Boop-Oop-a-Doop - Viva a Betty Boop!
A minha companheira, amante e amiga, Juliana Cidrack. Com AMOR E CARINHO!
Em 09 de agosto de 1930 estreava na televisão estadunidense aquela que seria a primeira personagem protagonista feminina do cinema: Betty Boop. Idealizada pelo produtor Max Fleischer e desenhada pelo artista Grim Natwick, essa garota de classe média estadunidense estreou no curta Dizzi Dishes. Independente e provocadora, sempre com as pernas de fora, exibindo uma cinta-liga, Betty Boop é inspirada nas divas hollywoodianas de seu tempo e outras, como Joséphine Baker e Ester Jhones, esta talvez sua maior influenciadora.
Ousada, destemida, sensual (sexy), esta jovem garçonete do final dos anos 20 foi bastante ativa em seu tempo. Com seus cabelos curtos de Louise Brooks e sua paixão por boates, Betty é herdeira das melindrosas (ou garçones), geração jovem que quebrou as regras sociais e sexuais de seu tempo. Ativas nas noites dos grandes centros, principalmente Nova Iorque, frequentavam boates, fumavam, bebiam - a despeito da imposição da lei seca nos Estados Unidos - e ouviam Jazz, estilo musical controverso, engajado e negro, baseado no improviso e considerado politicamente incorreto à época.
Sua personagem é tão forte para o período que, se compararmos com sua "concorrente", a Minie dos estúdios Disney, é fácil de se notar a diferença. Enquanto esta é fraca, secundária, com pouco espaço e completamente dependente de seu par masculino, o Mickey, Betty é sua antítese: independente, autônoma, dona de suas próprias vontades e realizadora de seus desejos e anseios mais profundos. Mesmo personagens posteriores femininas (inclusive dos próprios estúdios Fleischer), como a Olívia, do Popeye, segue a mesma lógica machista das demais produções cinematográficas.
Período em que se buscou - por parte das mulheres - grandes liberdades, Betty Boop encarna a feminilidade, a "modernidade" e a força feminina, perspectivas e sentimentos bastante latentes em setores médios dos EUA neste tempo. Desde o início da década de 1910 que as mulheres sufragistas se organizavam em torno da bandeira do direito ao voto na então já maior potência capitalista do planeta. Na década seguinte esse direito seria adquirido e as mulheres puderam ir às urnas pela primeira vez na história na igualitária e democrática "terra da liberdade e das oportunidades".
No ano de 1932, no auge da disputa eleitoral entre Hoover e Roosevelt, Betty resolve então se candidatar às eleições presidenciais, interferindo no debate entre democratas e republicanos. Repleta de propostas "extravagantes" ela vence então as eleições, colocando - pela primeira vez na história dos EUA - uma mulher na Casa Branca. Fato que seria repetido muitas décadas mais tarde pela personagem Claire Underwood, de House of Cards, e que não se consolidou ainda na política oficial estadunidense.
Embora criada em 1930, Betty Boop ficou famosa mesmo um ano mais tarde, quando interpretou Boop-Oop-a Doop-Girl, de Helen Kane, e, enfim, entrou para a história, participando de mais de 100 animações. Seu imenso sucesso, contudo, provocou bastante incômodo, e não somente nos estúdios de Hollywood. Helen Kane, por exemplo, que em 1932 acusou Max Fleischer de plagiar em sua Betty a sua voz de bebê, resolve entrar na justiça contra o estúdio, em 1934, reclamando a quantia de 250 mil dólares, à época uma verdadeira fortuna.
Todavia, dois anos mais tarde viria a perder o caso por não conseguir provar que seu estilo não fora copiado (roubado) de "Baby" Esther Jones. Em favor dos estúdios Fleischer depôs o gerente teatral Lou Walton acusando que, em 1925, ele treinou uma jovem criança negra chamada Esther, ensinando-a a interpolar suas músicas com letras líricas, que ela mais tarde transformou em sua marca registrada, criando o "boop oop a doop".
Este o primeiro desafio enfrentado pela nossa estrela do cinema. Mas não foi o único; em seu caminho de sucesso, a diva dos desenhos animados precisou "driblar" o controle estatal, que olhava para Hollywood com muita atenção e critério. No início da década de 1930 o país vivia uma grande recessão, causada pela crise de superprodução capitalista e pela política liberal estadunidense que levou à quebra da bolsa de valores e ao derretimento de parte da economia do país. Esse acontecimento levou a uma pobreza extrema e ao endividamento da classe trabalhadora em seu conjunto. Milhões de pessoas - da noite para o dia - simplesmente perderam seus lares por não terem dinheiro para pagar suas hipotecas, tampouco alugueis. Isso levou a uma migração em massa dentro do país para grandes centros, provocando, dentre outras coisas, famélicos e subempregados, já que passou a ter um gigantesco exército de reserva para ser explorado pelos capitalistas.
A política cultural do período adotada por Hollywood era a de escamoteamento desses elementos sociais de maneira direta como forma de alienar as massas. Cada vez mais popular - principalmente a partir do final da década de 20 com a voz -, o cinema foi muito útil (ainda hoje funciona assim em muitos aspectos) às necessidades da burguesia nacional: com uma estética divertida, despretensiosa muitas vezes e eivada de músicas e sensualidade, o público era arrastado às salas com o intuito único de divertimento. A desgraça humana, quando tratada, era de maneira bastante sutil e com linguagem conotativa. É desse período a popularização das histórias de vampiro, por exemplo, que redesenhavam à época o clima de terror e de desespero das massas perante à fome, ao desemprego e à miséria.
Nunca foi a função de Hollywood criar uma arte que levasse à reflexão. Pelo contrário! A indústria cinematográfica é uma indústria: atende às necessidades do mercado e visa ao lucro. E como toda a indústria, ela quem cria as tendências - no caso, o gosto. Ou seja, boa parte do que pensamos e gostamos sobre vários assuntos, inclusive a arte, procede dessa indústria, que nos enviesa por meio de ideologias que se conflitam inclusive com nossos interesses e nossas necessidades. É claro que também dialoga com a realidade vigente, afinal, o distanciamento único da vida cotidiana provocaria - cedo ou tarde (mais cedo que tarde) - o desinteresse por consumir esse produto. Contudo, mesmo quando o faz, é para imprimir ali sua digital, incultar naquele consumidor as ideologias que essa indústria - burguesa é bom que se diga - defende.
É bom ressaltar esse fator, mesmo porque, a despeito de tudo o que Betty Boop representa para o cinema ocidental no que diz respeito à emancipação da mulher, não podemos nos esquecer que é filha de um estúdio cinematográfico estadunidense, e que essa emancipação nunca é levada às últimas consequências: ela jamais entra em contradição com os interesses do capitalismo e com a visão de mundo burguesa necessária para a manutenção dessa ordem social. Pelo contrário! Inclusive a sua sensualização é pensada a partir dos moldes dessa indústria e vem carregada de machismo. Mas B. B. é mais que isso!
É que Betty Boop, garota estadunidense de classe média, reivindica por vezes estilos e conquistas que o capitalismo nunca foi capaz de cumprir em sua integralidade e que os bolcheviques, por exemplo, na primeira fase da revolução, o fizeram com muito mais amplitude e profundidade: na URSS de Lenin e Trotsky, as mulheres não tinham apenas o direito ao voto, mas à vida política em sua integralidade. O estado operário, em seus primórdios, criou creches, restaurantes e lavanderias públicas para que se desonerasse a mulher das atividades domésticas e as inserisse nas atividades políticas e intelectuais do estado soviético. Além disso, as mulheres conquistaram cargos importantes e centrais em todas as esferas do estado, sem discriminação de gênero. É claro que, com a vitória da ofensiva contrarrevolucionária, a burocracia operária que se instalara nas esferas públicas e que usurpara os trabalhadores do controle do primeiro estado operário da história, boa parte destas conquistas foram retiradas.
Mas ainda assim ela é admirável, linda, poderosa e apaixonante. Principalmente por continuar atual. E, se assim a é, porque o mundo em que viveu nossa diva ainda existe; é o mesmo mundo em que vivemos hoje. E suas lutas sãos as mesmas que enfrentamos. São admiráveis alguns episódios em que ela se impõe perante figuras masculinas (todas muito maiores que ela) dizendo NÃO à vontade que sentem em possuí-la à força. Vários são os episódios em que aparece um assediador tentando estuprar nossa heroína, ou roubar-lhe um beijo na marra, em que ela retruca com agressões. Em um dos episódios ela responde com um tapa no rosto a um desses agressores. Ou seja, se as pautas pelas quais "lutara" nossa Betty estão mais atuais que nunca é porque são fundamentais para a manutenção da ordem social vigente, não sendo possível superá-las com reformas, mas com revoluções.
É claro que não deriva diretamente dessas batalhas o seu enorme sucesso. Tampouco o apelo popular de sua personagem, bastante distinta (em alguns aspectos) da lógica fílmica hollywoodiana desse período, que, invés de repudiar e combater a agressão masculina perante à mulher, a incentivava, fazendo coro ao machismo estrutural no estado, invés de combatê-lo. A sensualidade extrema de Betty Boop - retrabalhada por vezes como objetificação de sua imagem feminina - ajuda a explicar esses fenômenos. Contudo, também é verdade que muitos são os filmes em que vimos homens sobre mulheres agarrando-as à força e as beijando sem que, em um primeiro momento, quisessem essa invasão. E disso não podemos acusar suas animações. É desnecessário falar que seu público - nesse momento - é um público adulto, tanto masculino quanto feminino, mesmo porque os estúdios Fleischer vez ou outra despia Betty.
Mas não acabamos ainda. É que um novo desafio - ainda maior que o anterior - aguardava por Betty Boop, dessa vez vindo da igreja católica. A cada vez mais influente Liga católica da decência liderava uma cruzada implacável contra Hollywood. Para a igreja havia muita libertinagem, sexo e álcool nas telas. Com aproximadamente 20 milhões de praticantes no país em meados dos anos 30, não foi difícil de os padres convencerem os fiéis de que o cinema estava em desacordo com os valores cristãos e que a mensagem que passava as produções eram nocivas à moral e aos bons costumes da maioria de nossa sociedade (diga-se: maioria branca e de classe média).
O aprofundamento da intervenção desse movimento fez com que os produtores repensassem a política de suas produções. A partir de 1934, então, intuindo evitar um boicote devastador a Hollywood, os produtores decidem aplicar o Código Hays. Este manual de boas maneiras proibia o romance inter-racial, a nudez completa, a homossexualidade (embora este tema fosse muito pouco abordado de maneira séria) e o adultério. La fête avait fini !
Seria este o início do fim de nossa heroína, já que a intervenção em sua imagem, alongando suas vestimentas, retirando seus espartilhos e alterando sua personalidade a ponto de torná-la uma legítima e comportada -embora por vezes estressada e meio "louquinha" - dona do lar estadunidense, bastante comum em estereótipo às dos anos 1950, acabou por matá-la na prática. Aliás, neste aspecto Betty Boop ajudou a criar e a difundir ela mesma este estereótipo bastante conhecido por nós todos.
Os filmes desta época se tornaram chatos e retrógrados, emboras ouvesse episódios em que os estúdios Fleischer contornassem a censura com bastante inteligência, como um (acho que o primeiro dessa nova "era") em que inicia com nossa protagonista acordando com um pijama "bem comportado" e falando da festa maravilhosa que tivera na noite anterior. Enquanto fala, a animação nos mostra um panorama de vários cômodos da casa com louças sujas, garrafas e roupas espalhadas por tudo quanto é lado e muita sujeira. O episódio continua, contudo, com Betty limpando tudo, e se divertindo ao fazê-lo.
Em suma, como o interesse das produções visam eminentemente ao lucro, os produtores preferiram (e preferem) se curvar aos interesses de uma instituição retrógrada e de um setor social criado com valores herdados da escravidão a enfrentá-los. Entre manter nossa heroína viva dialogando com as novas necessidades sociais emergentes, seu criador preferiu mutilá-la. E nesse ponto a história de Betty Boop pode também nos apresentar uma lição: a de que conquistas por dentro do capitalismo devem ser arrancadas de nossos verdugos. E mesmo assim, se não avançarmos rumo à superação dessa ordem econômico-social nociva à vida, essas conquistas - mais cedo ou mais tarde - serão suprimidas, pois em um mundo onde há exploradores e explorados, os interesses de uns sempre negam os de outros.
O pai mata a filha com medo de perdê-la. Contudo, como a verdade é filha do tempo, não da autoridade, foi incapaz de notar que, ao ceder a pressões reacionárias, mutilara sua menina, arrancando-lhe a alma e deixando-lhe praticamente seca por dentro. Isso se expressara obviamente em sua nova roupagem e em seus dois novos parceiros, o Grampy, um velho e protetor professor que traz soluções para os problemas domésticos, e Pudgy, um cãozinho que protagoniza as melhores piadas. Betty, que surgira para o mundo como uma sensual cachorrinha, terminou por ter o protagonismo roubado por um cão.
Ainda assim, Betty Boop, a personagem, sobreviveria a mais esse ataque, porém, reconfigurada. Ela continuaria a fazer parte do cotidiano familiar estadunidense por aproximadamente mais duas décadas, migrando do cinema para a televisão. E também migrando de público! Na década de 50, graças à transformação que sofrera, atrairia um publico eminentemente infantil. Transmitida a cores, com seus olhos grandes e azuis, sua boquinha graciosa, sua voz infantil e sua grande cabeça desproporcional ao corpo - a exemplo dos bebês - ajudariam para realocá-la neste espaço.
Por um bocado de anos nossa Betty ainda formaria uma memória coletiva, porém, desta vez, de uma típica dona de casa que cativaria as crianças e as formaria segundo valores machistas e conservadores ainda em voga hoje nos Estados Unidos e no mundo. Bem diferente daquela Betty que agrediria e escandalizaria Bolsonaros e Trumps e que jamais se calaria perante a misoginia contida nas ações e palavras do ex-presidente da libertária, igualitária e democrática "América", Donald Trump: Grab them by pussi! (Pegue-as pela vagina!). Que aprendamos e nos encorajamos com ela. PARA SEMPRE BETTY BOOP!
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