Liberalismo é uma Religião
Ao amigo-irmão Dario Souza da Silva, que contribuiu para a feitura deste texto
O homem que não se conheça tal como é, é lobo para o homem.
A Comédia dos burros - Plauto
É muito comum, nas redes sociais, em canais liberais (como os dos ancaps…) abordarem o Liberalismo como um modelo ideal, como a sociedade deveria ser. E a partir dessa caixinha blindada, desse modelo ideal de sociedade, os liberais julgam a realidade. Essa elaboração, diferentemente do Marxismo ortodoxo, não se baseia no que a sociedade é de fato e aonde se pretende chegar a partir das condições objetivas e subjetivas colocadas por esta mesma sociedade. Pelo contrário! Ela se baseia em um tipo ideal de sociedade, em um “dever ser”, em uma espécie de sociedade utópica sob as suas perspectivas. E esse protótipo ideal: impostos baixos, estado mínimo, atuando apenas com o intuito de garantir as liberdades individuais de compra e venda de força de trabalho, etc é aplicado em todos os aspectos da realidade; é a partir dele que julgam toda a realidade colocada, independentemente do tempo, da conjuntura política, e, inclusive, do modelo econômico em voga.
É um modelo acabado, como se viu. E um modelo que só faz sentido porque retira boa parte dos aspectos reais, considerando apenas o lado que lhes interessa. Se Analisassem o fenômeno em toda sua amplitude veriam que a realidade é muito mais complexa e mais colorida que aquela que descrevem. Vejamos um exemplo simplório para compreendermos o grau de argumentação corrente: é comum acusarem a falência ou a asfixia financeira de um pequeno empresário somente ao estado. O argumento é o seguinte: “estás falindo porque o estado se interfere demais em teus negócios, cobra muitos impostos, concede muitos direitos trabalhistas, cobra muitas taxas” e por aí vai. E dizem mais: “se o estado diminuir a taxa de juros, por exemplo, tu arrecadarias mais porque passarias a vender mais inevitavelmente. E, ao venderes mais, o estado faturaria na quantidade”.
Desconsiderando fatores exógenos (crise econômica, relações exteriores, variação cambial, taxa de desemprego, fatores econômicos regionais...) e endógenos dessa simplória relação entre o comerciante e o estado e desconsiderando fatores impossíveis de prever – como o aumento mesmo das próprias vendas graças à redução dos impostos que eles prevem automaticamente – um simples cálculo matemático mostra a incongruência deste argumento. Suponhamos que o João das Couves tenha um determinado produto que custe R$ 100,00 (cem reais) e que a esta mercadoria tenha uma carga tributária de 30%. Ou seja, destes R$ 100,00 trinta reais seriam de impostos. Suponhamos ainda que Salazar Botelho Pinto, liberal desta República da Bruzundanga, assuma a presidência e, no primeiro dia de mandato, reduza os impostos pela metade, alinhado que é com esta política. Assim, aquele eletrônico chinês que o João das Couves vendia em sua lojinha por cem reais passaria a custar R$ 85,00, isso se o João fosse um comerciante honesto e sensato com essa nossa matemática, é claro.
Suponhamos que tudo corra muito bem para o nosso amigo pequeno burguês e que as vendas cresçam exponencialmente à redução de preços, fazendo com que João das Couves não venda 15% a mais, mas tenha uma venda 30% superior ao período anterior. Partindo do pressuposto de que os impostos caíram pela metade, o valor de impostos arrecadado pelo estado não seria superior, mas o inverso. Com todos os fatores culminando a favor, o governo de Salazar Botelho Pinto, nosso estimado governante liberal, logo seria apelidado pela imprensa de "Rola Cansada", pois teria uma arrecadação média inferior de 35% em relação ao período anterior, o que lhe traria problemas futuros, principalmente com a burguesia para qual administra o Estado. Esse pequeno exercício matemático prosaico, entretanto, tem apenas a função de mostrar que esses silogismos abstratos, mesmo quando conflui tudo a favor – o que nunca ocorre evidentemente –, são ineficazes. E, sendo ineficazes, acabam sendo falsos por não se comprovarem na prática.
Mas não é disso o que viemos tratar! O que nos interessa são outras questões mais importantes: é discutir os pressupostos que embasam a formulação teórica desta corrente denominada Liberalismo, que tem suas origens no século XVII. São dois princípios articulados entre si, basicamente: o primeiro deles é que, segundo o Liberalismo, a sociedade é atomizada. Ou seja, para essa corrente teórica, a sociedade está fundada no indivíduo isolado: o teórico liberal parte do pressuposto de que todos os atributos essenciais da sociedade estão contidos no indivíduo. Segundo essa concepção, cada indivíduo é um átomo portador de direitos naturais. Mas o que são os direitos naturais? São o direito à liberdade, à propriedade e à igualdade. Liberdade aqui significando que o indivíduo é um sujeito juridicamente livre, podendo vender e comprar livremente mercadorias, incluindo aí vender sua força de trabalho. Como propriedade entende-se o direito de comprar e vender o que é seu, sem nenhum impedimento; já igualdade refere-se ao direito de comprar e vender mercadorias pelo seu real valor. Tem ainda um aspecto ético individual, denominado de ética utilitarista, em que cada indivíduo persegue os seus próprios interesses.
Esses os direitos naturais (segundo princípio) que fundamentam toda a concepção liberal. Todavia, há um detalhe importante: quem garantirá que este indivíduo livre, que pode por direito vender e comprar mercadorias, que pode por direito vender unicamente o que é seu e comprar unicamente o que é propriedade alheia, que compra e vende “coisas” pelos seus valores iguais seguindo os seus próprios interesses…? Enfim, quem pode garantir que esta ação meramente individual, dessas mônades, desses indivíduos, dessas pessoas portadoras do direito natural levará a que toda essa engrenagem funcionará perfeitamente no conjunto da sociedade, de maneira a que haja de fato a realização individual de cada uma das partes dessa sociedade?
Portanto, se a sociedade se organiza a partir do indivíduo e dos direitos naturais de cada indivíduo (sendo “direito” aquilo que é possível, que é juridicamente legal, não necessariamente aquilo que foi realizado ou que irá se realizar), quem garante que esses direitos se realizem, se tornem de fato realidade? Em outras palavras: quem garante que essa sociedade que funciona a partir do indivíduo, que tem o indivíduo como célula fundamental da sua concepção e que defende o pleno direito de seus agentes livres, proprietários em iguais condições perseguindo cada qual seus próprios interesses, garantirá, no final das contas, que todos esses direitos naturais sejam de fato realizados? É aí que entra um aspecto bastante importante da teoria liberal e que parece que todos os seus “teóricos” contemporâneos se esqueceram: o Liberalismo parte do pressuposto de que existe uma ordem natural da sociedade. Ou seja, para o Liberalismo, a sociedade se baseia em uma ordem natural. Isso quer dizer, na prática, que essa ordem está preestabelecida, que está dada por natureza, e que a única possibilidade de não vir a se consolidar os direitos que apregoa é com a intervenção de um agente externo estranho ao seu funcionamento. Daí o chororô desmesurado com relação ao estado, a certos monopólios, etc.
Mas de onde vem essa ideia de ordem natural? Em que ela se baseia? É uma concepção de fundo teológico, com embasamento quase divino. O Liberalismo, além de se calçar em um modelo ideal, perfeito, em que seus intelectuais julgam a realidade, é uma espécie de teologia na qual o papel de Deus é bastante reduzido. Para melhor compreendermos isso é importante darmos um passo bem atrás e irmos, como já dito, para o século XVII, período em que um certo Thomas Hobbes publica uma obra chamada Leviatã. Foi este autor – defensor do absolutismo, da soberania do rei – quem primeiro dissertou (ou pelo menos difundiu o conceito) sobre a sociedade atomizada, uma sociedade fundada a partir de indivíduos isolados, que constroem, cada qual de forma privada, o meio em que vivem, não sendo fruto desta mesma sociedade.
Acontece que, para Hobbes, o estado de natureza dos indivíduos não era visto como algo positivo: para este autor absolutista, os indivíduos eram todos selvagens, sendo necessário que um monarca – pela força – estabelecesse essa ordem natural. Essa visão de Hobbes – derrubada não muito depois, diga-se de passagem – deixou como herança uma das pedras fundamentais do Liberalismo, o atomismo da sociedade, que vigorou ainda por certo tempo e com bastante força no conjunto das ciências da época. Na física, por exemplo, a noção do universo físico era povoada por intervenções sobrenaturais; o mundo era recheado de milagres divinos. O que não deixa de ser compreensível, na medida em que as forças produtivas não estavam desenvolvidas ainda o suficiente para que fôssemos capazes de desvendar certos acontecimentos de ordem natural como fenômenos físicos. Os liberais, crendo que os indivíduos criam eles mesmos a dinâmica da sociedade, são incapazes hoje de compreender que suas construções partem de conceitos místicos oriundos de sociedades em que as forças produtivas não estavam maduras para responder a fenômenos físicos simples sem a necessidade de apelar a intervenções divinas. Os poderosos construtores da dinâmica social não foram capazes de perceber que eram filhos dessa mesma sociedade que os criara e os moldara.
A partir dos “deístas” começou-se a ver certa racionalidade na natureza. Para os intelectuais dessa corrente filosófica, os fenômenos naturais podiam ser explicados, calculados, medidos… enfim, podiam, em alguma medida, ser racionalizados. Essa ideia obteve algum sucesso, embora relativo. Newton tinha essa concepção: quando ele formaliza a lei da gravitação, mostra que alguns elementos da realidade poderiam ser medidos e mensurados de maneira natural. E isso afastou o papel de Deus no mundo, em certa medida. O Deísmo carrega esta ideia de que Deus criou esta ordem natural, colocando-a para funcionar e não intervindo em mais nada. A ideia decorrente a partir desses pressupostos de que Deus tenha estabelecido essa ordem natural é a que fundamenta, do início ao fim, o Liberalismo. Em suma, os liberais partem do pressuposto de que, embora não possam provar essa ordem natural, ela existe, e já está dada na natureza de todas as “coisas”. E na sociedade não poderia ser diferente: a ação desses indivíduos isolados, livres, autônomos, atômicos (atomizados) que perseguem seus próprios interesses, assim o fazem porque esta é a ordem natural das coisas. E isso não tem jeito de dar errado, a não ser que elementos externos influam nessa lógica, apesar de ter sido criada por Deus. Pobres liberais! Se tivessem dado voz a Rá, Osíris, Zeus ou Kur, talvez tivessem mais força de impedir que forças externas interviessem na sua lógica mágica de mundo. Mas foram cair nas amarras logo do deus cristão. Pobres liberais, que trazem em suas concepções mais sofisticadas – mesmo que não falem mais nisso – essas noções divinas.
Exemplos não faltam. E, para ficar claro o que estamos falando aqui, vou citar dois vídeos, um em que o economista Rodrigo Constantino, em uma mesa redonda com o político Ciro Gomes (vídeo DÁ BILHÃO? Ciro Gomes x Constantino, no link: https://www.youtube.com/watch?v=YeSEKSO0_9w), logo no início do "debate" argumenta:
Rodrigo Constantino: Boa noite. Eu queria colocar algumas coisas antes… é… primeiro o crescimento… é… acredito eu que o Marcos(?) estava falando a nível sustentado, é uma opinião minha. E, de fato, a gente acaba vendo muitos voos de galinha aqui por falta de poupança. Poupança no Brasil não existe por um problema estrutural; não vale à pena falar todas as causas disso agora, mas, na minha concepção, a solução passa pela redução de gastos públicos: quando o governo cortar gastos, as pessoas vão gastar mais.
Ciro Gomes: Permite uma parte?
Rodrigo Constantino: Claro.
Ciro Gomes: Em qual ponto? Reduzir gastos eu acho que sempre é uma coisa que me soa institucionalmente muito bem. Em que lugar?
Rodrigo Constantino: Bom, 36 ministérios: ministério da pesca.
Ciro Gomes: Então vamos extinguir todos, quanto se economiza? Não faz sentido.
Rodrigo Constantino: Vamos parar de dar financiamento para ONGs, para o MST, pra… Tem espaço, tem espaço…
Ciro Gomes: Ah, mas isso dá bilhão?
Rodrigo: Chega, chega…
Ciro: Não chega…
Rodrigo: Reduzir funcionalismo público…
Ciro: Reduzir funcionalismo público em qual área?
Rodrigo: Tem inchaço, tem inchaço, tem inchaço.
Ciro: Em qual área? Vamos propor, vamos propor… Eu sou campeão de demissão de servidor ocioso contratado por cartão de político. Fui prefeito de uma capital, governador de um estado e fiz. Mas lá eu sabia o que estava fazendo, o quanto economizava e sabia qual era a legitimidade. No Brasil, nós temos muito menos serviço público do que necessário. No mínimo!
Rodrigo: 36% de arrecadação do imposto sobre o PIB.
Ciro: Para pagamento da dívida (…)
Esse exemplo ilustra bem o que estamos dizendo. Rodrigo Constantino, esse onagro de sapatos, não tem um dado sequer da economia brasileira. O que tem é uma ideia preconcebida, uma fórmula que utiliza para toda e qualquer análise de mundo que faz. Em vários de seus vídeos defende o modelo de gestão estadunidense que – mal sabe ele – gasta percentualmente de seu PIB quase cinco vezes mais que o Brasil em serviços públicos. Já o Ciro Gomes, prático como é, o indaga a respeito de como economizaria um bilhão de reais e ele não sabe de onde tirar essa cifra, tampouco de como fazer para que logre sucesso nesta empreitada. Ele não sabe explicar; não tem nenhum dado. O que tem é um modelo abstrato: “tem muito imposto, se tem muito imposto se reduz para que as pessoas consumam mais, pois os produtos ficarão mais baratos blá-blá-blá”. Frases prontas e de autoajuda para uma classe média frustrada.
Para quem não conhece o Constantino, seus próprios vídeos o apresentam: é uma figura tão tapada, mas tão tapada que, anos depois a esse encontro com o político do Ceará, quando a Dilma cortou 24 bilhões de reais do orçamento da União ele veio a público bradar que estava certo naquela ocasião em que Ciro o questionou sobre a “impossibilidade” de se cortar 1 bilhão de reais enquanto a Dilma, que nem liberal era, cortara muito mais que isso. Palavras dele! O pobre não percebeu que o Ciro Gomes fizera com ele um jogo retórico, mostrando-lhe a sua incapacidade de mostrar como cortar 1 bilhão de reais dos gastos públicos. E o pior: ele não sabe mesmo. Tanto que teve que esperar vários anos para poder responder ao Ciro Gomes.
Outros exemplos, no mesmo vídeo, comprovam essa abstração, inclusive quando empreende a tarefa de justificar teoricamente – citando Adam Smith – seus pressupostos. Mas o conteúdo está aí referendado; quem quiser ter acesso a ele fique à vontade. Outro vídeo ilustrativo é do “Jênio” brasileiro Paulo Guedes, nosso ainda ministro da economia. Em um show de asneiras, dentre outras coisas, ele explica as sociedades suméria, fenícia, asteca a partir dos mesmos pressupostos preestabelecidos, da mesma ordem natural, desprezando o tempo em que tais sociedades viveram, a tecnologia que possuíam, as formas de economia, a organização espacial de seus habitantes, etc. Segundo Guedes, no mundo asteca havia feiras medievais como as da Europa, havia comércio, edificações mais altas que as de Granada. E assim o faz para afirmar que cobravam impostos (por meio de sacrifícios – rsrsrs), faziam guerras e tinham economia de mercado.
É uma pena não ter encontrado o vídeo no youtube para que acompanhassem (o tenho em qualidade bastante ruim em um HD externo) e vissem com seus próprios olhos a quantidade de absurdos que o homem consegue falar em menos de cinco minutos. Serviria para que rissem, ao menos... De qualquer forma (e para encerrarmos), fica a indagação: se existe uma ordem natural preestabelecida, uma série de fatores que devemos aceitar como prontos, por que diabos o capitalismo não surgira desde o início da humanidade, mas somente há cerca de 530 anos atrás? O que havia antes se a ordem é a mesma para qualquer tempo? Aliás, por que o mundo então não era capitalista quando o ser humano colocou seus pés sobre o chão que pisamos? Fica aí a reflexão...
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