A cultura popular do nordeste brasileiro sob a ótica de Ariano Suassuna, dramaturgo brasileiro
Do mesmo modo, a parte desse Mundo que me fora dada – o Sertão – não era mais somente o “sertão” que tanta gente via, mas o Reino com o qual eu sonhava, cheio de cavalos e Cavaleiros, de frutas vermelhas de Mandacarus reluzentes como estrelas, bicadas pelas flechas aurinegras dos Concrizes e respondendo às cintilações prateadas de outras estrelas – as estrelas dos peitos das Damas, as estrelas negro-vermelhas dos sexos femininos, as estrelas de metal ostentadas nos estandartes das Cavalhadas ou nos chapéus de couro usados pelos Tangerinos, Vaqueiros e Cangaceiros, os Fidalgos da minha Casa Real, com suas coroas de couro de Barão.
Ariano Suassuna. In: Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, p. 511. 13.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
É preciso uma justificativa para este texto. Não pelo assunto ou algo que o valha, mas com a intenção de localizar os leitores principalmente de Angola e de Portugal que muito visitam este blog. Geralmente não o faço quando disserto sobre os assuntos aos quais me proponho a falar, mas neste caso é um pouco diferente, pois abordarei questões e assuntos aqui que podem deslocar o foco de leitores estrangeiros. É que trataremos neste ensaio de um grande dramaturgo brasileiro que faleceu há alguns anos, Ariano Suassuna, e que abordou o Brasil olhando para a sua periferia a partir do lugar onde escrevia: o nordeste brasileiro. Mais especificamente, o interior desta região, em um espaço geográfico e social conhecido como sertão do Cariri (mapa anexo), que tem uma cultura muito complexa e que brindou o país – e consequentemente a arte em língua portuguesa – com grandes artistas. Como a obra do referido dramaturgo é vasta, optou-se por analisar sua peça mais conhecida, almejando, dentre outras coisas, uma comparação com a adaptação dela em um filme, que ainda hoje faz sucesso nestes lados do globo. Vamos aos fatos!!
Todo começo é involuntário, já diria Fernando Pessoa. Deus é o agente. Eis um bom introito para iniciarmos nossas reflexões acerca da peça Auto da Compadecida (bem como de sua respectiva adaptação para o cinema 45 anos após sua publicação), do poeta, romancista e dramaturgo Ariano Suassuna.
Publicada em 1955 e encenada pela primeira vez em novembro do ano seguinte, no Recife, a peça tornou-se um divisor de águas na carreira do escritor paraibano. Idealizada a partir da leitura de três cordéis: O castigo da soberba, O enterro do cachorro e O cavalo que defecava dinheiro, a peça agrega elementos da cultura popular e erudita de maneira tão singela e harmônica que em uma só leitura escapa-nos todas as referências.
A primeira delas são certamente os cordéis, expressão artística que remonta à idade média europeia e que deve muito às cantigas galego-portuguesas, aos trovadores e jograis franceses (1) e à poesia moçárabe andaluz. E será por essa via que iniciaremos nossa dissertação, afinal, se há algo que nos salta às vistas na comédia de Suassuna é exatamente o mesmo imaginário presente nos folhetos de cordel no qual os artistas realocam a imagem como representação mimética, intuindo transportar para os versos a sua percepção da realidade, almejando “imitá-la” a partir de suas experiências percebidas.
E talvez estas sejam as primeiras diferenças entre a peça escrita e a adaptação dirigida por Guel Arraes (2000). Ao estilo jogralesco – encenado aqui na figura do Palhaço, personagem circense mais proeminente da cultura popular, bastante frequente também nas feiras medievais da alta idade média – inicia sua peça. Ei-la: Ao abrir o pano, entram todos os atores, com exceção do que vai representar Manuel, como se se tratasse de uma tropa de saltimbancos, correndo, com gestos largos, exibindo-se ao público. Se houver algum ator que saiba caminhar sobre as mãos, deverá entrar assim. Outro trará uma caneta, na qual dará um alegre toque, anunciando a entrada do grupo. Há de ser uma entrada festiva, na qual as mulheres dão grandes voltas e os atores agradecerão os aplausos, erguendo os braços, como no circo. (2)
Contaminatio era o termo utilizado pelos romanos para a utilização de dois textos visando à criação de um terceiro original. Esse esquema, muito utilizado pelo dramaturgo Tito Mácio Plauto (254 a.C. – 184 a.C.) – escritor que teve traduzida por Suassuna a peça Aulularia (A panela) e que serviu de modelo para a sua O Santo e a Porca –, pode ser encarado como o pressuposto para as adaptações de obras literárias para o cinema.
É corrente a transmutação de um livro em uma obra cinematográfica. É uma parceria que rende bons dividendos tanto para a indústria do livro quanto para a do cinema / televisão. O que costumamos ver são obras de literatura consagradas pelo mercado editorial do livro que são adaptadas em filmes, como forma de garantir bons lucros. Entretanto, o inverso às vezes ocorre. Exemplos não faltam, como 50 tons de cinza, A culpa é das estrelas etc, no primeiro caso, e a trilogia O Senhor dos Anéis, no segundo. É uma formula já testada pela indústria cultural e que rende bons frutos tanto para as editoras, quanto para as produtoras.
No entanto, alguns pontos devem ser observados. E talvez o mais importante seja a plataforma utilizada pelas adaptações. No caso de uma narrativa escrita (que nasceu com este propósito, como um romance, uma epopeia em versos, uma peça de teatro, elaborada para um palco...) que venha a se tornar uma produção cinematográfica, estas alterações devem ser condizentes com o público ao qual visam atingir, como forma de trazer fluência e cadência necessárias ao novo “produto”. Eis que surge o roteiro, tão necessário para que a filmagem se desenvolva sem maiores percalços.
Em outras palavras, o filme adaptado da obra literária deve, antes de tudo, manter sua autonomia, deve se sustentar enquanto obra fílmica. Caso contrário, cairá em “desvio de conduta”, como no caso do filme Memórias Póstumas de Brás Cubas (2000) – dirigido por André Klotzel, que não passou de uma mera tradução serviu da obra de Machado de Assis.
Sob essa perspectiva, creio que a adaptação de Guel Arraes passou no teste. A obra não só se mantém independente da peça de Suassuna, como agrega novos elementos a ela, inexistentes na obra original. E cumpre bem este papel, na medida em que transporta para a tela a atmosfera da peça, a essência da narrativa de Ariano, sem deixar de se adequar às necessidades da indústria cinematográfica.
É importante elencarmos este fato: o filme O Auto da Compadecida é uma produção destinada a um público educado a consumir arte de segunda categoria. Um público forçado a não refletir, que chega em casa após um dia cansativo de trabalho, senta-se no sofá à frente da televisão e “desfruta” da única forma de arte que está ao seu alcance: os horrorosos programas televisivos, as telenovelas e filmes escolhidos a dedo pelos editores televisivos. E então o sujeito se vê refletido naquela programação. Mesmo setores médios mais instruídos e com um poder aquisitivo mais alto são sensíveis a essa forma de representação artística. Para tanto basta notarmos os estacionamentos dos teatros cheios em noites em que se apresentam Sérgio Malandro e Tiririca, por exemplo.
Desse ponto é que precisamos partir a nossa discussão. Da perspectiva estética (refiro-me à forma), a obra fílmica em si não traz nada de novo: não passa de uma produção – bem feita, é verdade, e que tem grandes méritos – cujas soluções estéticas não são mais que repetições testadas pela indústria cultural e reproduzidas há muito na cinematografia.
Talvez a mais evidente dessas soluções seja o romance clichê entre Rosinha, a filha rica do Coronel Antônio Moraes, e Chicó, o parceiro pobre e “frouxo” de João Grilo. E com final feliz para este, que, além de ser correspondido pela dama rica e educada na capital, consegue desposá-la, mesmo às custas da sua miséria total. Um final digno dos grandes clichês aos quais fomos educados, dando inclusive na trama um lugar subserviente à mulher, que assume o papel de uma Amélia da Caatinga.
Esta, sobretudo, é uma personagem ausente na obra de partida. As únicas personagens femininas na trama de Suassuna são a mulher do padeiro (não tem nome) e a Compadecida. Este foi um acréscimo da adaptação, que trouxe em certa medida um frescor à obra, principalmente porque a personagem em questão substituiu o filho do mesmo Coronel da trama original, que sequer tem direito a voz na peça. Sob essa perspectiva, foi uma solução interessante, principalmente por ter agregado ao filme, de forma harmônica à trama, características bufas à obra.
É claro que esta solução nasce dos anseios da produção. Por se tratar de uma obra destinada ao grande público, com anseios de grandes bilheterias em salas cinematográficas dos grandes centros comerciais das principais cidades do país, far-se-ia necessário agregar à já midiática obra de Suassuna características outras que a fizesse ainda mais palatável e divertida.
Outras alternativas eram possíveis, principalmente aquelas que dialogassem com linguagens presentes na obra, como as de caráter mais cômico-popular, representadas pela figura do caricato Palhaço, que, além de narrador, age também como juiz moral na trama. A este respeito, poderia se ter pensado em uma obra com características mais próximas ao do próprio teatro de palco, agregando à obra elementos da arte do circo, como faz Suassuna. Seria uma alternativa às avessas da fórmula estreita da indústria cultural e que exigiria uma performance bastante diferente por parte dos atores. É que a linguagem teatral é expressiva, dinâmica, dialógica, corporal e gestual, bastante diferente da linguagem cinematográfica, que visa a causar efeitos nos espectadores com outros recursos ausentes no teatro.
Sob essa ótica, algo como o que a própria produtora já experienciara e que, a que me recordo, causou bastante frisson: Hoje é dia de Maria seria talvez uma inspiração. Ou mesmo o que já se buscou com a adaptação do Romance da Pedra do Reino (3), do mesmo Suassuna. Ambas produções ricamente elaboradas, pensadas para TV e realizadas em formato de série (assim como fora também O Auto da Compadecida a posteriori), que trouxeram à linguagem do cinema características inerentes aos teatros de rua e da arte circense. Mas teríamos então outra obra, certamente mais bela, com uma linguagem reinventiva, Maravilhosa, e que talvez não tivesse o mesmo impacto nas bilheterias que teve o filme dirigido por Guel Arraes, justamente porque se enquadraria fora das características cansavelmente reproduzidas pela indústria da arte e que há tempos moldam o gosto do grande público de cultura.
É menos arriscado, da perspectiva comercial burguesa, a ruptura estética e linguística dos modelos clássicos impostos pela indústria cultural em produções televisivas em série que em produções fílmicas. É que os seriados exigem menor esforço propagandístico por se enquadrarem melhor à linguagem televisiva, são mais flexíveis com relação aos horários em que serão apresentados, oferecem a possibilidade de uma continuação caso se perca um episódio – o que auxilia inclusive na difusão e propagação da obra por outras pessoas –, além de possibilitarem a fidelização de outros produtos culturais ofertados pela emissora que os transmitem.
No caso do filme é bem diferente! A iniciar pela divulgação da obra, que acaba sendo mais restrita, assim como da impossibilidade de se conquistar o público com o desenrolar do enredo, já que a trama se desenvolve, do introito ao cabo, em uma única sessão, que geralmente não dura mais que 120 minutos. Uma fraca bilheteria na estreia pode sacramentar a exposição nas salas de cinema do país, que já olham torto para as produções fílmicas nacionais, mesmo aquelas com grande potencial de público, como seria o caso da filmagem da obra mais consagrada de um dos mais consagrados dramaturgos do país.
Isso explicaria – mas não somente – os clichês explorados no filme, assim como a temática e o elenco global de atores consagrados na televisão, no teatro e no cinema brasileiros. Matheus Nachtergaele, como João Grilo; Selton Melo, como Chicó; Denise Fraga interpretando a mulher do padeiro, rebatizada no filme como Dora; Marco Nanini atuando como o cangaceiro Severino; Fernanda Montenegro, como Nossa Senhora – a Compadecida; Rogério Cardoso, como padre João; Diogo Vilela, como o padeiro; Lima Duarte interpretando o bispo; Maurício Gonçalves, como Jesus; Paulo Goulart no papel do Coronel Antônio Moraes e Enrique Diaz atuando no papel do “capanga” de Severino. Isso sem contar com os autores renomados que interpretaram as personagens inseridas no filme e ausentes na peça original, como a Rosinha, que foi muito bem interpretada por Virgínia Cavendish, o Vicentão, personagem satírico que ganhou forma por meio de Bruno Garcia, dentre outros. Foi uma grande produção, pensada para trazer retorno comercial.
Foi de fato um sucesso. Tanto que se tornou um seriado na sequência. Porém, parte considerável deste reconhecimento de público e de crítica deve-se não somente ao grandioso elenco e à boa produção; talvez os grandes trunfos do filme O Auto da Compadecida sejam a harmoniosa justaposição entre os clichês do cinema de massas e a bela narrativa de Suassuna, aliada à atmosfera do filme, que conseguiu reproduzir – em parte graças ao respeito à linguagem e ao cenário da trama – a da obra original. Não raros são os trechos em que praticamente ouvimos as personagens de Suassuna falando enquanto desfilam pela bela paisagem do sertão da Paraíba.
Essa boa unção entre literatura e cinema garantiu não somente o sucesso do filme, mas aproximou muitos espectadores da obra de Ariano Suassuna. Qual o dramaturgo paraibano, Guel Arraes nos transporta para um universo distinto daquele do qual vivemos; nos abscinde da trivialidade de nosso cotidiano prosaico e nos remete à bela prosa sertaneja, rica de elementos poéticos e com uma sonoridade gostosa. Ao nos transportar diretamente para a prosa rica de Suassuna, eivada de elementos do barroco, da arte sacra e de um misticismo ressignificado do sertão nordestino que tem suas origens na cultura medieval, o filme supera o “gosto médio” da indústria do entretenimento e transporta o espectador / ouvinte para o universo mágico da obra original, tornando-o mais aberto e receptivo àquele universo e instigando-lhe a passos maiores e mais promissores, dentro inclusive de um universo cultural e literário mais amplo.
Guel Arraes logra sucesso nesta convergência da mesma forma que fizera Suassuna quando reescreveu a cultura sertaneja, enriquecendo-a de elementos líricos externos a ela. Anteriormente citamos as referências literárias que influenciaram a criação da peça Auto da Compadecida, aqueles três cordéis citados pelo próprio autor da obra, eximindo-nos entretanto de referendar influências outras, igualmente importantes para a composição da peça, sem as quais inclusive se tornaria impossível sua escritura.
Todo o grande escritor retira das ruas e da linguagem a matéria prima para a sua composição. Sua obra é banhada com elementos sociais e linguísticos de seu tempo, cabendo ao grande artista o apanágio não somente de desvendá-los, mas principalmente o de orientar o pensamento de seus contemporâneos para a urgência do estabelecimento de uma nova ordem artística, capaz de corresponder às novas necessidades que o tempo demanda. E isso passa pela sua liberdade irrestrita de criação e recriação das fontes que têm acesso, sejam elas oriundas de uma cultura mais erudita, ou mesmo de elementos mais dinâmicos da pululante cultura popular, ou de ambas, como trabalha Suassuna.
Em suma, o artista é ele mesmo um (re)criador de adaptações; as (re)cria para desconstruí-las, ressignificá-las, ou mesmo para arejá-las. Guel Arraes, por exemplo, não criou novas personagens em sua narrativa fílmica; simplesmente as realocou de outras peças de Ariano, dando-lhes outras feições. Rosinha e Vicentão são caracteres da peça A Pena e a Lei (4), agregadas a sua adaptação para encorpar a obra d’A Compadecida, conferindo-lhe a ela esta originalidade peculiar capaz de unir amistosamente características estéticas díspares.
Bem da verdade, toda a trama amorosa compreendida pelas personagens Rosinha, Chicó, Cabo Setenta e Vicentão é extraída do primeiro ato da peça A Pena e a Lei. Nesta, Rosinha se chama Marieta; Vicentão é o mesmo, enquanto o Cabo Setenta se chama, na peça, Cabo Rangel, apelidado de forma irônica de Cabo Rosinha. As travessuras de João Grilo são protagonizadas por Benedito, que é o terceiro interessado na dama e que acaba vendo frustradas suas intenções com Maristela, "perdendo-a" para Pedro, seu amigo que participa indiretamente da troça.
No entanto, falamos de Suassuna e sua capacidade quase espantosa de ressignificar o popular, extraindo-lhe a poesia e enriquecendo-o com elementos estéticos oriundos da cultura erudita. A própria forma de narrativa canonizada (auto) é um exemplo disso. Mas as referências extrapolam a forma e o conteúdo lato sensu. Auto da Compadecida é uma obra que bebeu quase que exclusivamente na cultura sertaneja, oral e poética. E isso não somente no que concerne à construção da trama, mas igualmente de suas personagens. Chicó, por exemplo, é um caractere típico do sertão, enquanto João Grilo foi extraído das páginas dos cordéis nordestinos.
Escrito por João Ferreira de Lima, Palhaçadas de João Grilo foi posteriormente ampliado por outro cordelista passando a se chamar Proezas de João Grilo. É um cordel que narra estórias vividas por esta personagem, muito astuta e sabida, que de pobre se torna rica graças a sua sabedoria. Desta narrativa, outras surgiram, tornando-se essa personagem uma figura corrente no imaginário popular do sertanejo nordestino.
Conhecidas na região do sertão do Cariri (vasta faixa de terra localizada entre os interiores dos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Sergipe) estas e outras estórias de João Grilo (bem como de outros cordéis famosos) alimentaram Ariano Suassuna e outros artistas e poetas populares sertanejos. Região onde se localizam as cidades de Taperoá, que serve de pano de fundo para a peça de Suassuna; de Juazeiro do Norte, de Padre Cícero; de Pombal, do maior de todos os cordelistas: Leandro Gomes de Barros; de Serra Talhada e Paulo Afonso, cidades onde nasceram respectivamente Lampião e Maria Bonita; de Canudos, de Antônio Conselheiro; Exu, berço de Luiz Gonzaga etc, o Cariri é pleno de história, de luta, de música, de resistência e de narrativas mágicas. Este é o ambiente do cordel, das festas populares, do xaxado e de João Grilo, o popular e picaresco herói sertanejo que, à imagem de Rabelais, desvenda-nos a força do universo popular e o alargamento de horizontes para além de concepções redutoras do saber e do mundo. O herói astuto e cômico, que supera as adversidades da vida com sua coragem, sua humildade, sua fé e sua sapiência.
João Grilo foi a escola com sete anos de idade com dez anos ele saiu por espontânea vontade todos perdiam pra ele outro Grilo como aquele perdeu-se a propriedade | João Grilo em qualquer escola chamava o povo atenção passava quinau nos mestres nunca faltou com a lição era um tipo inteligente no futuro e no presente João dava interpretação |
Neste cenário já adaptado, onde sinais da interferência europeia são percebidos nas mais diversas manifestações da identidade nordestina e brasileira, transcorrem narrativas eivadas de elementos Maravilhosos e plenas de um misticismo híbrido, com fortes traços cristãos, portando contudo elementos da cultura indígena, africana e da poesia medieval ibérica (incluindo a moura).
Sinais também de um medievo tardio que adquiriu novas expressões através da alma do nordestino, podendo ser notados nas mais diversas festividades da região, como nas quadrilhas juninas, que remetem ao minueto francês; no picaresco João Grilo, típica representação popular do sertanejo mestiço; na arte circense; nas bandas cabaçais e nos rabequeiros; no “amor cortês” do caboclo, oriundo das cantigas galego-portuguesas, do trovadorismo francês e da poesia moçárabe andaluz; no léxico e nas expressões em uso ainda hoje no sertão; nas narrativas orais e escritas populares; nos lendários reinos encantados; no carnaval; na religiosidade; nos adágios populares; nos cantos e aboios pungentes dos repentistas; nos jogos e jograis; na tradição do boi; no tom moralizante das narrativas populares; no riso bufão típico das comédias de ruas e das feiras medievais e, por fim, nas cavalhadas (tradição que remete às batalhas entre mouros e cristãos). (5)
Este o universo rico explorado por Suassuna em suas peças e romances, cujas nuanças culturais foram ressignificadas, em maior ou menor grau, em seus escritos, alguns deles no Auto da Compadecida. Daí sua linguagem elaborada e repleta misticismo.
Em seu clássico livro A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais (6), afirma Mikhail Bakhtin:
Os homens da Idade Média participavam igualmente de duas vidas: a oficial e a carnavalesca, e de dois aspectos do mundo: um piedoso e sério, o outro, cômico. Esses dois aspectos coexistiam na sua consciência, e isso se reflete claramente nas páginas dos manuscritos dos séculos XIII e XIV, por exemplo nas lendas que narram a vida dos santos. Na mesma página, encontram-se lado a lado iluminuras piedosas e austeras, ilustrando o texto, e toda uma série de desenhos quiméricos (mistura fantástica de formas humanas, animais e vegetais) de inspiração livre, isto é, sem relação com o texto, diabretes cômicos, jograis executando acrobacias, figuras mascaradas, sainetes paródicos, etc., isto é, imagens puramente grotescas.
Ora, se não estamos falando, em boa medida, do universo místico, religioso e literário de Ariano Suassuna e dos cordelistas e repentistas do sertão nordestino, que souberam (e sabem) – de maneira antropofágica – recriar o sertanejo, sua terra e seus costumes, aliando à tradição elementos do contemporâneo, que ora são ironizados ou parodiados, ora ainda adaptados, mas sempre reconfigurados. Nisso consiste também a linguagem dos repentes, das modas e dos cordéis.
No que concerne ainda à linguagem, é insofismável afirmar que o ato de adaptar é também o de trazer a obra para o seu tempo, readequando a narrativa à época em que foi recriada, principalmente tratando-se de um trabalho que vise a alcançar também um público mais jovem e que porta uma gama de valores distintos àqueles do tempo em que foi produzida a obra. Vejamos, por exemplo, a fala de Manuel (Jesus Cristo), extraída das páginas 107-108 desta minha edição:
MANUEL – Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu, Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Você pensa que sou americano para ter preconceito de raça? Grifos meus.
Quem assistiu ao filme vai lembrar, por exemplo, que o excerto destacado em negrito é suprimido do diálogo, sendo proferido somente aquele sublinhado. É que o restante causaria grande estranhamento, e por dois motivos principais: o primeiro por designar a origem supostamente branca de Jesus, o que hoje, inclusive, se mostra impossível, em decorrência de estudos históricos e por melhor compreendermos a sociedade que o gerara àquele tempo; o segundo é por expressar um preconceito racial oriundo de uma reação contra a colonização imposta pelos Estados Unidos às nações do sul do continente americano e que vem expresso em várias de suas obras e em muitas de suas entrevistas. Ao diretor coube, neste e em outros casos mais sutis, adaptar essa linguagem em decorrência de alguns valores já questionados ao tempo da adaptação.
Em suma, considero sim o filme uma adaptação honesta e competente da obra original, que cumpre bem o papel almejado, sendo capaz – a meu ver – de apresentar a obra de Ariano Suassuna a um púbico que não o conheceria de outra maneira. Embora não o considere uma adaptação genial, está longe de ser vulgar. Muito pelo contrário! A direção e o excelente elenco, somados ao bom investimento na produção e às saídas inteligentes encontradas pelo diretor e sua equipe visando a orientar os interesses comerciais da produtora de forma que não agredisse a essência vital da narrativa, garantiram o sucesso de crítica e de público que obteve.
Eis alguns traços representativos entre a peça e o filme que não se encerram por aqui. Porém, como a exposição se pretende sucinta e ao escrevedor talvez não sobrem argumentos, passo então a palavra ao Palhaço, que melhor que eu soube deslindar os meandros desta história:
PALHAÇO – A história da Compadecida termina aqui. Para encerrá-la, nada melhor do que o verso com que acaba um dos romances populares que ela se baseou:
Meu verso acabou-se agora,
Minha história verdadeira.
Toda vez que eu canto ele,
vêm dez mil-réis para a algibeira.
Hoje estou dando por cinco,
talvez não ache quem queira.E, se não há quem queira pagar, peço pelo menos uma recompensa que não custa nada e é sempre eficiente: seu aplauso.
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NOTAS:
1 Do francês Troubadour, o trovador foi o poeta medieval. De origem nobre, compunha seus versos para serem cantados acompanhados por um alaúde. Jogral era seu equivalente popular, por assim dizer, com a diferença que a este cabia também outras atividades, como as de artista de rua capaz de malabarismos, mímicas, brincadeiras, sendo muitas vezes contratados pela nobreza para atuarem nos castelos como “bobos da corte”. Os trovadores e os jograis espalharam-se pela península ibérica, adquirindo diferentes características a depender da região. As Cantigas de Santa Maria, organizada por Dom Alfonso X e o Cancioneiro da Ajuda, organizado por Carolina Michaëlis são dois exemplos das composições deste tempo, escritas todas elas para serem cantadas.
2 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. In: Teatro completo de Ariano Suassuna: comédias (vol. 1). Organização Carlos Newton Júnior. 1.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p. 37.
3 Hoje é Dia de Maria é uma minissérie brasileira produzida e exibida pela Rede Globo entre 11 a 21 de janeiro de 2005, em 8 capítulos, com criação, direção e roteiro assinados por Luiz Fernando Carvalho e colaboração de Luis Alberto de Abreu e Carlos Alberto Soffredini, a partir de uma seleção de contos retirados da oralidade popular brasileira, recolhidos pelos escritores Câmara Cascudo, Mário de Andrade e Sílvio Romero. Fonte: Wikipédia. Romance da Pedra do Reino (2007) é também uma produção da Rede Globo, com criação, direção e roteiro assinados igualmente por Luiz Fernando de Carvalho, inspirada no livro O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna.
4 Escrita em 1959 talvez seja a peça teatral mais ambiciosa do autor. Tendo como ponto de partida o teatro de mamulengos e as estórias populares, a peça mistura a comédia de costumes, a farsa e o auto em uma única obra. Esta peça desvela um nordeste autêntico, regional, popular e ao mesmo tempo universal, religioso, grotesco, metafísico, sensível, poético e dramático. Traz-nos ritmos como o xaxado, o baião e as cantorias populares que bebem das fontes da tradição oral medieval ibérica. É uma “súmula”, uma “síntese” do teatro que vale à pena ser visitada com carinho.
5 Citei apenas influências herdadas da cultura europeia não por desprezar heranças culturais indígenas e africanas na cultura nordestina, em especial a sertaneja. O fiz por ser um objeto de estudo, a Idade Média, no qual tenho grande interesse. Não faltariam referências que comprovassem tais influências, como as máscaras de madeira de Potengi, herdadas do povo Cariri, a linguagem complexa e repleta de expressões e termos dos povos originários, a culinária, calcada boa parte dela no milho e na mandioca, alimentos indígenas, assim como certas características de nossa complexa religiosidade, que bebe de influências africanas e indígenas, sem contar os ritmos, instrumentos, brincadeiras (peteca, por exemplo…) e até vestimentas, que trazem influências indígenas e também africanas.
6 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UNB, 1987, p. 83.