Arte e Política
A arte começa onde a imitação acaba.
Oscar Wilde
Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, em maravilhoso estudo afirmou que a arte existe para que a verdade não nos destrua. Se partirmos do princípio que arte é também – e principalmente – a expressão cultural de um povo e que, por meio dela, pode-se trilhar um caminho de compreensão dos desajustes e tentativas de reajustes da convivência humana e coletiva, não é difícil de compreender o sedutor poder que tem de traduzir e ressignificar um conjunto de valores políticos e sociais.
Se em tempos de relativa calmaria política - principalmente em um país semicolonial como o nosso - a relação da ciência e da arte com a sociedade não se dá de maneira muito harmoniosa, justamente por serem dois polos de "discussão" e de "enfrentamento" ao obscurantismo, por redesenharem o mundo em que vivemos, imaginemos em épocas de aguda crise não somente política, mas social.
Essa situação intolerável, reforçada obviamente pelo distanciamento paulatino de conquistas democráticas de etapas anteriores, faz com que valores inerentes à arte apareçam como fruto de um acaso precioso, obra quase espontânea da necessidade do artista. Ou seja, naquilo que ela conserva de individualidade de sua gênese, ou, como diria André Breton, “naquilo que aciona qualidades subjetivas para extrair um certo fato que leva a um enriquecimento objetivo”* a arte é relegada à matéria intelectual secundária, transformada, quando muito, em propaganda ideológica fomentada pelos meios de comunicação oficiais do estado.
Ora, se o mundo contemporâneo nos obriga a enfrentar a violação cada vez mais geral dessas leis, violação à qual corresponde necessariamente um aviltamento cada vez mais patente, não somente da obra de arte, mas também da personalidade “artística”, o fazemos motivados por princípios distintos daqueles ideólogos oficiais. Quando a Alemanha de Hitler e a URSS de Stalin eliminaram os artistas que se opuseram a seus regimes autoritários, obrigaram os remanescentes a celebrá-los sob encomenda, fomentando uma "arte" panfletária, ao estilo dos comerciais televisivos mais tacanhos de hoje.
Em proporções diferentes e sob outra conjuntura, o mesmo acontece hoje com a arte. Em sua maioria financiada por multinacionais, por estados, ou realocadas a partir de princípios mercadológicos e em consonância com princípios ideológicos hostis à emergência de qualquer espécie de valor espiritual, parte considerável da arte contemporânea enveredou para a abstração completa da realidade, como fuga dos problemas que lhe tocam, tornando-se mera difusora dos valores sociais reinantes, ou um compêndio de abstrações desconexas.
E se é verdade que seria demasiado forte acusar a arte de adotar um único modelo pronto, uma fórmula retangular acabada de manifestação como outrora fora corrente, também não é uma sofisma afirmar que, para dar uma real expressão às necessidades humanas e sociais, a arte precisa ser revolucionária no sentido mais puro do termo: o de aspirar a libertar-se a si própria, reconstruindo-se a partir de suas entranhas, nem que seja apenas para libertar a criação intelectual das cadeias que a bloqueiam, permitindo assim reacender princípios que sempre defendeu: ressignificar a realidade não somente com vistas a explicá-la, mas principalmente visando à emancipação espiritual do ser humano e, com ela, sua própria emancipação.
Nesse sentido, a arte pode - e deve - ser o lugar por excelência para arejar o pensamento e aprimorar as intuições. Mais que isso! A arte é hoje uma das forças que podem, com eficácia, contribuir para o descrédito e ruína dos regimes que destroem, ao mesmo tempo, o direito da classe explorada de aspirar a um mundo melhor e todo sentimento da grandeza e mesmo da dignidade humana.
Em outras palavras complementares, a revolução não teme a arte. Ela sabe que ao cabo das pesquisas que se podem fazer sobre a formação da vocação artística na sociedade capitalista que desmorona, a determinação dessa vocação não pode ocorrer senão como o resultado de uma colisão entre o homem e um certo número de formas sociais que lhe são adversas. Essa única conjuntura, a não ser pelo grau de consciência que resta adquirir, converte o artista em seu aliado potencial. O mecanismo de sublimação, que intervém em tal caso, e que a psicanálise pôs em evidência, tem por objeto restabelecer o equilíbrio rompido entre o “ego” coerente e os elementos recalcados. Esse restabelecimento se opera em proveito do ”ideal do ego” que ergue contra a realidade presente, insuportável, os poderes do mundo interior, do “id”, comuns a todos os homens e constantemente em via de desenvolvimento no futuro.
Segue-se que não é função da arte a de curvar-se, sem degradar-se, a qualquer diretiva externa a ela, como a preencher docilmente funções que filisteus julgam poder atribuir-lhe para fins pragmáticos e completamente estreitos. Não! É bem outra sua função. Ao artista autêntico cabe prefigurar a realidade, com vistas a orientar o pensamento de seus contemporâneos, indicando-lhes as contradições mais graves e abrindo-lhes caminho para o estabelecimento de uma nova ordem. Que o faça sem mais delongas.
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* Manifesto F.I.A.R.I.
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