Biografemas para não deslembrar
Tânia Regina de Oliveira Ramos
O apetite da imaginação adulta e o anseio da lembrança são alimentados pela sustância de aventuras vividas por seres de papel. Os velhos, os bichos pensantes, a sabedoria do burrinho: aquela leitura obrigatória se tornou um grande prazer, vivido e saboreado, que me lembrou de um tanto de mundo que existia além do que eu via. Cito o Sagarana porque ele me ensinou algo essencial: a empatia** Algumas (lembranças) perduram na memória mais que outras, "se essa rua, essa rua fosse minha... eu mandava, eu mandava ladrilhar. O que fica na memória além da melodia são também imagens do que eu formava ao escutar minha mãe cantando, e por mais que a música fale de solidão, a sensação maior da lembrança é de acolhimento, pelo brilho da rua refletido em um lindo túnel de árvores que leva até um bosque também iluminado, pelo anjo que mora lá.** Hoje me recordo dessa época em meio a risos e nostalgia: a leitura de um livro nunca é igual, até porque nós também não somos. Reli Querido John no ano passado, no início da pandemia, e o que é mais encantador é a forma como não sinto as mesmas sensações da minha adolescência, mas consigo me lembrar exatamente como é sentir cada uma delas. ** Já é tempo de haver alguma tecnologia que manipule os borrões da minha mente e os transforme em palavras.Essa tecnologia sou eu. Mas não dou conta.. Não dou conta... Ainda mais com memória antiga, que não quer ficar, e cada dia mais imprecisa, mais longe de mim, mais perto de repousar profunda, naquele lugar onde vivem os segredos de quem morreu sem revelar.E é por isso que eu invento de novo, que é por medo de perder de vez e não sobrar nem o cheiro dessa imagem, minha avó lendo uma Bíblia ilustrada na beirada da cama **. Alguns anos depois resolvi que queria ler Orgulho e Preconceito, dessa vez pra valer! E não é que consegui? Mais do que isso, simplesmente me encantou a obra. Tornei-me fã. Amo este romance de Jane Austen que me fez rir, ficar apreensiva, e me fez adorar esse estilo de linguagem antiquada, mas irônica e bem humorada, e adorar essa personagem tão forte, desconstruída e inspiradora que é Elizabeth ** . A iniciação no mundo dos clássicos foi para mim – assim como para a maior parte das pessoas, acredito – como pisar um terreno movediço. Eu tinha por volta de catorze anos de idade quando chegou pelo correio uma edição de Lolita, que fazia parte da Biblioteca Folha, como uma espécie de brinde para os assinantes. A proximidade da minha idade com a de Lolita, a época de transição entre infância e adolescência, as mudanças no corpo e a curiosidade típica dessa fase fizeram com que eu decidisse enfrentar aquela leitura mais adulta, bem diferente do que estava acostumada a ler até então** Sempre tive contato com livros de histórias, fábulas, mágica, charadas e outros, quando era criança, pois meu pai vendia livros. Mas nada me encantou tanto quanto a primeira leitura após sofrer incessantemente (esse era o meu sentimento na época) por um amor errado. "Para todos os amores errados" foi o livro de Clarissa que me prendeu durante muito tempo. O livro fez com que eu superasse essa fase da melhor maneira possível, entendendo muitas coisas que sozinha talvez eu não entenderia. Foi quando eu comecei a escrever poemas e poesias** Talvez eu tenha começado lendo Thalita Rebouças com Fala Sério, Mãe ou Meg Cabot com Princesa sob os refletores, mas conforme fui crescendo, fui achando meu próprio gosto, o qual se encontrava muito distante dos da minha irmã: distopias, fantasias, quadrinhos, ficção científica, poesia, os clássicos nacionais e internacionais, e vários outros... Não seria exagero dizer que eu e minha irmã nos encontramos para sentar uma ao lado da outra com nossos kindles e passar a tarde lendo** . Eu tinha ( na verdade, ainda tenho) uma amiga leitora. Desde pequena devorava livros, um atrás do outro. Ela era quase amedrontadora , listava os títulos e autores que lia, e os quais nunca ouvi falar. Os olhos dela brilhavam compartilhando comigo suas leituras. E se eu lesse também? Com esse questionamento rondando na minha cabeça, adormeci. De volta à escola, minha amiga leitora me encontrou no recreio dizendo que tem uma surpresa para mim. Estenda sua mão: toma, um livro. Um presente para ti, disse ela.** Sempre li muuuito. Quando era pequena, sempre pedia de aniversário, natal, qualquer data especial livros. Não tínhamos TV em casa e sou filha única, então a leitura sempre me acompanhou para todos os cantos. Às vezes meu pai reclamava que eu lia muito, como hoje a gente reclama com as crianças que não saem do celular. Já fui chamada atenção por ler na sala de aula também, quando estava no ensino médio! ** É difícil mensurar a importância da literatura na minha vida, pois ela sempre fez parte do meu dia e continua fazendo, através de diversos e-books no meu celular e do livro que sempre carrego na bolsa. Mas é inegável que esse ato afetou minha percepção de mundo e ajudou a formar meu senso crítico**. Um tema bastante interessante - e do qual tenho pouco a acrescentar, haja vista minha debilidade - é o da literatura denominada infanto-juvenil, conceito desprezado por Lajolo por compreender que a literatura é universal e que o leitor é livre para escolher o que, quando e como ler determinado texto..** Ah, como me encanta José Saramago! Advém dele meu gosto por questões “perturbadoras” da sociedade moderna. A escrita por fatos da realidade. Posso dizer que por causa dele, entrei para o curso de jornalismo. Queria escrever crônicas com o mesmo sarcasmo que ele apresentava em suas obras. ** Eu lembro desse momento como um grande aprendizado, não só pela obra, Memórias de um Sargento de Milícias, mas também como um momento em que eu superei uma dificuldade pessoal e hoje faço faculdade de Letras, o que me faz pensar que tudo até aqui foi grande preparo, degrau por degrau nós subimos ao longo da vida e assim devemos encarar os desafios, como aprendizados**. Puxei minha mãe, apontei e falei: “olha lá aquele livro com o leão na capa, mãe. Quando eu me aproximo da estante, eu vejo que não era um leão no livro como eu achara, era Jesus Cristo em uma imagem na capa. A bibliotecária retira um exemplar de O Rei Leão, fazendo deste o primeiro livro que eu li **. Lia em segredo, pois acreditava e acredito que eles os ETs – estão por todas as partes. Passados quase 40 anos exulto de alegria quando ouço a NASA declarar que extraterrestres existem. Quero correr para o abraço. Finalmente encontrei minha linhagem* *
Dedico esta linda narrativa aos bibliografemas de Cláudia, Patrícia, Jéssica Simas, Rosana, Thamara, Carolina, Maikielly, Natália, Vitor, Jessica Mota, Moara, Jóe, Elisane, Ana Paula, Luiz Artur, Jessica Mota, Alba. Em cada asterisco respiro e ouço as vozes de vocês. Encontrem-se. Reconheçam-se. Salvem para ser mais um bibliografema em suas vidas. De Cláudia emprestei o título.