo pelo personagem de Ratzinger. A desonestidade intelectual de Meirelles** e seu romantismo a respeito da figura do papa (em geral) e do papel da igreja são, de longe, os pontos fracos deste belo filme.

Entender a crise da Igreja Católica também como parte da crise geral do modo de produção capitalista é uma produção cinematográfica que ainda está por vir. Por enquanto, cabe-nos apreciar o belo diálogo entre os “Dois Papas” e torcer – para aqueles que gostam – pelo inédito Oscar.

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1 O caso mais conhecido nesse processo é do padre mexicano Marcial Maciel Degollado, descrito como bígamo, pedófilo e viciado em drogas, que teria tido seus crimes encobertos por se tornar um amigo próximo do então papa João Paulo II. A respeito deste crimes, cometidos nos Estados Unidos, Ratzinger teria em suas mãos provas contundentes na época, mas as omitiu. Quando se tornou Papa, ele teria toda a autoridade para puni-lo, mas preferiu sugerir apenas que Maciel se aposentasse. Um bom resumo de suas relações com a igreja, o poder e seus escândalos de pedofilia e corrupção  encontra-se neste link: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/31/internacional/1546256111_595163.html

* A respeito deste tema, é importante salientar o passado de Ratzinger como militante da juventude hitlerista. Em sua autobiografia, Bento XVI a confirma, mas se exime de responsabilidades, pois, segundo acusa, foi obrigado, como todos os jovens do seu tempo, a se alistar no exército nazista alemão.

** Em entrevista, Meirelles afirmou que Francisco I, sem querer (isso mesmo, disse sem querer), foi responsável pela prisão e tortura de alguns religiosos, como os jesuítas Orlando Yorio e Francisco Jalics. Sem contar as mortes, que jamais as condenou. Acontece que ninguém é capaz de cometer atos invonluntários seguidos por anos a fio. Na narrativa do filme, as relações do papa com os militares ocorreram para salvar vidas e nada tinha a ver com um projeto de poder da igreja católica na Argentina. Por isso Meirelles retrata um cardeal penitente e receoso com o seu passado. Nada que uma boa confissão não resolva.

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