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Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

O Demônio da Literatura

26.10.22

O Grito, de Edvard Munch.webp

Só se pode chamar ciência ao conjunto de receitas
que funcionam sempre. Tudo o resto é literatura.

Paul Valéry.

 

O que é Literatura e por que lê-la? Eis uma questão difícil de responder e que certamente atormenta muitos(as) alunos(as) dos cursos de letras mundo afora. José Eduardo Agualusa, escritor angolano, certa feita em uma entrevista aqui no Brasil, relatou uma viagem que fizera a bordo de uma embarcação pelo rio Amazonas. Questionado pelo entrevistador se daquela viagem extraíra algum caractere para a construção de personagem(ns) para uma de suas belas narrativas, foi categórico ao afirmar que não, pois não havia, dentre as pessoas que conhecera ou tivera contato, qualquer uma ruim demais para ser uma personagem literária forte, importante.

Visão interessante a do escritor, certamente não compartilhada por todos(as), inclusive por mim, mas que já demonstra o aspecto social encravado nas grandes obras literárias. Sim, a Grande literatura trata de aspectos reais. E mais: desvenda-nos aspectos "escondidos" que, a partir da sensibilidade de observação do(a) autor(a), não conseguimos vislumbrar imediatamente. Esses elementos "recônditos" de nosso cotidiano social são retrabalhados pelo(a) autor(a) à sua maneira e por mais diversos meios estéticos. Ou seja, um(a) artista não nasce grande; se torna grande. E, mesmo que o tempo em que viva o(a) despreze, a história o(a) reposicionará - cedo ou tarde - na prateleira em que merece.

Do que falamos, afinal? Que estória é essa de prateleira, de Grande e/ou pequeno? E por que diabos o(a) artista não nasce Grande? São questões que surgem dessas afirmações espontâneas e talvez corajosas. E não são questões menores. Longe disso! Por detrás desses questionamentos mascaram-se discussões sérias, profundas e que perpassam parte significativa da crítica contemporânea: o cânone.

Antes, porém, de entramos nesta discussão, citemos uma história, que, não tivesse sido relatada pelo próprio artífice, soaria como anedota ou galhofa. Em meados da década de 1940 o então novato escritor João Guimarães Rosa se inscreveu em um concurso literário com sua obra em prosa de estreia: "Sagarana". Neste concurso, seu livro chegou à final, concorrendo ao prêmio com a obra de Luís Jardim, intitulada "Maria Perigosa". Um dos jurados era o já aclamado escritor Graciliano Ramos (o narrador do fato dessa história), que, apesar de conhecer grande valor naquele extenso livro de contos daquele anônimo estreante mineiro (nos concursos literários não aparecem a autoria nos livros), votou em Luís Jardim, desempatando a disputa e concedendo o prêmio a este autor. Não conheço a obra, tampouco o escritor vencedor. Eu nunca me lembrei em ir buscar um exemplar para ler, não podendo então falar nada sobre a obra. No entanto, é insofismável a enorme relevância que Guimarães Rosa tem não somente para a literatura brasileira, mas também ocidental, à medida que Luís Jardim caíra no esquecimento. Guimarães tornou-se grande nesse sentido. Esse é apenas um exemplo. No entanto, no campo da arte, não são raros os casos de grandes artistas que custam a conquistar reconhecimento, tampouco são raros aqueles que não o alcançam em vida, como Vincent Willem van Gogh, para citar apenas um caso.

Mas deixemos de palavreado e voltemos ao que interessa, afinal estamos aqui para falar dos clássicos.

Harold Bloom, conceituado crítico literário estadunidense, em ao menos duas de suas principais obras ("O Cânone Ocidental" e "Como ler e porquê"), debruça-se sobre o tema. Na primeira, e mais importante no que concerne a esta discussão, classifica Shakespeare, aquele dramaturgo inglês que dispensa apresentações, como o centro do cânone universal, acrescentando a esta lista Dante Alighieri, um italiano mais pop que o Papa Francisco, como par da base piramidal do cânone ocidental.

Mas o que é cânone e por que, ao responder às questões anteriores ao parágrafo que se sucede, nada se fez que trazer mais dúvidas a esta discussão? A resposta a esta pergunta certamente limpará o caminho pedregoso, deixando-o mais agradável. O termo em si deriva do grego “kanón”, utilizado para designar uma vara que servia de referência como unidade de medida, mas a crítica literária não o importou dos clássicos, e sim do contexto cristão, para o qual é um conjunto de livros considerados de inspiração divina. Sim, a Bíblia é para a igreja católica um cânone.

E na ótica da Literatura? Bem, em nossa seara tratamo-nos como um conjunto de livros considerados referência para um determinado período, estilo ou cultura. "Romanceiros da Inconfidência", de Cecília Meireles, ou "Macunaíma", de Mário de Andrade, podem ser consideradas obras cânones da literatura brasileira. Em suma, seria uma espécie de lista ou catálogo que, em geral, reúne o que é considerado um modelo a seguir. É conhecido como um cânone literário, desta forma, todas as obras clássicas que fazem parte da alta cultura. Estas obras, quer devido às suas características formais, sua originalidade ou sua qualidade, conseguiram transcender tempos e fronteiras, resultando em universais e sempre válidas.

Os poemas de Homero - "Ilíada" e "Odisseia" - e a Bíblia são geralmente considerados os pilares do cânone literário ocidental. A partir destas obras forjou-se uma tradição que foi seguida por Demócrito, Aristóteles, Platão, Virgílio, Horácio, Avicena, Dante Alighieri, Giovanni Boccaccio, Nicolás Maquiavel, René Descartes, Miguel de Cervantes y Saavedra, Luís de Camões, Luis de Góngora, William Shakespeare, Voltaire, Johann Wolfgang von Goethe, Jean-Jacques Rousseau, Victor Hugo, Machado de Assis, dentre outros Grandes autores.

Porém, o próprio conceito de Grande pressupõe uma distinção a algo menor, menos valioso, de menor importância. Esta divisão pressupõe escolhas, que por certo pressupõe exclusões. Para se termos o Grande (bom ou belo) escolhas precisam ser feitas, decisões precisam ser tomadas e justificadas. Mas em que se baseiam estas escolhas? Parte dessas questões parecem terem sido respondidas acima: graças as "suas características formais, sua originalidade ou sua qualidade" essas obras são selecionadas e postas na tal prateleira de destaque da literatura que merece mais atenção. Todavia, ao que parece, a afirmação traz mais problemas que soluções.

Em bela introdução ao seu livro "Teoria da Literatura - uma Introdução", Terry Eagleton nos dá pistas importantes sobre esta questão: conclui que a literatura não seja apenas aquilo que desejamos chamar como tal, já que sua valoração altera com o passar dos tempos, à medida em que as sociedades mudam e, com elas, seus valores. “Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão evidentes e inabaláveis quanto o edifício do Empire State. Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais.” (EAGLETON, Terry. 1984, pg 24)

Eagleton nos mostra a volatilidade do conceito Literatura. Acertadamente nos comprova - neste e em outros estudos - que o Literário para uma época pode não o ser para outra. Essa alternância se deve à maneira como as sociedades se comportam e quais os valores sociais, políticos, religiosos... aportam. Se hoje vemos Homero como um "ficcionista" em boa medida, à época grega de Aristóteles não era esta a relação que o povo grego tinha com seus escritos. Pedras fundamentais do ideal grego civilizatório, "Ilíada" e "Odisseia" representavam para os gregos o que a Bíblia e o Corão representam hoje para cristãos e muçulmanos, respectivamente, apesar de ateus olharem para estes textos de maneira não muito distinta da que olham para os de Homero.

Mas engana-se quem acredita que esse problema sobre a categorização do conceito "texto literário" se expressa somente de forma diacrônica. Lembro-me que em minha graduação de Letras-Português pela UFSC fui à Biblioteca Central procurar a obra "Os Sertões", de Euclides da Cunha, exigida para uma cadeira de Literatura Brasileira. Este livro importante encontrava-se, contudo, na prateleira de História. Na hora pensei tratar-se de um equívoco do(a) bibliotecário(a) da Universidade. Contudo, bastaram-me algumas páginas lidas para compreender que havia ali um problema, que justificaria inclusive a localização daquele livro: seria Literatura aquela obra, ou de fato poderíamos considerá-la uma obra não ficcional, de história? Ou seria uma matéria jornalística, afinal o autor foi a Canudos para cobrir o massacre? Destas perguntas, outras surgiram, como: os textos de história não contém em si elementos ficcionais? Toda ficção é necessariamente obra literária? Neste terreno pantanoso, poderíamos então colocar "Os Sertões" como pedra fundamental do cânone literário brasileiro?

A resposta para esta pergunta nos daria uma ideia do que seria cânone e de como são construídos. Em suma, a formação de uma estante literária digna de apreço social é obra oriunda não somente de elementos estéticos ou fundacionais para uma determinada cultura (IMPORTANTES SIM), mas também políticos e sociais. Aliás, como se viu acima, mesmo os valores estéticos são determinados a partir de uma organização social portadora de uma determinada gama de valores em detrimento de outra. E mesmo nestes casos, surgem aí as pedras no caminho, que dificultam o trajeto. É como afirmei: todo adjetivo precisa de sua antítese para que exista. Não haveria o belo sem o feio, o bom sem o mau etc. Dessa dicotomia - que é maquinalmente estipulada pela sociedade e aquilo que julga digno de valor - nascem as escolhas que, em última instância, delimitarão o cânone.

Vivemos em sociedades cindidas, divididas em classes sociais, cujos valores são estipulados a partir dos centros políticos para suas periferias. Estas sociedades são majoritariamente caucasianas, homofóbicas, machistas e racistas. Embora abram forçadamente espaços para a existência de outras formas de expressão - e quando existem são rapidamente transformadas em mercadoria pela indústria cultural -, estas coabitam com o cânone os espaços menos nobres da casa. Quantas vezes nos perguntamos por que não nos caem em mãos obras de escritoras negras e muçulmanas da África subsaariana? Quantos escritores indígenas paraguaios estudamos em nossas escolas ou universidades? Por que julgamos de maior valor artístico os versos dos trovadores medievais quando comparados aos dos repentistas do sertão nordestino? Quais os parâmetros utilizados para valorizar mais "Iracema", de José de Alencar, a "Bom Crioulo", de Adolfo Caminha, no contexto da literatura brasileira? Onde estão as mulheres nas obras fundacionais de nossa cultura?

Estas questões são importantes na medida em que estimulam a reflexão. Mas será que dão conta da totalidade do problema? E como entrariam nesse debate os clássicos? Vimos acima que Homero e a Bíblia são considerados os pilares do cânone ocidental. Mas e outras obras também lidas aqui e que, em menor ou maior grau, exerceram e ainda exercem influência em nossas letras? Não cito nem a monumental obra "As Mil e uma Noites", para Bloom considerada também como parte integrante do nosso arcabouço cultural ocidental. Refiro-me, neste caso, a exemplos como "Bhagavad Gita", o "Corão", o épico "Gilgamesh", ou "Mulan", o poema épico chinês que, segundo Leonardo Arroyo (A cultura popular em Grande Sertão: Veredas. se. Rio de Janeiro: José Olímpio. Brasília: INL, 1984), viu sua heroína ser redesenhada na figura de Diadorim, personagem mais forte de Guimarães Rosa? Ítalo Calvino talvez nos ajude.

Em seu já "clássico" "Porque ler os clássicos" discute essas questões, afirmando ser o clássico aquela obra que não se esgota na medida em que não perde sua atualidade. Obras que, além de fundamentarem a formação espiritual de um povo, vão além, tornando-se universais justamente por partilharem valores e sentimentos que não são exclusivos de um determinado tempo ou de uma sociedade, mas sim do ser humano. Essas obras são atemporais e, portanto, soam sempre como atuais. Neste ponto, a meu ver, dialoga - em alguma medida - com Harold Bloom.

Mas avancemos! A ideia aqui é também relatar experiências e concepções a partir da experiência pura e simples do ato da leitura desse tipo de texto (o literário - estipulado pela sociedade, pelo cânone, que contempla os clássicos formadores das literaturas e que são sempre atuais), sendo realmente aberto e amplo o alcance do seu conceito.

Pablo Picasso dizia ser a arte a mentira que nos permite conhecer a verdade; Liev Bronstein, o grande revolucionário russo, viu na arte um martelo que modela a realidade; para o bolchevique, a arte não devia espelhar o mundo a sua volta, mas recriá-lo a partir de suas leis internas, de seu movimento autônomo e intimamente (inter)ligado ao mundo a sua volta. Johann Gottfried Herder, intelectual do romantismo alemão, em 1769 cunhou o conceito Zeitgeist, que, em suma, é o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo. Ou, como se costuma dizer, o espírito de um tempo, aquilo que já se apresenta como tendência muitas vezes, mas que ainda não é predominante na sociedade.

Ou seja, tudo aquilo que vimos como normal, como natural, como imutável, é recriado pela literatura sob diversas perspectivas, a saber, a própria realidade, não somente questionada, mas ressignificada, reorganizada. Muitas vezes desvendada, despida de seus elementos internos, e nem sempre ainda dominantes, mas já relativamente presentes e bem ativos. Por meio da literatura – e pela arte de maneira geral – são o mundo e seus valores redescobertos, recriados, ressignificados. Desnudar a realidade imposta desse véu de alienação é também sua função e talvez uma de suas tarefas mais importantes.

Daí a perspicácia do(a) Artista (com A maiúsculo): não cabe a ele(a) simplesmente descrever o que vê, mas reorganizar, a partir do caos, a ordem. E desse processo de ressignificação da realidade, ela (a arte) nos humaniza. Ou, mais claramente, nos torna sujeitos melhores, justamente por nos tornar sujeitos diferentes, mais perspicazes, argutos, questionadores e, principalmente, mais sensíveis. Por nos mostrar a realidade sob uma ótica distinta daquela do status quo, nos "fotografar" a vulgaridade do mundo, nos torna mais sensíveis, faz-nos, como afirma Antonio Candido, mais dispostos para com o próximo.

A literatura, então, não corrompe e nem edifica, mas humaniza ao trazer livremente em si o que denominamos de bem e de mal. E humaniza por nos fazer vivenciar diferentes realidades e situações. Ela atua em nós como uma espécie de conhecimento porque resulta de um aprendizado, como se fosse uma espécie de instrução. Deriva daí o medo que autoritários têm da arte; dai o recorrente ataque a artistas protagonizados por radicais.

Em um belo artigo intitulado "Direitos Humanos e Literatura" (1989), o crítico brasileiro Antonio Candido qualifica a Literatura como um direito básico e fundamental de um ser humano, já que é por meio dele que a literatura se manifesta, tendo a capacidade, como já descrito, de humanizá-lo. Para o crítico - que qualifica acertadamente como literatura toda a narrativa que tem toque poético, ficcional ou dramático nos mais distintos níveis de uma sociedade, em todas as culturas, desde o folclore, a lenda, as anedotas e até as formas complexas de produção escrita das grandes civilizações -, a literatura tem um papel formador, na medida em que "Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas". (CANDIDO, 1989)

E sob esta perspectiva, como já explanou o crítico, literatura não seria apenas aquela canonizada, mas toda a forma de narrativa (popular ou erudita) capaz de harmonizar estes elementos. Tiramos daí outra lição: literatura não necessariamente precisa ser bela, ao menos não no sentido empregado por Aristóteles. Wisława Szymborska, poetisa polaca nobel de literatura, extrai das ruas sua poesia; João Cabral de Melo Neto extraiu da vida dura do sertanejo do nordeste brasileiro os seus versos "ásperos" e belos. Cora Coralina do sertão goiano cantou as lavadeiras, as doceiras, as escravas, as prostitutas. Nawal El Saadawi, escritora egípcia, em "A Face oculta de Eva", dá atenção particular à prática da mutilação feminina na sociedade onde nasceu, indo muito além do estereótipo ocidental (e canonizado) do Oriente. Sua "literatura" discute questões caras às mulheres para além do universo árabe, adentrando numa crítica contra o "fundamentalismo islâmico" protagonizado pelo Ocidente, afinal são os muçulmanos as primeiras vítimas deste fundamentalismo.

Quem melhor que Machado de Assis e Lima Barreto para te explicarem o Brasil? Como não compreender a sociedade portuguesa com Eça de Queirós? Poucos são capazes como Shakespeare ou Cervantes de nos mostrar nossas fraquezas e/ou qualidades. Como desprezar o caráter libertário dos versos de Cruz e Sousa? Como são belas as perturbações de Balzac, a complexidade psicológica dos personagens de Gogol e Dostoievsky. Como são maravilhosas as narrativas árabes de "As Mil e uma Noites" e quão perturbadoras as sensações ao redescobri-las em Nagib Mahfuz. O que falar da genialidade de John Milton, Mary Shelley, Cecília Meireles, Bertolt Brecht, José Saramago ou Lobo Antunes?  Sim, a literatura é complexa. E mais completa que os almanaques e livros de história.

Mas não somente! A literatura - e com ela a arte - está nas ruas também, nos versos de algumas composições de rap, do funk, do samba e dos versos dos poetas anônimos do sertão do Nordeste brasileiro; está nos grafites. A poesia está também na boca do povo simples, do operário, do bravateiro. Está na boemia; nas aspirações dos sonhadores que contestam e que lutam por mudanças. Está nos inconformados, naqueles que detestam as injustiças e que, por maneiras tortas ou retilíneas, lutam para acabar com elas. A poesia está à margem do cânone! Está em quase todos os lugares, menos nos lares dos conformados, dos autoritários, dos burocratas, dos corruptores e corruptos e naqueles insensíveis, incapazes que são de se tornarem mais dispostos para com o próximo. Basta sabermos tirá-la dos escombros em que se encontram e identificar o(s) mundo(s) que querem nos mostrar.

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L'Art pour surmonter la réalité

19.10.22

L'agus de plaisir

Nous vivons un de ces moments de l'histoire où l'humanité se trouve une fois de plus à la croisée des chemins. Depuis la Seconde Guerre mondiale, les êtres humains n'ont faisait pas face à une banqueroute humanitaire générale. Cette crise - qui va s'approfondir et qui ne laisse pas beaucoup de marge de manœuvre pour être surmontée - conduit le monde à la faillite. Nous sommes sur la sellette entre l'humain et la barbarie et dans une bonne partie du globe le chaos est l'élément prédominant.

Dans ce contexte où les sociétés - conservatrices par essence - auront besoin d'avancer dans des mesures de résistance afin de faire quelques pas en avant justement pour ne pas avoir à reculer dans des conquêtes universelles, l'art devient incontournable. Friedrich Nietzsche disait déjà : « L’art nous est donné pour nous empêcher de mourir de la vérité. » Seul l'art peut transformer le désordre du monde en beauté et rendre acceptable tout ce qui est problématique dans le monde, achèverait l'auteur de cette fameuse phrase.

Voyez, cette phrase me semble avoir beaucoup de sens dans des temps sombres comme ceux que nous vivons ; en cette période où l'espoir semble se noyer, anéantissant les rêves pour lesquels nous nous battons afin de pouvoir nous construire comme sujets sociaux transformateurs et actifs dans ce monde qui nous a donné naissance, humains volatils. L'art comme refuge, comme échappatoire à ce processus de « durcissement » de l'âme et de reconfiguration esthétique du monde capitaliste, c'est ce dont nous parle le brillant philosophe prussien du XIXe siècle.

C'est une qualité prodigieuse de l'art : celle de servir d'instrument humain capable d'apaiser nos angoisses, d'adoucir le mépris pour les autres et de nous apporter un simple sourire dans les moments d'incrédulité et de désespoir. Re-signifier le monde et nous faire « sentir » la Beauté dans ses décombres, ses entrailles, nous aide à le porter et à avancer, rendant notre cheminement social beaucoup moins douloureux. Après tout, « sans sol », sans issue et sans espoir pour l'avenir, nous sommes paralysés.

Ce refuge, souvent nécessaire, peut être gratifiant, mais il est loin d'être le protagoniste isolé en ce qui concerne l'usufruit de les qualités artistiques. On attend beaucoup plus de l'art. Comment disait Ernest Fischer (La nécessité de l'art), l'art peut élever l'homme d'un état de fragmentation à un état d'être entier. Elle permet à l'homme de passer de l'en-soi au pour-soi. En ce sens, elle (l'art) instaure de nouvelles capacités en confirmation avec l'humanité des êtres. Plus que cela, en fait : elle permet à l'homme non seulement de comprendre la réalité, contribuant à la soutenir, mais aussi l'outille pour la transformer, dans la mesure où elle l'encourage à la rendre (la société) plus hospitalière à toutes les personnes. L'art est social, il est société : les deux termes et les deux concepts se croisent. Ce n'est pas un hasard si les secteurs les plus conservateurs de la société se dégoûtent de l'art.

Le monde est en miettes, complètement dilué dans idéologies. Brisé, fragmenté, enflammé. Et l'art véritable, en tant qu'outil de persécution et de lutte contre la bêtise générée par un capitalisme en crise et en décomposition, survit à sa marchandisation (pour le bien de tous !). Et tant qu'il poursuivra son chemin, il continuera à nous montrer le monde de manière transgressive, en le dépouillant de la dure réalité et en nous montrant avec des contours vifs, de manière dialectique, ce qui peut et doit être changé. Les rêves n'ont pas de date d'expiration, c'est bon à retenir ! Et même les fondations les plus solides sont de temps en temps balayées comme de la poussière. Il faut que nous avancions et que nous surmontions Nietzsche par le « positif », ou, comme dirait Trotsky, par la révolution permanente, pour ceux qui sauront se souvenir de lui encore, mais cette fois comme clé de mémoire, pour pouvoir dire aussi que l'art a enfin gagné.

Parabéns, Tias Professoras

15.10.22

Voando

Parece que foi ontem. Era uma manhã de 1987. Eu, com meus 07 anos de idade descendo minha rua para ir ao ponto de ônibus pegar a condução para ir à escola que meus pais tinham me matriculado. Chamava-se Alferes Tiradentes, uma instituição de caráter militar brando, que eu iria descobrir somente anos mais tarde, muito tempo depois de tê-la deixado, em 1991.

Apesar de não ser novidade uma sala de camaradinhas, aquela era uma sensação bastante nova e bastante empolgante. Roupas engomadas, material escolar novo, tênis brilhando, mochila, lancheira e cabelo penteado após uma noite mal dormida, ansioso para que amanhecesse e fosse à minha primeira aula. A escola situava-se no centro da cidade, na Rua Tiradentes, esquina com a Avenida Hercílio Luz. Eu nada conhecia do centro, pois, à minha época, a infância fora toda vivida e construída com amigos, amigas, parentes e camaradinhas do Nei Judite Fernandes de Lima, ao lado de minha casa, no bairro Saco Grande I (hoje João Paulo).

Na época não tínhamos carro, a ponte Hercílio Luz, nossa "velha senhora", estava praticamente fechada, quase sem condições de tráfego, e os ônibus eram poucos, apesar de ser um bairro vizinho ao centro. Mas nada me incomodava: nem a estrada de chão, tampouco o tempo que ficaria na parada, muito menos o tempo que levaríamos para lá chegar, apesar de minha ansiedade. A mim só importava experienciar essa nova sensação, que não se iniciaria na escola, mas desde a hora em que me levantei da cama para ir para minha primeira aula. Era como se aquela criança - que há poucos dias estava na pré-escola - amadurecesse horrores de uma hora para outra. E pensando bem, acho que foi isso mesmo.

Meu primeiro dia de aula na escola oficial (agora eu era um aluno de verdade, pois não estava mais na pré-escola - já fazia parte das pessoas que faziam história) correspondeu às expectativas, a julgar pelas memórias. Até hoje me lembro da tia Marluce: professora negra do primeiro ano que me ensinou as primeiras letras, os primeiros cálculos matemáticos e as primeiras lições de ciências. Que maravilha foi adquirir aquele conhecimento. Como fora honesta, sincera, perseverante e generosa a tia Marluce. Aliás, todos os colegas da classe foram-me generosos: durante os primeiros meses sempre era eu quem terminava minhas tarefas mais tarde. Principalmente as atividades de escrita. E todos, pacientemente, sempre me esperavam terminá-las, sem nada falar e sem me criticar, respeitando o meu tempo.

Os primeiros anos de escola foram uma descoberta enorme, mas nenhum foi como o primeiro ano escolar. E deste ano, creio que a primeira semana vivida dentro da salinha apertada do Colégio Alferes Tiradentes, quase um corredor onde compartilhava experiências com meus novos comparsas, foram de todas as melhores experiências daquele período em diante. Pelo menos até a chegada à Universidade. E digo daquele momento em diante porque, durante minha pré-escola, meses antes, visitei o circo. Conduzido por uma professora, a tia Ione, mulher negra também, com uma fala mansa gostosa e com um sorriso encantador, levou-nos (a sua filha, a meu irmão e a mim) em uma matinê circense.

Eu, uma criança de 06 anos, no circo. Encantado, maravilhado, estupefato... no circo. Que vislumbre! Que encantamento! Que ensinamentos. Uma de minhas grandes memórias de infância a desta tarde. Tão clara quanto este momento! Fora a primeira vez que voei, que me deixei levar tão alto quanto uma criança de 06 anos poderia ir. E devo este despertar à tia Ione, minha professora da pré-escola, muito amiga de minha tia Maria, a merendeira, e amiga pessoal de meus pais. Escola de bairro, de cidade pequena. Escola onde as pessoas são amigas, são parentes e as professoras e professores parecem continuar com a educação fora do seu expediente: nas ruas, em nossas casas etc. Como se quisessem sempre nos indicar o rumo certo a tomar, ao menos nos primeiros anos de nossas vidas.

Quanta falta me fazem estas tias professoras. E quão decisivas foram na minha formação. Em anos de grandes dificuldades, de retiradas de direitos, de baixos salários, de péssimas condições de trabalho desses profissionais tão importantes, é nelas (e em outras e outros professores) que me espelho. É também por eles que continuo nesta jornada. Que esse dia 15/10, dia do professor, nos sirva de reflexão e de inspiração. E nos dê forças para continuarmos nossa tarefa - dentro e fora da escola -, assim como fizeram Tia Ione e Tia Marluce, sempre vivas em meu coração. Que descanse em paz a Tia Ione, que já deixou este plano. E que Tia Marluce, se ainda viva for, que viva plenamente seus últimos dias, ciente de seu trabalho muito bem realizado. Esse texto e o dia de hoje dedico a elas e àqueles(as) que nos formaram, apesar dos ataques, das lutas que travaram (e travam) pela sobrevivência e das dificuldades que enfrentam. VIVA as Tias Professoras!

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Grandioso cavalheiro

10.10.22

Coroas

Eu ao ouro me humilho,
Meu amante e meu amado,
Puro ouro eu enamorado
De um dourado contínuo.
Que então dobrão sensível,
Faço tudo o que eu quero,
Grandioso cavalheiro
Trato a ti por Dom Dinheiro.

Resplandece o teu dourado,
Tens redobrado valor,
Graças ao teu esplendor
A cristo e mouro és amado.
Belo ainda que feroz,
Dizem ser mal conselheiro,
Grandioso cavalheiro
Trato a ti por Dom Dinheiro.

De tão grande majestade,
De duelos nunca és farto,
Mesmo sendo esquartejado
Jamais perde a qualidade.
Amo tua autoridade,
Faz-te honrar um assassino,
Grandioso cavalheiro
Trato a ti por Dom Dinheiro.

És amado em qualquer terra
És esperto e sagaz
Seus escudos compram a paz
E por ti fazemos guerra.
Banes tanto aos naturais,
Enriquece o forasteiro,
Poderoso cavalheiro
Trato a ti por Dom Dinheiro.

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Leia também OS POEMAS:

Boop-Oop-a-Doop - Viva a Betty Boop!

04.10.22

Betty Boop cartoon.jpg

Em 09 de agosto de 1930 estreava na televisão estadunidense aquela que seria a primeira personagem protagonista feminina do cinema: Betty Boop. Idealizada pelo produtor Max Fleischer e desenhada pelo artista Grim Natwick, essa garota de classe média estadunidense estreou no curta Dizzi Dishes. Independente e provocadora, sempre com as pernas de fora, exibindo uma cinta-liga, Betty Boop é inspirada nas divas hollywoodianas de seu tempo e outras, como Joséphine Baker e Ester Jhones, esta talvez sua maior influenciadora.

Ousada, destemida, sensual (sexy), esta jovem garçonete do final dos anos 20 foi bastante ativa em seu tempo. Com seus cabelos curtos de Louise Brooks e sua paixão por boates, Betty é herdeira das melindrosas (ou garçones), geração jovem que quebrou as regras sociais e sexuais de seu tempo. Ativas nas noites dos grandes centros, principalmente Nova Iorque, frequentavam boates, fumavam, bebiam - a despeito da imposição da lei seca nos Estados Unidos - e ouviam Jazz, estilo musical controversso, engajado e negro, baseado no improviso e considerado politicamente incorreto à época.

Sua personagem é tão forte para o período que, se compararmos com sua "concorrente", a Minie dos estúdios Disney, é fácil de se notar a diferença. Enquanto esta é fraca, secundária, com pouco espaço e completamente dependente de seu par masculino, o Mickey, Betty é sua antítese: independente, autonônoma, dona de suas próprias vontades e realizadora de seus desejos e anseios mais profundos. Mesmo personagens posteriores femininas (inclusive dos próprios estúdios Fleischer), como a Olívia, do Popeye, segue a mesma lógica machista das demais produções cinematográficas.

Período em que se buscou - por parte das mulheres - grandes liberdades, Betty Boop encarna a feminilidade, a "modernidade" e a força feminina, perspectivas e sentimentos bastante latentes em setores médios dos EUA neste tempo. Desde o início da década de 1910 que as mulheres sufragistas se organizavam em torno da bandeira do direito ao voto na então já maior potência capitalista do planeta. Na década seguinte esse direito seria adquirido e as mulheres puderam ir às urnas pela primeira vez na história na igualitária e democrática "terra da liberdade e das oportunidades".

No ano de 1932, no auge da disputa eleitoral entre Hoover e Roosevelt, Betty resolve então se candidatar às eleições presidenciais, interferindo no debate entre democratas e republicanos. Repleta de propostas "extravagantes" ela vence então as eleições, colocando - pela primeira vez na história dos EUA - uma mulher na Casa Branca. Fato que seria repetido muitas décadas mais tarde pela personagem Claire Underwood, de House of Cards, e que não se consolidou ainda na política oficial estadunidense.

Esther Jones and Betty Boop

Embora criada em 1930, Betty Boop ficou famosa mesmo um ano mais tarde, quando interpretou Boop-Oop-a Doop-Girl, de Helen Kane, e, enfim, entrou para a história, participando de mais de 100 animações. Seu imenso sucesso, contudo, provocou bastante incômodo, e não somente nos estúdios de Hollywood. Helen Kane, por exemplo, que em 1932 acusou Max Fleischer de plagiar em sua Betty a sua voz de bebê, resolve entrar na justiça contra o estúdio, em 1934, reclamando a quantia de 250 mil dólares, à época uma verdadeira fortuna.

Todavia, dois anos mais tarde viria a perder o caso por não conseguir provar que seu estilo não fora copiado (roubado) de "Baby" Esther Jones. Em favor dos estúdios Fleischer depôs o gerente teatral Lou Walton acusando que, em 1925, ele treinou uma jovem criança negra chamada Esther, ensinando-a a interpolar suas músicas com letras líricas, que ela mais tarde transformou em sua marca registrada, criando o "boop oop a doop".

Este o primeiro desafio enfrentado pela nossa estrela do cinema. Mas não foi o único; em seu caminho de sucesso, a diva dos desenhos animados precisou "driblar" o controle estatal, que olhava para Hollywood com muita atenção e critério. No início da década de 1930 o país vivia uma grande recessão, causada pela crise de superprodução capitalista e pela política liberal estadunidense que levou à quebra da bolsa de valores e ao derretimento de parte da economia do país. Esse acontecimento levou a uma pobreza extrema e ao endividamento da classe trabalhadora em seu conjunto. Milhões de pessoas - da noite para o dia - simplesmente perderam seus lares por não terem dinheiro para pagar suas hipotecas, tampouco alugueis. Isso levou a uma migração em massa dentro do país para grandes centros, provocando, dentre outras coisas, famélicos e subempregados, já que passou a ter um gigantesco exército de reserva para ser explorado pelos capitalistas.

A política cultural do período adotada por Hollywood era a de escamoteamento desses elementos sociais de maneira direta como forma de alienar as massas. Cada vez mais popular - principalmente a partir do final da década de 20 com a voz -, o cinema foi muito útil (ainda hoje funciona assim em muitos aspectos) às necessidades da burguesia nacional: com uma estética divertida, despretenciosa muitas vezes e eivada de músicas e sensualidade, o público era arrastado às salas com o intuito único de divertimento. A desgraça humana, quando tratada, era de maneira bastante sutil e com linguagem conotativa. É desse período a popularização das histórias de vampiro, por exemplo, que redesenhavam à época o clima de terror e de desespero das massas perante à fome, ao desemprego e à miséria.

Nunca foi a função de Hollywood criar uma arte que levasse à reflexão. Pelo contrário! A indústria cinematográfica é uma indústria: atende às necessidades do mercado e visa ao lucro. E como toda a indústria, ela quem cria as tendências - no caso, o gosto. Ou seja, boa parte do que pensamos e gostamos sobre vários assuntos, inclusive a arte, procede dessa indústria, que nos enviesa por meio de ideologias que se conflitam inclusive com nossos interesses e nossas necessidades. É claro que também dialoga com a realidade vigente, afinal, o distânciamento único da vida cotidiana provocaria - cedo ou tarde (mais cedo que tarde) - o desinteresse por consumir esse produto. Contudo, mesmo quando o faz, é para imprimir ali sua digital, incutar naquele consumidor as ideologias que essa indústria - burguesa é bom que se diga - defende.

Betty Boop - boop a dooped

É bom ressaltar esse fator, mesmo porque, a despeito de tudo o que Betty Boop representa para o cinema ocidental no que diz respeito à emancipação da mulher, não podemos nos esquecer que é filha de um estúdio cinematográfico estadunidense, e que essa emancipação nunca é levada às últimas consequências: ela jamais entra em contradição com os interesses do capitalismo e com a visão de mundo burguesa necessária para a manutenção dessa ordem social. Pelo contrário! Inclusive a sua sensualização é pensada a partir dos moldes dessa indústria e vem carregada de machismo. Mas B. B. é mais que isso!

É que Betty Boop, garota estadunidense de classe média, reivindica por vezes estilos e conquistas que o capitalismo nunca foi capaz de cumprir em sua integralidade e que os bolcheviques, por exemplo, na primeira fase da revolução, o fizeram com muito mais amplitude e profundidade: na URSS de Lenin e Trotsky, as mulheres não tinham apenas o direito ao voto, mas à vida política em sua integralidade. O estado operário, em seus primórdios, criou creches, restaurantes e lavanderias públicas para que se desonerasse a mulher das atividades domésticas e as inserisse nas atividades políticas e intelectuais do estado soviético. Além disso, as mulheres conquistaram cargos importantes e centrais em todas as esferas do estado, sem discriminação de gênero. É claro que, com a vitória da ofensiva contrarrevolucionária, a burocracia operária que se instalara nas esferas públicas e que usurpara os trabalhadores do controle do primeiro estado operário da história, boa parte destas conquistas foram retiradas.

Mas ainda assim ela é admirável, linda, poderosa e apaixonante. Principalmente por continuar atual. E, se assim a é, porque o mundo em que viveu nossa diva ainda existe; é o mesmo mundo em que vivemos hoje. E suas lutas sãos as mesmas que enfrentamos. São admiráveis alguns episódios em que ela se impõe perante figuras masculinas (todas muito maiores que ela) dizendo NÃO à vontade que sentem em possuí-la à força. Vários são os episódios em que aparece um assediador tentando estuprar nossa heroína, ou roubar-lhe um beijo na marra, em que ela retruca com agressões. Em um dos episódios ela responde com um tapa no rosto a um desses agressores. Ou seja, se as pautas pelas quais "lutara" nossa Betty estão mais atuais que nunca é porque são fundamentais para a manutenção da ordem social vigente, não sendo possível superá-las com reformas, mas com revoluções.

É claro que não deriva diretamente dessas batalhas o seu enorme sucesso. Tampouco o apelo popular de sua personagem, bastante distinta (em alguns aspectos) da lógica fílmica hollywoodiana desse período, que, invés de repudiar e combater a agressão masculina perante à mulher, a incentivava, fazendo coro ao machismo estrutural no estado, invés de combatê-lo. A sensualidade extrema de Betty Boop - retrabalhada por vezes como objetivização de sua imagem feminina - ajuda a explicar esses fenômenos. Contudo, também é verdade que muitos são os filmes em que vimos homens sobre mulheres agarrando-as à força e as beijando sem que, em um primeiro momento, quisessem essa invasão. E disso não podemos acusar suas animações. É desnecessário falar que seu público - nesse momento - é um público adulto, tanto masculino quanto feminino, mesmo porque os estúdios Fleischer vez ou outra despia Betty.

Mas não acabamos ainda. É que um novo desafio - ainda maior que o anterior - aguardava por Betty Boop, dessa vez vindo da igreja católica. A cada vez mais influente Liga católica da decência liderava uma cruzada implacável contra Hollywood. Para a igreja havia muita libertinagem, sexo e álcool nas telas. Com aproximadamente 20 milhões de praticantes no país em meados dos anos 30, não foi difícil de os padres convencerem os fiéis de que o cinema estava em desacordo com os valores cristãos e que a mensagem que passava as produções eram nocivas à moral e aos bons costumes da maioria de nossa sociedade (diga-se: maioria branca e de classe média).

Betty Boop - Snow White 1933

O aprofunfamento da intervenção desse movimento fez com que os produtores repensassem a política de suas produções. A partir de 1934, então, intuindo evitar um boicote devastador a Hollywood, os produtores decidem aplicar o Código Hays. Este manual de boas maneiras proibia o romance interracial, a nudez completa, a homossexualidade (embora este tema fosse muito pouco abordado de maneira séria) e o adultério. La fête avait fini !

Seria este o início do fim de nossa heroína, já que a intervenção em sua imagem, alongando suas vestimentas, retirando seus espartilhos e alterando sua personalidade a ponto de torná-la uma legítima e comportada -embora por vezes estressada e meio "louquinha" - dona do lar estadunidense, bastante comum em estereótipo às dos anos 1950, acabou por matá-la na prática. Aliás, neste aspecto Betty Boop ajudou a criar e a difundir ela mesma este estereótipo bastante conhecido por nós todos.

Os filmes desta época se tornaram chatos e retrógrados, emboras ouvesse episódios em que os estúdios Fleischer contornassem a sensura com bastante inteligência, como um (acho que o primeiro dessa nova "era") em que inicia com nossa protagonista acordando com um pijama "bem comportado" e falando da festa maravilhosa que tivera na noite anterior. Enquanto fala, a animação nos mostra um panorama de vários cômodos da casa com louças sujas, garrafas e roupas espalhadas por tudo quanto é lado e muita sujeira. O episódio continua, contudo, com Betty limpando tudo, e se divertindo ao fazê-lo.

Em suma, como o interesse das produções visam eminentemente ao lucro, os produtores preferiram (e preferem) se curvar aos interesses de uma instituição retrógrada e de um setor social criado com valores herdados da escravidão a enfrentá-los. Entre manter nossa heroína viva dialogando com as novas necessidades sociais emergentes, seu criador preferiu multilá-la. E nesse ponto a história de Betty Boop pode também nos apresentar uma lição: a de que conquistas por dentro do capitalismo devem ser arracandas de nossos verdugos. E mesmo assim, se não avançarmos rumo à superação dessa ordem econômico-social nociva à vida, essas conquistas - mais cedo ou mais tarde - serão suprimidas, pois em um mundo onde há exploradores e explorados, os interesses de uns sempre negam os de outros.

O pai mata a filha com medo de perdê-la. Contudo, como a verdade é filha do tempo, não da autoridade, foi incapaz de notar que, ao ceder a pressões reacionárias, mutilara sua menina, arrancando-lhe a alma e deixando-lhe praticamente seca por dentro. Isso se expressara obviamente em sua nova roupagem e em seus dois novos parceiros, o Grampy, um velho e protetor professor que traz soluções para os problemas domésticos, e Pudgy, um cãozinho que protagoniza as melhores piadas. Betty, que surgira para o mundo como uma sensual cachorrinha, terminou por ter o protagonismo roubado por um cão.

Betty Boop - Dizzy Dishes (1931)

Ainda assim, Betty Boop, a personagem, sobreviveria a mais esse ataque, porém, reconfigurada. Ela continuaria a fazer parte do cotidiano familiar estadunidense por aproximadamente mais duas décadas, migrando do cinema para a televisão. E também migrando de público! Na década de 50, graças à transformação que sofrera, atrairia um publico eminentemente infantil. Transmitida a cores, com seus olhos grandes e azuis, sua boquinha graciosa, sua voz infantil e sua grande cabeça desproporcional ao corpo - a exemplo dos bebês - ajudariam para realocá-la neste espaço.

Por um bocado de anos nossa Betty ainda formaria uma memória coletiva, porém, desta vez, de uma típica dona de casa que cativaria as crianças e as formaria segundo valores machistas e conservadores ainda em voga hoje nos Estados Unidos e no mundo. Bem diferente daquela Betty que agrediria e escandalizaria Bolsonaros e Trumps e que jamais se calaria perante a misoginia contida nas ações e palavras do ex-presidente da libertária, igualitária e democrática "América", Donald Trump: Grab them by pussi! (Pegue-as pela vagina!). Que aprendamos e nos encorajamos com ela. PARA SEMPRE BETTY BOOP!

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A Arte para superar a realidade

03.10.22

Arte-Realidade.jpg

Estamos vivendo um daqueles momentos da história em que a humanidade mais uma vez se coloca perante uma encruzilhada. Desde a segunda grande guerra que o ser humano não se deparava com uma falência geral humanitária. Essa crise - que irá se aprofundar e que não deixa muitas margens de manobra para ser superada - vem levando o mundo à bancarrota. Estamos na berlinda entre o humano e a barbárie, sendo que, em boa parte do globo, o caos é o elemento predominante.

Nesse contexto em que as sociedades - conservadoras em sua essência - precisarão avançar em medidas de resistência visando a dar alguns passos à frente justamente para que não tenham que retroceder outros tantos em conquistas universais, é que a arte se torna imprescindível. Nietzsche já dizia: "Temos a arte para não morrer ou enlouquecer perante a verdade. Somente a arte pode transfigurar a desordem do mundo em beleza e fazer aceitável tudo aquilo que há de problemático no mundo".

Eis que essa frase parece-me fazer grande sentido em tempos sombrios como os que vivemos; neste tempo em que parece-nos afogar as esperanças, a destruir os sonhos pelos quais lutamos para que nos construíssemos enquanto sujeitos sociais transformadores e ativos neste mundo que nos pariu, a nós, humanos voláteis. A Arte como refúgio, como fuga desse processo de "endurecimento" da alma e reconfiguração estética do mundo capitalista é do que nos fala o genial filósofo prussiano do século XIX.

Portentosa qualidade essa da arte: a de servir como instrumento humano capaz de acalentar nossas angústias, de suavizar o desprezo ao próximo e de nos trazer um simples sorriso em épocas de descrença e de desespero. Ressignificar o mundo e nos fazer "sentir" o Belo dentro de seus escombros, de suas entranhas, nos ajuda a suportá-lo e a seguir em frente, tornando bem menos penosa nossa jornada social. Afinal, "sem chão", sem saída e desesperançosos em relação ao futuro, paralisamos.

Esse refúgio, necessário muitas vezes, pode ser gratificante, mas está longe de ser o protagonista isolado no que concerne ao usufruto das qualidades artísticas. Da arte se espera muito mais. Citando Ernest Fischer (A necessidade da arte, p.57): “A arte pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser íntegro, total”. Em suma, ela permite o homem ir do em si ao para si. Nesse sentido, estabelece (a arte) capacidades novas em confirmação com a humanidade dos seres. Mais que isso, na verdade: capacita não somente o homem a compreender a realidade, ajudando a suportá-la, mas gabarita-o a transformá-la, na medida em que o estimula a torná-la (a sociedade) mais hospitaleira para a humanidade. A arte é social, é sociedade: interseccionam-se os dois termos e os dois conceitos. Não à toa a ojeriza que setores mais conservadores da sociedade têm da arte.

O mundo está em cacos, completamente diluído em ideologias. Destroçado, fragmentado, em chamas. E a arte genuína, como uma ferramenta de perseguição e combate à estupidez gerada por um capitalismo em crise e decadente, sobrevive a sua mercantilização (para o bem de todos!). E desde que prossiga o seu caminho, continuará nos mostrando o mundo de uma maneira transgressora, descarnando-lhe a dura realidade e nos mostrando com contornos vivos, de uma forma dialética, o que pode e deve ser mudado. Sonhos não possuem data de validade é bom lembrar! E até as fundações aparentemente mais sólidas são varridas como poeira de tempos em tempos. É necessário que avancemos e que superemos Nietzsche pela "positiva", ou, como diria Trotsky, pela revolução permanente, para quem sabe voltar a nos lembrar dele, só que desta vez como chave de memória, não como lamentação de um estado fático, podendo dizer também que a arte venceu finalmente.

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Sobre as eleições no Brasil

01.10.22

Quadro Diego Rivera

Amanhã, dia 02/10/2022, ocorrerão as eleições para cargos federais no Brasil. Estão em disputa: deputados estaduais e federais, senadores, governadores dos estados da federação e o cargo de presidente da república. O PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) participará, mais uma vez, deste processo eletivo, a despeito das pressões oportunistas de que abstenhamo-nos de apresentar nosso programa. Não é incomum sermos indagados a esse respeito, todavia, na eleição mais polarizada após a "redemocratização" do país, nós, marxistas, temos sido bastante assediados para que abandonemos nossa candidatura própria e apoiemos a chapa neoliberal Lula / Alckmin, única alternativa, segundo os defensores dessa ideia, de enfrentar o fascismo de Bolsonaro.

A despeito de todo este assédio, dentre todas as pressões cotidianas que enfrentamos, uma chamou-me a atenção: o recente pronunciamento de Paulo Basil e Mauro Puerro, do periódico Esquerda Online, vinculado ao PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Intitulado como Unir nossa classe contra Bolsonaro, os autores exortam o PSTU, o PCB e a UP a abandonarem suas candidaturas em favor da chapa neloliberal encabeçada pelo PT com o argumento de que esta seria uma espécie de obrigação na luta contra o neofascimo de Bolsonaro.

O texto inicia com uma epígrafe do poema Mãos Dadas de Carlos Drummond de Andrade, publicado originalmente na obra Sentimento do Mundo (Não serei o poeta de um mundo caduco / Também não cantarei o mundo futuro / Estou preso à vida e olho meus companheiros / Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças / Entre eles, considero a enorme realidade / O presente é tão grande, não nos afastemos / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas) e defende o posicionamento oficial da principal corrente do PSOL, que abriu mão de uma candidatura própria para defender uma pauta neoliberal contra aquilo que denomina de golpismo fascista de Bolsonaro.

Embora compreenda o receio das ameaças fascistas por parte de setores da classe trabalhadora - motivo que me levou, inclusive, a publicar, em 2019, um artigo neste espaço visando a discutir a questão, intitulado O governo Bolsonaro é um governo fascista? - e sinta nojo da figura do atual presidente brasileiro, ele sim fascista ideologicamente, seria correto que essas organizações abrissem mão de disputar o processo eleitoral, apresentando seus programas para a classe trabalhadora? Serão estas as reflexões que pretendemos trazer com este pequeno texto.

Leon Trotsky, revolucionário russo, entre fins da década de 20 e início da década de 30 do século passado, poderá nos ajudar a chegar a uma resposta. Para aqueles que não sabem, Liev Davidovich Bronstein (o Trotsky) foi o revolucionário marxista que mais enfrentou essas questões: primeiramente lutando contra a burocracia soviética que expropriara a classe trabalhadora do controle do recém formado estado operário, eliminando boa parte das conquistas da revolução, depois por enfrentar - junto ao Partido Comunista alemão - a possibilidade de Hitler assumir o poder. Essas batalhas renderam escritos geniais, como: A Revolução Desfigurada (1929), em que Leon discute, dentre outras coisas, como a burocracia recém apoderada desfigurou a imagética revolucionária; A Revolução Traída (1936), na qual Trotsky - de maneira genial - traz dados econômicos do estado soviético e demonstra como o estalinismo ascendeu ao poder e para onde iria a URSS daquele momento, não eximindo-se de mostrar a via revolucionária para contornar o problema;  e Revolução e contrarrevolução na Alemanha, uma compilação de artigos escritos entre 1930 e 1933 no qual discute a necessidade de uma frente ampla entre o PC alemão e a social-democracia daquele país, como única forma de inviabilizar a ascensão do nazismo ao poder. Esta obra é o melhor material para se compreender o fenômeno do fascismo: suas origens, a classe social que o sustenta, seus perigos, etc.

Estas obras não nos dão apenas a base para começarmos a compreender o problema do fascismo ou do estalinismo. Suas lições mais importantes - além da formulação intelectual dialética - encontram-se no campo de atuação revolucionária perante as tarefas reais e urgentes impostas à classe trabalhadora. No que concerne às eleições e ao "enfrentamento" que os revolucionários devem dar a ela, Trotsky (e o marxismo em seu conjunto, pois é assunto bastante discutido) elaborou vários escritos. Contudo, para nível de explanação, aproprio-me de uma pequena entrevista intitulada Uma conversa com Leon Trotsky, publicada na abertura do Tomo III, volume 2 (1932) de seus Escritos. Será que Trotsky abriria mão de pedir votos para o PCA (em 1932, às portas do nazi-fascismo) em favor de uma coligação da social-democracia com a burguesia democrática contra Hitler? Diante desse problema, Leon é contundente:

Trotsky: ¿Viene usted de Alemania? ¿En qué partido está?

Bergmann: Estoy en el SAP.

Trotky: ¡Qué mal está eso!

Bergmann: Vine aquí con el grupo de Walcher-Froelich.

Trotsky: ¡Peor todavía! ¡Hay que evaluar a los partidos desde dos perspectivas, la nacional y la internacional! Internacionalmente el SAP se relaciona con los elementos dudosos de todo el mundo. En Alemania toma resoluciones equivocadas sobre todos los problemas importantes. Tomemos las elecciones presidenciales. Lo correcto era apoyar a Thaelmann. El apoyo unificado a la candidatura de Loebe es imposible. No les podemos pedir a los obreros que voten por Loebe, es decir por el programa socialdemócrata. Por cierto, tengo muchas diferencias con Thaelmann, pero él representa un programa, un programa comunista. En cambio, la socialdemocracia es un partido capitalista.

Bergmann: ¿Y si Hitler hubiera resultado electo como Hindenburg en 1925, es decir, con un margen a favor inferior al total de los votos recibidos por los comunistas? Usted tiene que tomar eso en cuenta; en ese caso los comunistas hubieran sido responsables ante toda la clase obrera por los resultados directos de la elección de Hitler.

Trotsky: No se puede quedar bien con todo el mundo: A mí me basta con asumir la responsabilidad por mi propio partido. Toda la palabrería de Seydewitz acerca de anteponer los intereses de la clase a los del partido es un contrasentido. Esa es la consecuencia de pretender convertirse de golpe en un gran partido y no tener paciencia para construirlo lenta y sistemáticamente. El revolucionario debe ser paciente. La impaciencia es la madre del oportunismo.

Seria interessante que lessem o referido artigo que publiquei aqui neste espaço. Ao discutir o governo Bolsonaro e seu caráter, contextualizei o problema intuindo desconstruir algumas das falácias sobre a questão do fascismo e do pretenso golpe que nossa democracia sofrera. Com as lições históricas apreendidas pelo marxismo e visando a mostrar o caráter do movimento fascista, trouxe à luz as reflexões de Trotsky sobre o problema, bastante atuais diga-se de passagem. Entendo que complementaria bastante estas reflexões, principalmente por resumir algumas das ideias que discutiremos a seguir, o que contribui para evitar confusões e má interpretações. Eis algumas das obeservações sobre a entrevista:

1. Trotsky jamais formaria um bloco político com a social-democracia alemã (equivalente ao PT brasileiro) e com a burguesia "pacifista" e "democrática" para as eleições presidenciais, mesmo no caso em que o adversário nas eleições fosse Hitler. O interlocutor insta Trotsky a considerar o caso em que o seu partido, apresentado independentemente nas eleições (aqui ainda era o Partido Comunista Alemão; a ruptura ocorreria apenas mais tarde), acabasse recebendo um total de votos que pudesse depois receber a acusação de ter contribuído para a vitória eleitoral de Hitler. Mesmo assim Trotsky responde: "Não se pode agradar a todos, sou o responsável unicamente pelo meu próprio partido". É importante observar que Trotsky combatia ferozmente, com todas as suas forças, o fascismo e o nazismo. O centro de sua atividade política nesses anos consistia em alertar os partidos da classe trabalhadora alemã sobre a necessidade de fazer uma frente única contra o nazismo. Os estalinistas, por seu lado, eram contra a frente única: tinham uma política sectária e suicida: diziam que a social-democracia e o fascismo eram a mesma coisa (gêmeos) e se opunham à frente única. Note-se que frente única não é o mesmo que coligação eleitoral. Em suma, caracteriza-se a frente única por um dispositivo cujo intuito é o de mobilizar a classe trabalhadora para a luta política e física contra o fascismo. A coligação eleitoral da burguesia com a social-democracia, pelo contrário, é um dispositivo para desmobilizar, anestesiar e retirar da classe trabalhadora toda capacidade de ação independente.

2. Trotsky rejeita o voto em um candidato social-democrata (o equivalente a Lula) afirmando que a social-democracia é um partido burguês. Note-se: apesar de sua origem como partidos operários reformistas, tornaram-se partidos burgueses por seu programa e política. Não se poderia jamais pedir votos para um programa capitalista. O candidato que Trotsky defende nessa discussão é o candidato estalinista, do Partido Comunista. Apesar dos desastres da política estalinista, esse partido representava um programa operário. Observe-se: tudo gira em torno do critério de classe. Isto é marxismo. Não se trata do tamanho do partido, de sua viabilidade eleitoral, de sua maior ou menor influência, e sim de seu programa. Como é possível que Mauro Puerro e Paulo Pasin tenham tido a coragem de dizer que o marxismo, ao longo da história, teria pedido votos para um candidato como Alckmin ou mesmo o Lula atual, completamente transformado em agente do capital?

3. Bolsonaro é bastante parecido com Hitler em vários aspectos ideológicos, embora se afaste em questões políticas (o nazi-fascismo tinha um caráter nacionalista, ao contrário do governo Bolsonaro, privatista). Mas o Brasil em 2022 não está na situação da Alemanha em 1932. Porém, mesmo se estivesse, mesmo que pudéssemos comparar a gravidade da situação da Alemanha, em 1932, com a do Brasil, em 2022, mesmo assim, como vimos, os comunistas honestos jamais pediriam votos para uma coligação da social-democracia (PT) com a burguesia (Alckmin). Mesmo o adversário sendo Hitler ou Mussolini. Aos marxistas revolucionários caberia a tarefa de apresentar uma alternativa socialista e revolucionária aos trabalhadores. E a razão para isso é que o marxismo consiste em afirmar sempre o partido do proletariado (e seu programa) como um guia para a nação. Nesse ponto é preciso ter a coragem de se postular como alternativa.

4. Não sei se Carlos Drummond de Andrade ficaria feliz por ser responsabilizado pela linha de total capitulação ao lulismo desses companheiros e ao trabalho de liquidação que eles aparentemente fazem dentro do PSOL (a corrente de que fazem parte parece ter desempenhado um papel importante na luta para privar o PSOL de uma candidatura própria). Acho que não! De qualquer modo, pode-se conceder que esses companheiros apoiem-se no pensamento intuitivo e vago dos artistas... Mas eles não podem falar em nome do marxismo revolucionário, ao menos não em nome do trotskismo.

Em suma, tanto o PSTU, como o PCB e/ou a UP têm o direito (na verdade, o dever) de postular suas candidaturas. Que os liquidacionistas entrem de uma vez por todas no PT, já que parecem ter optado por migrar para o colorido mundo reformista, e parem de exigir que os partidos revolucionários abandonem suas bandeiras e suas missões mais do que necessárias.

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Texto Bônus

Por Wagner Micéias Damasceno, PSTU Brasil

Sobre o voto útil

Sob o argumento de que é preciso eleger Lula no 1º turno, há uma grande pressão para que o eleitor abra mão de um voto ideológico no projeto político em que acredita, e conceda um voto utilitarista na chapa Lula-Alckmin.

Essa campanha não surgiu, como se diz, "do nada". Ela é o corolário da Frente Ampla organizada pelo PT desde 2020 em aliança com partidos da burguesia e com adesão de partidos de esquerda como o PSOL.

E, hoje, o apelo ao voto útil advém do discurso de que a única maneira de tirar Bolsonaro do poder é votando em Lula. Claro, oculta-se que, nestes quatro anos, a direção do PT emperrou as lutas pela derrubada de Bolsonaro nas ruas para que restasse o apelo às urnas.

Pareado a isso - e se aproveitando do imenso e justo repúdio popular contra Bolsonaro - Lula fez a maior coligação eleitoral da história do PT. A coligação Brasil da Esperança Fé Brasil reúne 09 partidos: PCdoB, PV, SOLIDARIEDADE, a Federação PSOL-REDE, PSB, AGIR, AVANTE e PROS.

O discurso petista é que Bolsonaro dividiu o Brasil e que, agora, é preciso unir o país para restaurar a paz social. Mas a verdade é que, antes mesmo de Bolsonaro subir ao poder, o país já estava dividido pelo antagonismo entre as classes sociais, pelo racismo, pelo machismo e pela LGBTIfobia. O que Bolsonaro fez foi tornar essa divisão mais explícita e ainda mais brutal.

Foi assim, por exemplo, durante a Ditadura Militar iniciada em 1964. A ditadura militar não dividiu o país, nem inaugurou o reino da exploração. Os militares - apoiados pela burguesia nacional e pelo imperialismo estadunidense - escancararam o antagonismo entre as classes sociais e o caráter predatório da burguesia e sua submissão ao imperialismo.

E aqui cabe um pouco de história. Por décadas, seguindo a política stalinista de "coexistência pacífica" com a burguesia e com o imperialismo, o maior partido de esquerda à época, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), defendia que era preciso se aliar e apoiar a burguesia nacional e governos burgueses com uma fachada popular para se cumprir uma etapa democrática rumo à uma revolução ordeira e pacífica até o socialismo. Essa política - por desmobilizar e deseducar o ativismo e os trabalhadores - facilitou o caminho para a extrema-direita subir ao poder no país através de um sangrento golpe militar.

O PT surgiu como alternativa a essa política de alianças com a burguesia. No entanto, na luta contra a ditadura militar e seu partido, o ARENA, a esmagadora maioria da esquerda coincidiu no apoio ao... Movimento Democrático Brasileiro (MDB)!

Isso mesmo, boa parte da esquerda decidiu apoiar o MDB e repudiou a criação de um partido que organizasse os trabalhadores de forma independente, como era a proposta inicial do PT. Diziam que isso dividiria a luta pela derrubada da ditadura e que a radicalização dos trabalhadores poderia provocar uma reação violenta do governo militar...

Debaixo de uma ditadura militar, o PT surgiu em 1980 assumindo que a sociedade brasileira capitalista já estava dividida. E contra as inúmeras acusações de que "dividia a luta contra a ditadura" e de que "dividia o movimento sindical", "que teria uma votação pífia" etc. os trabalhadores reunidos no PT respondiam dizendo que a luta contra a ditadura não passava pela adesão ao MDB e à unidade eleitoral com a burguesia, mas pela defesa política de um projeto próprio dos trabalhadores.

Hoje, em setembro de 2022, é preciso dizer que a esmagadora maioria da esquerda estaria em 1980 apoiando o MDB em oposição frontal ao PT. Mas não porque - como alguém poderia dizer - "os tempos são outros", mas porque o PT é outro.

Aliás, é porque o PT é outro que o banqueiro Henrique Meirelles, e o ex-ministro da ditadura militar, Delfim Neto, manifestaram apoio a Lula e ao PT. E é justamente porque o PT abandonou a independência da classe trabalhadora, escapou irremediavelmente ao controle dos trabalhadores, e fez alianças com a burguesia, que setores da classe média e muitos intelectuais hoje o apoiam.

O PT tornou-se seu contrário, um partido da ordem e de alianças com a burguesia e tenta nublar isso apelando para uma simbologia (imagética e sonora) dum PT e dum Lula dos anos de 1980 (que vai do jingle do "Lula lá..." às fartas imagens de um jovem Lula barbudo e sindicalista) etc. Como se entre 1980 e 2022 Lula seguisse essencialmente o mesmo.

Ao contrário da lógica formal que diz que "A" é sempre "A", que uma coisa é sempre essa mesma coisa, a dialética nos ensina que tudo e todos podem mudar e, às vezes, podem se transformar em seu contrário...

 

O Socialismo é uma necessidade

De tanto se adiar a luta pelo Socialismo no Brasil em nome da urgência, esqueceu-se quão urgente é o Socialismo para o Brasil, um país marcado por quase quatro séculos de escravidão e que nunca deixou de ser a colônia de alguém.

E falo isso porque os problemas mais imediatos dos trabalhadores e do povo pobre (como a fome e o desemprego) não poderão ser resolvidos em definitivo dentro do capitalismo e sem uma revolução. As mudanças estruturais que o país precisa não serão obtidas junto com a burguesia, mas contra a burguesia.

Bolsonaro impôs a fome para mais de 33 milhões de pessoas neste país. Mas quem conhece minimamente esse país, sabe que a fome só desapareceu nos relatórios de estatísticas e quando admitidos os critérios rebaixados de organismos como o Banco Mundial.

O arco de alianças construído pelo PT nestas eleições e a escolha para a vice presidência de Geraldo Alckmin, ex-presidente do PSDB, sinalizam para um projeto de governo burguês e alinhado à agenda neoliberal.

Ademais, ao pregar a aliança entre patrão e trabalhador, entre o pequeno agricultor e o agroempresário, Lula pede para a juventude e os trabalhadores que renunciem aos seus interesses de classe.

No plano discursivo, o PT pôs em campo uma espécie de versão eleitoreira do slogan neoliberal de Margaret Tatcher ("there is no alternative" - não há alternativa) para retirar do horizonte de parcelas do ativismo a possibilidade de uma alternativa socialista a Bolsonaro.

Mas não é verdade. Há sim alternativa, uma alternativa pelo Socialismo e pela construção de um caminho independente dos trabalhadores. E nestas eleições quem expressa essa alternativa é a Vera, candidata à presidência pelo PSTU.

Vera é socialista, negra e representante dos interesses da classe trabalhadora. E, por isso, tem sido invisibilizada das formas mais variadas possíveis. Vera não é chamada nos debates nas grandes emissoras e sua voz não é veiculada na rádio e nem na TV. E como sua campanha é sustentada por militantes e apoiadores e não conta com dinheiro da burguesia, esse bloqueio midiático reduz o alcance das ideias políticas que defende.

Essa hostilidade da grande mídia não é gratuita. A burguesia teme que palavras como "Socialismo" e "Revolução" sejam ouvidas pelas massas trabalhadoras, e por elas sejam debatidas e assimiladas. Por isso, a burguesia e a grande mídia preferem dar a voz a políticos de extrema-direita como Bolsonaro e fundamentalistas como Kelmons, do que conceder 1 minuto sequer em horário nobre para alguém como Vera e o PSTU.

Mas, sobre isso, não há de novo. Ao longo da história, os socialistas sempre foram alvos de calúnias, bloqueios e toda sorte de repressão. Normal nos temerem.

Neste domingo (02/10) eu darei meu voto naquilo em que acredito, numa candidatura contra Bolsonaro e que diz aos trabalhadores que eles devem se organizar e lutar para tomarem o poder. Darei meu voto nas candidaturas do PSTU, partido no qual milito há anos, para fortalecer uma alternativa socialista para o Brasil e para a América Latina. Isso pra mim é um voto verdadeiramente útil.

Como dissera Marx, "a exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões".

A luta pela revolução e pelo socialismo é a grande tarefa do nosso tempo. Se você concorda, te convido a dar um voto no Socialismo no 16 também.