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Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

A Democracia corrente e seus limites

02.02.20

 

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Para o amigo Rômulo Lima Vieira

Os Estados Unidos têm o melhor congresso que o dinheiro pode comprar
Mark Twain

Uivemos, disse o cão.
Livro das vozes

No livro “Ensaio sobre a Lucidez”, o genial escritor universal José Saramago narra o dia – um de grandes tempestades – em que uma população sai para votar. Como chove muito e não aparecem os eleitores, um burburinho generalizado corre as salas de votação: será que não virá ninguém votar? Um mal-estar generalizado toma conta dos fiscais e encarregados pelo bom andamento das eleições. “Se as coisas andassem mal seria baixíssima adesão”, pensavam. No entanto, à tarde, já no final do processo, milhares de pessoas compareceram para a votação, formando filas quilométricas. Até aí tudo normal, para a felicidade dos protagonistas do processo, não fosse o inesperado resultado: quase 70% da população havia votado em branco. Uma verdadeira catástrofe para as instituições democráticas daquele país, evidentemente, já que se tratavam das eleições de sua capital.

Esse ato de lucidez, aparentemente inocente, colocava em xeque a legitimidade do processo eleitoral, das instituições democráticas, dos partidos políticos e dos cargos daqueles representantes. Uma catástrofe! Uma nova eleição então fora marcada, pois a burguesia local pensava tratar-se de uma espécie de “histeria” social. Na semana seguinte então voltaria a população para as urnas para exercer seu papel cívico e eleger seus representantes políticos. Porém, nova tragédia ocorre: a porcentagem de votos brancos aumenta, alcançando 80% do total.

É então que se iniciam os problemas; os três partidos políticos: o PDE, de esquerda e reformista, o PDD, da direita, e o PDM, do meio (centro), agem em nome dos direitos da liberdade e da democracia: UNIDOS, conspiram de todas as formas contra a população. Mentiras políticas, intrigas judiciais, uso do aparato repressor das forças militares e propagandas midiáticas se misturam como forma de manutenção da ordem. Está aberta a caça aos subversores que votaram em branco.

Esse “esmaecimento cívico” muito bem narrado por Saramago é o mote central para uma discussão mais profunda: a da democracia burguesa e seus limites. Em boa medida é este o núcleo da obra, já que é, a partir de seu questionamento por meio do voto em branco, que se desenvolverão os problemas e as alternativas para a sua superação. José Saramago antevê uma saída para este impasse. Pela via da ficção (este território em que reflexão, humor, arte, história e política se entrosam), o escritor português desvela as fraquezas e fragilidades do sistema democrático burguês. Porém, antes de adentrarmos neste território, cabe-nos entender uma questão de âmbito mais geral: afinal, o que é Democracia?

O termo fora cunhado na Grécia Antiga no século V a.C. e designa “governo do povo”. Nasce para denotar os regimes políticos das antigas cidades-Estado gregas, principalmente Atenas, e é antônimo de Aristocracia (governo de aristocratas). Embora na teoria sejam definições opostas, na prática social nem tanto. É que, no sistema político da Atenas deste período, por exemplo, só participavam da vida política homens maiores de 21 anos. Escravos, estrangeiros (aqueles nascidos fora de Atenas) e mulheres não tinham esse direito. Em suma, embora abrangesse um corpo político mais diverso e amplo que uma aristocracia reinante, o poder ainda se concentrava em torno de uma elite. Somente com a conquista e o aprofundamento do sufrágio universal, durante o vizinho século XX, essa relação se amenizou. Bem, será mesmo?

Nos dias atuais o conceito de Democracia ganhou novos contornos. Da Grécia antiga até os dias de hoje vários impérios dominaram a Europa em sua quase completude ou parcialmente. Tivemos, por exemplo, os romanos, o império bizantino, o império otomano (de origem árabe), a dinastia Habsburgo, os árabes na península ibérica, o império russo, o Austro-Húngaro, dentre outros. A Europa ocidental passou por um longo período medieval, encerrado – na prática – somente no século XV, após a queda dos mozárabes na península ibérica e o surgimento dos dois primeiros estados modernos, Portugal e Espanha. A ascensão da burguesia na Europa e a maturação dos antigos estados medievais, culminando no consequente surgimento dos estados modernos, capitalistas, exigiu uma remodelação da vida social. Um novo sujeito social entraria em cena: a classe operária, que, em maior ou menor grau – a depender do período –, dividiria a cena política com a burguesia. Um novo mundo surgia, completamente distinto e muito mais dinâmico que seus precedentes.

Hoje, para compreendermos o conceito de Democracia, de outros dois se faz necessária a compreensão: o de “Estado” e o de “regime político”. Como Estado podemos compreender o conjunto das instituições públicas dentro de um determinado território; nos estados capitalistas são de três esferas: as instituições político-administrativas (aquelas vinculadas aos três poderes), as instituições coercitivas (as forças armadas e as polícias civil e militares) e as instituições de ensino, aquelas responsáveis por imprimir o ideal de vida burguês como único verídico e possível dentro de nossa sociedade. São estas talvez as mais importantes para a manutenção da ordem em tempos de paz, por serem as responsáveis pela criação do código de valores que guiam a vida pública nos âmbitos geral e particular. A estas enquadram-se as escolas, as instituições técnicas e as Universidades. Suas diretrizes políticas são guiadas a partir de um ministério exclusivo: no caso do Brasil, por exemplo, o MEC – Ministério da Educação e Cultura.

Todavia, o Estado e suas instituições, por si só, nada fazem. Não isoladamente, ou desconectadas. Pensemos o Estado como se fosse um motor, de qualquer espécie: um amontoado de peças esparsas, funcionando isoladamente, não são capazes de fazer a máquina funcionar; é preciso que trabalhem em conjunto, conectadas, para que se gere a propulsão necessária para o seu funcionamento. Com o Estado ocorre mais ou menos o mesmo: assim como as partes de um motor, as instituições do Estado precisam se conectar de alguma maneira.

Mas um Estado não é uma máquina, onde todas as peças, independente de seu tamanho, têm valores similares. As suas instituições funcionam diferentes, embora conectadas. Ou seja, a depender do regime político por que passa o país, haverá sempre aquela que, politicamente, se sobreporá às outras. Vejamos: se estivermos diante de uma ditadura militar bonapartista, as instituições coercitivas serão as mais importantes, aquelas que ditarão a vida política daquele país; já se estivermos diante de uma democracia burguesa, com um parlamento eleito pelo voto popular, as instituições mais importantes serão as político-administrativas. Portanto, regime político nada mais é que a forma como funciona um determinado estado, como suas instituições se organizam e se conectam para que funcione de acordo com os interesses da classe que a controla.

É fácil agora compreender a atuação política liberal de vários políticos, que lutam pela moral e pelos bons costumes, assim como pela propriedade privada. Isto é, seja pela coerção bruta e direta, ou pela coerção sutil de um regime democrático, a função do Estado é a de proteger a propriedade burguesa e garantir a exploração das demais classes sociais*.

Para uns a rosca; para outros o buraco dela. A república democrática é por aí que se revela - Maiakovski.

Assim, da perspectiva burguesa, é indiferente o regime utilizado em um determinado Estado desde que esteja garantido o seu direito de explorar em paz. Contudo, é insofismável que, concomitante à ótica do explorador, a Democracia é, sem dúvida, o regime mais seguro e confortável de coerção. Sim, a burguesia adotou-a como seu regime favorito. Isso, em grande medida, graças as suas próprias conquistas ainda na adolescência do capitalismo, no final do século XVIII. Pressionada pelas massas camponesas e de trabalhadores, a burguesia se viu obrigada a garanti-las após tomar o poder na França. Referimo-nos às liberdades individuais e coletivas: de expressão, de organização, de manifestação, de reunião, etc.

Outra conquista importante da democracia burguesa é a denominada “liberdade jurídica”, na qual, segundo o princípio, todos são iguais perante à lei. Ou seja, todos temos os mesmos direitos, deveres e as mesmas obrigações.

Conquistas importantes e que devem ser, sem dúvida, defendidas, pois garantem – mesmo que de forma assaz limitada – o direito de os trabalhadores agirem minimamente na vida política. Na ditadura militar, por exemplo, estavam cerceados os direitos de organização e de manifestação. Vinte anos foram necessários para que a superássemos; somente com as greves operárias dos finais dos anos 70 essas liberdades foram minimamente restabelecidas e os trabalhadores puderam retornar à cena política do país.

Todavia, há aí um limite, uma fronteira. Se é verdade que cabe-nos defender a democracia, já que a ela devemos essas liberdades mínimas, facilitando-nos e muito nossa organização e mobilização, devemos ter em mente que essa defesa deve ser apenas tática, jamais estratégica. Ou seja, não deve ser jamais um fim a defesa incondicional da democracia burguesa, como apregoam os partidos políticos eleitoreiros, como PT, PCdoB, PSOL, que elaboram seus programas visando ao parlamento burguês.

E aí nos deparamos com algumas de suas fraquezas: as mentiras da Democracia. Isso porque, se analisarmos veremos que suas conquistas são pela metade, ou, no máximo, são de fato aplicáveis somente para alguns. É aí que reside a farsa. Vejamos: é verdade que temos liberdade de organização e de mobilização, mas basta uma greve atrapalhar os negócios da burguesia e a justiça logo a declara como ilegal; todos temos o direito à manifestação, mas não é incomum vermos trabalhadores sendo duramente agredidos e reprimidos o tempo todo**. É igualmente verídica a informação de que somos todos iguais perante a lei. No entanto, não costumamos ver as forças de repressão invadirem bairros nobres e palacetes, dando tiros para tudo quanto é lado e matando civis inocentes como se fossem pragas; esse é um problema que a classe trabalhadora, jogada à força nas periferias, enfrenta diariamente. Do mesmo jeito, saúde, educação e saneamento básico são direitos universais, mas basta visitarmos as periferias para vermos que a teoria não se aplica à prática.

É também insofismável, da perspectiva dos valores democráticos, o direito à organização visando à disputa pelo poder, em um partido político. No entanto, partidos menores, além de não terem o mesmo tempo de aparição nos programas eleitorais televisivos, sequer são chamados para os debates públicos. São de fato “apagados” do processo como um todo, tornando-se – na prática – meramente caricaturais no processo. Uns argumentam, no entanto, que, com o amadurecimento de nossa democracia, essas distâncias diminuirão e teremos então uma unidade mais equânime de direitos. No entanto, o que vem ocorrendo é o seu inverso: medidas parlamentares têm reduzido o espaço de siglas menores e cerceado o direito às manifestações, como foi o caso da chamada “Lei antiterrorismo”, sancionada pela ex-presidenta Dilma que, na prática, além de criminalizar os movimentos sociais, aumentou consideravelmente a população carcerária do país.

Crer o contrário é ilusão. O velho Trotsky afirmava – e com razão – que a democracia burguesa, mesmo em suas origens, não tinha bases políticas verdadeiramente democráticas. E se retornamos à alegoria de Saramago, descrita no início da narrativa, notaremos que à “revolução silenciosa e branca” protagonizada pelos habitantes da inominada cidade, seguiu-se uma ofensiva de TODOS OS PARTIDOS PARLAMENTARES  contra as massas. À parte de suas opiniões divergentes sobre a forma de governabilidade do Estado burguês, os três partidos, de esquerda e reformista, da direita ou do centro, agiram como classe, defendendo seus interesses em detrimento dos direitos de liberdade da maioria. Isso nos leva a crer que a tolerância de valores democráticos dura até que sejam exercidos contra os interesses superiores que se contentam com a acepção de uma democracia meramente formal. Em suma, o parlamento burguês e suas formas de governança foram criados pela burguesia para atender às suas necessidades políticas. Portanto, novas formas de governo que atendam a outras classes sociais exigirão novas estruturas de poder, novas instituições e um Estado com um caráter distinto do capitalista burguês. Qualquer mudança desse cenário, no capitalismo, é ilusão. Revolução não combina com reforma.

"Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes." - Bertolt Brecht

A democracia burguesa é ilusória, sendo sua característica principal a eleição de seus governantes por meio do voto universal. Isto quer dizer que todos, em uma democracia burguesa, têm o direito de exercer este direito. Isto quando não são obrigados, a depender da nação. Assim falando, até soa a galhofa este termo: sufrágio universal. Todavia, é bem o seu inverso. O voto universal foi uma grande conquista, também arrancada com muita luta. No Brasil, até o final do século 19, só podiam votar aqueles que fossem concomitantemente homens, brancos e proprietários. Mais tarde, o direito ao voto foi estendido aos pobres, mulheres e analfabetos. No Brasil República os negros nunca foram oficialmente proibidos de votar. No entanto, como a maioria dos ex-escravos era analfabeta, a população negra acabava de fato excluída das eleições. Com relação às mulheres, se considerava que elas já estavam representadas por seus maridos e por isso não precisavam votar.

Pelo seu valor histórico e político, o sufrágio universal acabou se tornando o principal critério para avaliação do nível de liberdade de uma sociedade. Convencionou-se, assim, que um país, para ser considerado livre, deve garantir o voto universal a todos os seus cidadãos em idade de exercê-lo. Todos os demais direitos, igualmente importantes, como saúde, educação, direitos à moradia e ao emprego etc, foram escanteados. Gradualmente, foi-se apagando estes direitos como fundamentais para uma sociedade democrática. E assim, a liberdade humana ficou reduzida ao direito de, uma vez a cada quatro anos***, apertar um botão.

Como salientou Saramago em 2005, no fórum social mundial, em Porto Alegre (link aqui): “A democracia está aí, como se fosse uma espécie de santa do altar, de quem já não se esperam milagres, mas que está aí como uma referência, uma referência: a democracia. E não se repara que a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada. Porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a tirar um governo de que não gosta e a pôr outro de que talvez venha a gostar. Nada mais! Mas as grandes decisões, as grandes decisões são tomadas numa outra esfera e todos sabemos quem é. As grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, as organizações mundial do comércio, os bancos mundiais... Nenhum desses organismos é democrático! E como é que podemos falar de democracia, se aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos democraticamente pelo povo?”

Em outras palavras, as decisões que de fato têm o condão de delinear os caminhos da macropolítica nascem nos escritórios das grandes organizações financeiras transnacionais, antidemocráticas por sua natureza, considerando que não precisam se submeter a eleições para impor políticas econômicas domésticas consentâneas com os interesses particulares do mercado financeiro. Como forma de melhor exemplificar a discussão, é como se consentíssemos o direito de uma pessoa se apropriar de nosso salário por um período de quatro anos, dando-lhe aval incondicional para utilizá-lo da maneira que melhor lhe aprouvesse, sem ter que nos dar grandes satisfações do destino dado ao nosso dinheiro. É basicamente isso o que fazemos na democracia burguesa. Não somos agentes políticos; simplesmente títeres que fazem parte de uma democracia formal que serve não somente para justificar a classe dominante no poder, mas para nos dar a impressão que somos parte ativa nesse processo.

Essa falsa equidade de poderes é garantida pela ilusão do voto. Se na vida cotidiana, patrões e trabalhadores têm interesses inteiramente opostos, no dia das eleições seus votos têm a mesma proporção. E esse fato, cotidianamente, é inserido pela mídia e pelas propagandas oficiais na cabeça da população como forma de justificar e comprovar um dos princípios básicos da democracia: a igualdade de direitos. Não à toa as insistentes alegorias das eleições como a festa da democracia. Este é o ponto. E aí pouco importa se, no mandato que se seguirá, os trabalhadores terão que enfrentar diretamente o governo como seu inimigo. Pouco importa igualmente as mentiras, a corrupção, ou a exclusão de outros candidatos do processo eleitoral. O importante é que se garantiu o direito ao voto a todos os eleitores. E se as coisas derem errado, paciência, quem mandou não votar corretamente?

Foi exatamente esse condicionamento programado, que insere na cabeça do trabalhador o seu papel na sociedade, o argumento questionado em “Ensaio sobre a Lucidez”. Enquanto a campanha do TRE acusa: “Não desperdice seu voto! Vote!”, aludindo obviamente à necessidade daquilo que a burguesia chama de “voto útil”, já que, na prática, é ele quem provoca essa ilusão da democracia, José Saramago inverteu a lógica, lançando luz ao questionamento da democracia burguesa, aos seus valores e aos seus grandes limites democráticos.

Todavia, mesmo que assim o seja, que voto, eleição, democracia sejam um embuste…, apesar de todos esses fatores, por que não a utilizamos a nosso favor, já que temos garantidos o direito ao sufrágio universal? Por que não utilizamos as eleições para elegermos candidat@s operári@s, comprometidos com um programa classista de rompimento com essa democracia?, poderia questionar-nos um desavisado. E, embora parte da questão estivesse já resolvida, a resposta seria: por causa da interferência do capital no processo eleitoral. Em outras palavras: ao poder econômico dos principais representantes da burguesia.

Não é segredo para ninguém os custos de uma campanha vencedora. Processo eleitoral após processo eleitoral, as cifras sobem. Milhões e milhões de dólares são gastos naqueles candidatos favoritos ao pleito e aos preferidos da burguesia. Campanhas milionárias, com marqueteiros internacionais, “doações” gigantescas feitas por grandes empresários, milhares de cabos eleitorais, um espaço generoso de divulgação de sua campanha nos meios de comunicação são a dinâmica das campanhas eleitorais não somente aqui no Brasil, mas em Portugal, nos Estados Unidos, na França, Alemanha, Rússia e África do Sul, para citar alguns países que conseguimos dados. E neste processo, além do orçamento divulgado, há obviamente aqueles escamoteados pelas finanças eleitorais, oriundos de “caixa 2” de grandes corporações e/ou até de setores da “economia paralela”, como o do tráfico de drogas, por exemplo.

Os candidatos operários simplesmente desaparecem, esmagados pelo peso de milhões de dólares. É bastante comum, depois de um processo eleitoral que dure em torno de um mês, uma campanha operária, com caráter socialista, passar praticamente despercebida nesse processo. Nessas condições, não é de se admirar que os trabalhadores acabem votando em seus próprios verdugos, naqueles que depois aplicarão as políticas do interesse daqueles que financiaram suas campanhas. É como diz o ditado popular: “quem paga a banda escolhe a música”.

"Quando a opressão aumenta / Muitos se desencorajam / Mas a coragem dele cresce. / Ele organiza a luta / Pelo tostão do salário, pela água do chá / E pelo poder no Estado. / Pergunta à propriedade: / Donde vens tu? / Pergunta às opiniões: / A quem aproveitais? / Onde quer que todos calem / Ali falará ele / E onde reina a opressão e se fala do Destino / Ele nomeará os nomes. / Onde se senta à mesa / Senta-se a insatisfação à mesa / A comida estraga-se / E reconhece-se que o quarto é acanhado. / Pra onde quer que o expulsem, para lá / Vai a revolta, e donde é escorraçado / Fica ainda lá o desassossego." LOUVOR DO REVOLUCIONÁRIO - Bertolt Brecht

Todavia, como já dito, a democracia é indispensável à classe operária, pois, como afirmou Rosa Luxemburgo, somente mediante o exercício de seus direitos democráticos, na luta pela democracia, pode o proletariado adquirir consciência de seus interesses e de sua tarefa histórica. E tanto é do seu interesse, como é igualmente sua tarefa histórica, superá-la nos moldes que a temos hoje. Mas como o fazê-lo? Saramago dá uma dica.

No mesmo livro, após descrever vários conflitos entre a elite governante local e a classe trabalhadora, o exímio escritor português narra a saída desta elite amedrontada. Durante à noite, temerosa de ser vista, escapole pelas esquinas da cidade. Decorre daí talvez uma das cenas mais interessantes e belas da narrativa: a população, sabendo desse ato covarde, começa a acender e apagar as luzes de suas casas no momento da fuga, como a avisar-lhes do conhecimento do ato.

A partir deste ponto, forma-se um cerco na cidade, decorrendo dele a ausência de todos os serviços públicos. Isso mesmo: covardemente a burguesia foge, levando com ela toda a estrutura de serviços e burocrática da cidade. A ideia, certamente, era deixar a população à míngua, fazendo sentir-se desesperada pela carência dos serviços básicos. Saída gloriosa e que forçaria a sua volta, não fosse o fato de o inesperado acontecer: invés do caos social que a ausência dos serviços públicos trariam aos moradores, nasceram formas de organizações paralelas, oriundas de organismos populares de poder, amplamente democráticas e que tiravam toda a política local necessária para a ordem e a manutenção social. EUREKA!! Saramago, a seu jeito, narrou uma forma de poder já conhecida e testada entre os trabalhadores: os conselhos populares.

José Saramago era comunista. Não escondeu de ninguém sua convicção no socialismo. E mais que comunista, foi um trabalhador e grande dirigente político, imerso na base. Além do conhecimento histórico, do qual certamente tirou grandes lições políticas e literárias, vivenciou in loco uma revolução em seu país, a “Revolução do Cravos”, onde certamente testou algumas políticas como também presenciou o funcionamento orgânico, coerente, poderoso e altamente democrático dos conselhos populares, surgidos no calor da revolução como uma organização de duplo poder da classe trabalhadora. Conhecia, mais do que ninguém, a capacidade organizativa dos operários, principalmente em momentos de crise revolucionária. E sabia não somente da necessidade premente de superação da democracia burguesa, como da possibilidade de cumprir esta tarefa.

Em “Introdução à crítica do direito de Hegel”, Engels e Marx afirmaram que a teoria se transforma em poder material tão logo se apodera das massas. Ou seja, apesar de sua força, a democracia burguesa está longe de ser invencível. Como toda a construção humana, é falha. E pode sucumbir, às vezes em momentos que não se espera. Cabe à classe trabalhadora estar pronta para o confronto. Organizar conselhos populares é fundamental para o amadurecimento político, mas sozinhos não podem alcançar o poder. As massas trabalhadoras precisam sim estar organizadas em organizações classistas, porém, mais do que isso, necessitam de um programa centralizado de classe capaz de muni-las politicamente para o confronto. E isso só é possível por meio de um partido político que não tenha como foco o parlamento, mas a superação do capitalismo pela via revolucionária. Um partido que, ao contrário daquela esquerda em “Ensaio sobre a Lucidez”, que se apoia na democracia para defender interesses políticos distintos dos nossos, forge um programa de classe e socialista que vise à superação desta democracia, pelas massas trabalhadoras do mundo.  É a isso que o EM LUTA aqui de Portugal, o PSTU no Brasil e a LIT-4QI internacionalmente se prestam.

“As coisas humanas não são eternas e vão sempre em declínio desde o princípio até ao seu último fim”, afirmou sabiamente Dom Quixote. Somente uma revolução de caráter socialista, regida por conselhos populares, é capaz de destruir o Estado burguês e suas instituições já podres. Somente com o socialismo a democracia poderá se estabelecer como sistema universal, livre das amarras do poder econômico. O Estado operário será controlado pela maioria explorada e oprimida e a democracia operária se revelará como o regime das maiores liberdades democráticas que o mundo já conheceu.

Não nos esqueçamos que, historicamente, os atos mais bárbaros e terríveis cometidos pela humanidade, como as guerras, os genocídios, as escravidões e a subjugação de povos e culturas inteiras, não se deram por meio da desobediência civil, mas pelo seu inverso. Foram os “cegos” e os crentes que se prestaram ao serviço de verdugos e carrascos da humanidade.  Sejamos então desobedientes, pois somente dessa forma poderemos tomar consciência das amarras que nos prendem e, então, lutar para destruí-las. Somente assim poderemos eliminar a exploração do homem pelo homem. Eis a tarefa do socialismo, que, ao fazê-la, assentará as bases para a dissolução lenta e gradual do próprio Estado operário, seu poder e suas instituições, ou seja, para a superação da democracia e a conquista da verdadeira liberdade humana: o comunismo, que fará a humanidade realmente começar a caminhar.

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Notas:

* Max Weber, em “Economia e Sociedade”, conceitua o Estado como “aquela comunidade humana que, dentro de determinado território – este, o ‘território’, faz parte da qualidade característica –, reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima, pois o específico da atualidade é que a todas as demais associações ou pessoas individuais somente se atribui o direito de exercer coação física na medida em que o Estado permita”. WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva.Tradução de Regis Barbosa. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.

Em suma, apesar de compreender a função repressora do Estado, o teórico prussiano o enxerga como uma síntese de diversos elementos oriundos do início da modernidade política que acabaram por caracterizar o Estado como uma organização política específica da modernidade e que apenas passou a existir como tal a partir da obsolescência do modelo político privatista do medievo, motivado por fatores tais como a necessidade de minimização dos riscos dos negócios do emergente modo de produção capitalista e a profissionalização dos exércitos.

Teórico da burocracia, foi incapaz de notar, no entanto, a origem do Estado em período anterior ao capitalismo. Curiosamente, parece não ter compreendido a sua real função: a de garantir o "equilíbrio” entre as classes sociais; parece não ter notado que nasce justamente para controlar a ordem a arregimentar o poder da classe dominante sobre as demais classes subjugadas. Daí a necessidade de suas instituições e de um aparato repressivo e tributário. Sem o poder centralizador do estado o controle político e econômico de uma classe seria impossível. O Estado nasce com a propriedade privada dos meios de produção, nos primórdios das primeiras grandes cidades, e surge como forma de garantir os privilégios àqueles que detinham a sua posse.

** Exemplos não faltam no Brasil e no exterior, porém, talvez uma das imagens mais emblemáticas a esse respeito vem do estado do Ceará, onde os professores estaduais foram duramente reprimidos pela polícia em um ato político em defesa de seus direitos.

*** A regra se aplica para todas as nações democráticas, alterando somente o período eleitoral de cada país.

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