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Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Para além dos clássicos! Ou nem tanto...

22.06.21

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Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca

Jorge Luis Borges

 

O que é Literatura e por que lê-la? Eis uma questão difícil de responder e que certamente atormenta muitos(as) alunos(as) dos cursos de letras mundo afora. José Eduardo Agualusa, escritor angolano, certa feita em uma entrevista aqui no Brasil, relatou uma viagem que fizera a bordo de uma embarcação pelo rio Amazonas. Questionado pelo entrevistador se daquela viagem extraíra algum caractere para a construção de personagem(ns) para uma de suas belas narrativas, foi categórico ao afirmar que não, pois não havia, dentre as pessoas que conhecera ou tivera contato, qualquer uma ruim demais para ser uma personagem literária forte, importante.

Visão interessante a do escritor, certamente não compartilhada por todos(as), inclusive por mim, mas que já demonstra o aspecto social encravado nas grandes obras literárias. Sim, a Grande literatura trata de aspectos reais. E mais: desvenda-nos aspectos "escondidos" que, a partir da sensibilidade de observação do(a) autor(a), não conseguimos vislumbrar imediatamente. Esses elementos "recônditos" de nosso cotidiano social são retrabalhados pelo(a) autor(a) à sua maneira e por mais diversos meios estéticos. Ou seja, um(a) artista não nasce grande; se torna grande. E, mesmo que o tempo em que viva o(a) despreze, a história o(a) reposicionará - cedo ou tarde - na prateleira em que merece.

Do que falamos, afinal? Que estória é essa de prateleira, de Grande e/ou pequeno? E por que diabos o(a) artista não nasce Grande? São questões que surgem dessas afirmações espontâneas e talvez corajosas. E não são questões menores. Longe disso! Por detrás desses questionamentos mascaram-se discussões sérias, profundas e que perpassam parte significativa da crítica contemporânea: o cânone.

Antes, porém, de entramos nesta discussão, citemos uma história, que, não tivesse sido relatada pelo próprio artífice, soaria como anedota ou galhofa. Em meados da década de 1940 o então novato escritor João Guimarães Rosa se inscreveu em um concurso literário com sua obra em prosa de estreia: "Sagarana". Neste concurso, seu livro chegou à final, concorrendo ao prêmio com a obra de Luís Jardim, intitulada "Maria Perigosa". Um dos jurados era o já aclamado escritor Graciliano Ramos (o narrador do fato dessa história), que, apesar de conhecer grande valor naquele extenso livro de contos daquele anônimo estreante mineiro (nos concursos literários não aparecem a autoria nos livros), votou em Luís Jardim, desempatando a disputa e concedendo o prêmio a este autor. Não conheço a obra, tampouco o escritor vencedor. Eu nunca me lembrei em ir buscar um exemplar para ler, não podendo então falar nada sobre a obra. No entanto, é insofismável a enorme relevância que Guimarães Rosa tem não somente para a literatura brasileira, mas também ocidental, à medida que Luís Jardim caíra no esquecimento. Guimarães tornou-se grande nesse sentido. Esse é apenas um exemplo. No entanto, no campo da arte, não são raros os casos de grandes artistas que custam a conquistar reconhecimento, tampouco são raros aqueles que não o alcançam em vida, como Vincent Willem van Gogh, para citar apenas um caso.

Mas deixemos de palavreado e voltemos ao que interessa, afinal estamos aqui para falar dos clássicos.

Harold Bloom, conceituado crítico literário estadunidense, em ao menos duas de suas principais obras ("O Cânone Ocidental" e "Como ler e porquê"), debruça-se sobre o tema. Na primeira, e mais importante no que concerne a esta discussão, classifica Shakespeare, aquele dramaturgo inglês que dispensa apresentações, como o centro do cânone universal, acrescentando a esta lista Dante Alighieri, um italiano mais pop que o Papa Francisco, como par da base piramidal do cânone ocidental.

Mas o que é cânone e por que, ao responder às questões anteriores ao parágrafo que se sucede, nada se fez que trazer mais dúvidas a esta discussão? A resposta a esta pergunta certamente limpará o caminho pedregoso, deixando-o mais agradável. O termo em si deriva do grego “kanón”, utilizado para designar uma vara que servia de referência como unidade de medida, mas a crítica literária não o importou dos clássicos, e sim do contexto cristão, para o qual é um conjunto de livros considerados de inspiração divina. Sim, a Bíblia é para a igreja católica um cânone.

E na ótica da Literatura? Bem, em nossa seara tratamo-nos como um conjunto de livros considerados referência para um determinado período, estilo ou cultura. "Romanceiros da Inconfidência", de Cecília Meireles, ou "Macunaíma", de Mário de Andrade, podem ser consideradas obras cânones da literatura brasileira. Em suma, seria uma espécie de lista ou catálogo que, em geral, reúne o que é considerado um modelo a seguir. É conhecido como um cânone literário, desta forma, todas as obras clássicas que fazem parte da alta cultura. Estas obras, quer devido às suas características formais, sua originalidade ou sua qualidade, conseguiram transcender tempos e fronteiras, resultando em universais e sempre válidas.

Os poemas de Homero - "Ilíada" e "Odisseia" - e a Bíblia são geralmente considerados os pilares do cânone literário ocidental. A partir destas obras forjou-se uma tradição que foi seguida por Demócrito, Aristóteles, Platão, Virgílio, Horácio, Avicena, Dante Alighieri, Giovanni Boccaccio, Nicolás Maquiavel, René Descartes, Miguel de Cervantes y Saavedra, Luís de Camões, Luis de Góngora, William Shakespeare, Voltaire, Johann Wolfgang von Goethe, Jean-Jacques Rousseau, Victor Hugo, Machado de Assis, dentre outros Grandes autores.

Porém, o próprio conceito de Grande pressupõe uma distinção a algo menor, menos valioso, de menor importância. Esta divisão pressupõe escolhas, que por certo pressupõe exclusões. Para se termos o Grande (bom ou belo) escolhas precisam ser feitas, decisões precisam ser tomadas e justificadas. Mas em que se baseiam estas escolhas? Parte dessas questões parecem terem sido respondidas acima: graças as "suas características formais, sua originalidade ou sua qualidade" essas obras são selecionadas e postas na tal prateleira de destaque da literatura que merece mais atenção. Todavia, ao que parece, a afirmação traz mais problemas que soluções.

Em bela introdução ao seu livro "Teoria da Literatura - uma Introdução", Terry Eagleton nos dá pistas importantes sobre esta questão: conclui que a literatura não seja apenas aquilo que desejamos chamar como tal, já que sua valoração altera com o passar dos tempos, à medida em que as sociedades mudam e, com elas, seus valores. “Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão evidentes e inabaláveis quanto o edifício do Empire State. Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais.” (EAGLETON, Terry. 1984, pg 24)

Eagleton nos mostra a volatilidade do conceito Literatura. Acertadamente nos comprova - neste e em outros estudos - que o Literário para uma época pode não o ser para outra. Essa alternância se deve à maneira como as sociedades se comportam e quais os valores sociais, políticos, religiosos... aportam. Se hoje vemos Homero como um "ficcionista" em boa medida, à época grega de Aristóteles não era esta a relação que o povo grego tinha com seus escritos. Pedras fundamentais do ideal grego civilizatório, "Ilíada" e "Odisseia" representavam para os gregos o que a Bíblia e o Corão representam hoje para cristãos e muçulmanos, respectivamente, apesar de ateus olharem para estes textos de maneira não muito distinta da que olham para os de Homero.

Mas engana-se quem acredita que esse problema sobre a categorização do conceito "texto literário" se expressa somente de forma diacrônica. Lembro-me que em minha graduação de Letras-Português pela UFSC fui à Biblioteca Central procurar a obra "Os Sertões", de Euclides da Cunha, exigida para uma cadeira de Literatura Brasileira. Este livro importante encontrava-se, contudo, na prateleira de História. Na hora pensei tratar-se de um equívoco do(a) bibliotecário(a) da Universidade. Contudo, bastaram-me algumas páginas lidas para compreender que havia ali um problema, que justificaria inclusive a localização daquele livro: seria Literatura aquela obra, ou de fato poderíamos considerá-la uma obra não ficcional, de história? Ou seria uma matéria jornalística, afinal o autor foi a Canudos para cobrir o massacre? Destas perguntas, outras surgiram, como: os textos de história não contém em si elementos ficcionais? Toda ficção é necessariamente obra literária? Neste terreno pantanoso, poderíamos então colocar "Os Sertões" como pedra fundamental do cânone literário brasileiro?

A resposta para esta pergunta nos daria uma ideia do que seria cânone e de como são construídos. Em suma, a formação de uma estante literária digna de apreço social é obra oriunda não somente de elementos estéticos ou fundacionais para uma determinada cultura (IMPORTANTES SIM), mas também políticos e sociais. Aliás, como se viu acima, mesmo os valores estéticos são determinados a partir de uma organização social portadora de uma determinada gama de valores em detrimento de outra. E mesmo nestes casos, surgem aí as pedras no caminho, que dificultam o trajeto. É como afirmei: todo adjetivo precisa de sua antítese para que exista. Não haveria o belo sem o feio, o bom sem o mau etc. Dessa dicotomia - que é maquinalmente estipulada pela sociedade e aquilo que julga digno de valor - nascem as escolhas que, em última instância, delimitarão o cânone.

Vivemos em sociedades cindidas, divididas em classes sociais, cujos valores são estipulados a partir dos centros políticos para suas periferias. Estas sociedades são majoritariamente caucasianas, homofóbicas, machistas e racistas. Embora abram forçadamente espaços para a existência de outras formas de expressão - e quando existem são rapidamente transformadas em mercadoria pela indústria cultural -, estas coabitam com o cânone os espaços menos nobres da casa. Quantas vezes nos perguntamos por que não nos caem em mãos obras de escritoras negras e muçulmanas da África subsaariana? Quantos escritores indígenas paraguaios estudamos em nossas escolas ou universidades? Por que julgamos de maior valor artístico os versos dos trovadores medievais quando comparados aos dos repentistas do sertão nordestino? Quais os parâmetros utilizados para valorizar mais "Iracema", de José de Alencar, a "Bom Crioulo", de Adolfo Caminha, no contexto da literatura brasileira? Onde estão as mulheres nas obras fundacionais de nossa cultura?

Estas questões são importantes na medida em que estimulam a reflexão. Mas será que dão conta da totalidade do problema? E como entrariam nesse debate os clássicos? Vimos acima que Homero e a Bíblia são considerados os pilares do cânone ocidental. Mas e outras obras também lidas aqui e que, em menor ou maior grau, exerceram e ainda exercem influência em nossas letras? Não cito nem a monumental obra "As Mil e uma Noites", para Bloom considerada também como parte integrante do nosso arcabouço cultural ocidental. Refiro-me, neste caso, a exemplos como "Bhagavad Gita", o "Corão", o épico "Gilgamesh", ou "Mulan", o poema épico chinês que, segundo Leonardo Arroyo (A cultura popular em Grande Sertão: Veredas. se. Rio de Janeiro: José Olímpio. Brasília: INL, 1984), viu sua heroína ser redesenhada na figura de Diadorim, personagem mais forte de Guimarães Rosa? Ítalo Calvino talvez nos ajude.

Em seu já "clássico" "Porque ler os clássicos" discute essas questões, afirmando ser o clássico aquela obra que não se esgota na medida em que não perde sua atualidade. Obras que, além de fundamentarem a formação espiritual de um povo, vão além, tornando-se universais justamente por partilharem valores e sentimentos que não são exclusivos de um determinado tempo ou de uma sociedade, mas sim do ser humano. Essas obras são atemporais e, portanto, soam sempre como atuais. Neste ponto, a meu ver, dialoga - em alguma medida - com Harold Bloom.

Mas avancemos! A ideia aqui é também relatar experiências e concepções a partir da experiência pura e simples do ato da leitura desse tipo de texto (o literário - estipulado pela sociedade, pelo cânone, que contempla os clássicos formadores das literaturas e que são sempre atuais), sendo realmente aberto e amplo o alcance do seu conceito.

Pablo Picasso dizia ser a arte a mentira que nos permite conhecer a verdade; Liev Bronstein, o grande revolucionário russo, viu na arte um martelo que modela a realidade; para o bolchevique, a arte não devia espelhar o mundo a sua volta, mas recriá-lo a partir de suas leis internas, de seu movimento autônomo e intimamente (inter)ligado ao mundo a sua volta. Johann Gottfried Herder, intelectual do romantismo alemão, em 1769 cunhou o conceito Zeitgeist, que, em suma, é o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo. Ou, como se costuma dizer, o espírito de um tempo, aquilo que já se apresenta como tendência muitas vezes, mas que ainda não é predominante na sociedade.

Ou seja, tudo aquilo que vimos como normal, como natural, como imutável, é recriado pela literatura sob diversas perspectivas, a saber, a própria realidade, não somente questionada, mas ressignificada, reorganizada. Muitas vezes desvendada, despida de seus elementos internos, e nem sempre ainda dominantes, mas já relativamente presentes e bem ativos. Por meio da literatura – e pela arte de maneira geral – são o mundo e seus valores redescobertos, recriados, ressignificados. Desnudar a realidade imposta desse véu de alienação é também sua função e talvez uma de suas tarefas mais importantes.

Daí a perspicácia do(a) Artista (com A maiúsculo): não cabe a ele(a) simplesmente descrever o que vê, mas reorganizar, a partir do caos, a ordem. E desse processo de ressignificação da realidade, ela (a arte) nos humaniza. Ou, mais claramente, nos torna sujeitos melhores, justamente por nos tornar sujeitos diferentes, mais perspicazes, argutos, questionadores e, principalmente, mais sensíveis. Por nos mostrar a realidade sob uma ótica distinta daquela do status quo, nos "fotografar" a vulgaridade do mundo, nos torna mais sensíveis, faz-nos, como afirma Antonio Candido, mais dispostos para com o próximo.

A literatura, então, não corrompe e nem edifica, mas humaniza ao trazer livremente em si o que denominamos de bem e de mal. E humaniza por nos fazer vivenciar diferentes realidades e situações. Ela atua em nós como uma espécie de conhecimento porque resulta de um aprendizado, como se fosse uma espécie de instrução. Deriva daí o medo que autoritários têm da arte; dai o recorrente ataque a artistas protagonizados por radicais.

Em um belo artigo intitulado "Direitos Humanos e Literatura" (1989), o crítico brasileiro Antonio Candido qualifica a Literatura como um direito básico e fundamental de um ser humano, já que é por meio dele que a literatura se manifesta, tendo a capacidade, como já descrito, de humanizá-lo. Para o crítico - que qualifica acertadamente como literatura toda a narrativa que tem toque poético, ficcional ou dramático nos mais distintos níveis de uma sociedade, em todas as culturas, desde o folclore, a lenda, as anedotas e até as formas complexas de produção escrita das grandes civilizações -, a literatura tem um papel formador, na medida em que "Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas". (CANDIDO, 1989)

E sob esta perspectiva, como já explanou o crítico, literatura não seria apenas aquela canonizada, mas toda a forma de narrativa (popular ou erudita) capaz de harmonizar estes elementos. Tiramos daí outra lição: literatura não necessariamente precisa ser bela, ao menos não no sentido empregado por Aristóteles. Wisława Szymborska, poetisa polaca nobel de literatura, extrai das ruas sua poesia; João Cabral de Melo Neto extraiu da vida dura do sertanejo do nordeste brasileiro os seus versos "ásperos" e belos. Cora Coralina do sertão goiano cantou as lavadeiras, as doceiras, as escravas, as prostitutas. Nawal El Saadawi, escritora egípcia, em "A Face oculta de Eva", dá atenção particular à prática da mutilação feminina na sociedade onde nasceu, indo muito além do estereótipo ocidental (e canonizado) do Oriente. Sua "literatura" discute questões caras às mulheres para além do universo árabe, adentrando numa crítica contra o "fundamentalismo islâmico" protagonizado pelo Ocidente, afinal são os muçulmanos as primeiras vítimas deste fundamentalismo.

Quem melhor que Machado de Assis e Lima Barreto para te explicarem o Brasil? Como não compreender a sociedade portuguesa com Eça de Queirós? Poucos são capazes como Shakespeare ou Cervantes de nos mostrar nossas fraquezas e/ou qualidades. Como desprezar o caráter libertário dos versos de Cruz e Sousa? Como são belas as perturbações de Balzac, a complexidade psicológica dos personagens de Gogol e Dostoievsky. Como são maravilhosas as narrativas árabes de "As Mil e uma Noites" e quão perturbadoras as sensações ao redescobri-las em Nagib Mahfuz. O que falar da genialidade de John Milton, Mary Shelley, Cecília Meireles, Bertolt Brecht, José Saramago ou Lobo Antunes?  Sim, a literatura é complexa. E mais completa que os almanaques e livros de história.

Mas não somente! A literatura - e com ela a arte - está nas ruas também, nos versos de algumas composições de rap, do funk, do samba e dos versos dos poetas anônimos do sertão do Nordeste brasileiro; está nos grafites. A poesia está também na boca do povo simples, do operário, do bravateiro. Está na boemia; nas aspirações dos sonhadores que contestam e que lutam por mudanças. Está nos inconformados, naqueles que detestam as injustiças e que, por maneiras tortas ou retilíneas, lutam para acabar com elas. A poesia está à margem do cânone! Está em quase todos os lugares, menos nos lares dos conformados, dos autoritários, dos burocratas, dos corruptores e corruptos e naqueles insensíveis, incapazes que são de se tornarem mais dispostos para com o próximo. Basta sabermos tirá-la dos escombros em que se encontram e identificar o(s) mundo(s) que querem nos mostrar.

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FORA BOLSONARO E MOURÃO JÁ!: a impunidade a Pazuello talvez represente um passo adiante do projeto autoritário de Bolsonaro

10.06.21

exercito-1536x1024.jpgFoto: Tomaz Silva/Agência Brasil

 

A decisão do Alto Comando do Exército em não dar qualquer punição ao general Eduardo Pazuello por ter participado de um ato político de Bolsonaro é um passo a mais no projeto do presidente de alinhar o conjunto das Forças Armadas ao seu projeto genocida e autoritário.

No último dia 23, Pazuello subiu no palanque de Bolsonaro num verdadeiro comício em defesa de sua política contra as medidas de distanciamento social e de ameaças de intervenção e ditadura de “seu” Exército. O caso desatou mais uma crise na cúpula da Forças Armadas, que se viu diante de um dilema. Punir Pazuello poderia significar a queda do atual comandante Paulo Sérgio, já que provavelmente Bolsonaro iria anular a decisão e desmoralizar o oficial. Não fazer nada significaria enfraquecer ainda mais a cúpula das Forças Armadas e o controle sobre sua base, além de aprofundar o desgaste da imagem da instituição já bastante abalada com o desastre de Pazuello à frente do Ministério da Saúde.

Contrariando as expectativas de um meio termo como uma simples advertência, optou-se pela pizza pura e simples. O Comando do Exército finge que acredita na desculpa esfarrapada de Pazuello de que o ato político no qual discursou não foi um ato político, ignora seu próprio código disciplinar e tenta-se, assim, colocar panos quentes no caso.

 

Uma instituição a serviço das classes dominantes

A vergonhosa capitulação da cúpula militar a Bolsonaro desatou uma série de críticas de um amplo espectro político sobre uma possível “anarquia” nas fileiras das Forças Armadas, quebrando o que seriam dois de seus pilares: a rígida disciplina e a hierarquia. Até mesmo setores de esquerda reclamaram de um suposto abandono do caráter “profissional” dessa instituição que deveria ser de “Estado” e não de governo (pressupondo por isso uma pretensa imparcialidade).

A realidade é que as Forças Armadas nunca foram imparciais. Compõem uma instituição do Estado a serviço da manutenção da dominação da grande burguesia como classe dominante. Já deram o golpe militar de 1964, quando os interesses da burguesia se contrapuseram às liberdades democráticas. Hoje, vivem uma contradição: são pilares do Estado e da democracia burguesa, mas também são parte do governo Bolsonaro, com 3 mil cargos diretos e suas benesses. E Bolsonaro defende um regime autoritário e ditatorial.

Essas diferenças entre Bolsonaro, a burguesia e a cúpula militar existem hoje, mas amanhã eles podem voltar a defender as mesmas coisas que defenderam ontem: uma ditadura sangrenta contra os trabalhadores e os pobres e, inclusive, contra setores minoritários da própria burguesia. É bom não esquecermos que a alta cúpula dos militares, os oficiais de altas patentes, além de pertencer à burguesia, são um setor social com interesses próprios, e às vezes conflitantes com um ou outro setor burguês.


“Anarquia” ou alinhamento a Bolsonaro?

A própria candidatura de Bolsonaro foi gestada a partir de um setor das Forças Armadas. Uma vez no Planalto, entregou ministérios aos generais (o maior número desde a ditadura como gosta de se gabar), milhares de cargos a altos oficiais, e concedeu benesses à cúpula, como o recente furo do teto dos salários dos ministros militares que praticamente dobrou seus vencimentos. Sem falar nas obras públicas entregues diretamente ao Exército que somavam, até o ano passado, mais de R$ 1 bilhão.

Em troca, exigiu alinhamento total a seu projeto político, de confronto contra os governadores por conta das parcas medidas contra a pandemia adotadas nos estados, e principalmente a seu projeto de ditadura. Aí que se aprofunda o atrito, cujo ápice foi a inédita demissão de toda a cúpula militar no final de março passado (03/2021). São crises importantes que, porém, terminam na capitulação da alta cúpula ao bolsonarismo.

Bolsonaro tenta avançar em seu projeto de ditadura cooptando a cúpula das Forças Armadas através de dinheiro e cargos, ao mesmo tempo em que mantém os baixíssimos soldos e condições precárias da enorme base dos militares. Para esses, sua estratégia é cooptar ideologicamente, tanto a base do Exército quanto parte do contingente de 500 mil soldados das polícias militares pelo país. A contradição aí é que, para os praças, o governo mantém uma política de penúria, assédio permanente através dos altos oficiais e, na pandemia, exposição ao Covid.

Para os praças, Bolsonaro reserva os discursos, uma série de cursos olavistas de extrema-direita, e sua própria presença em eventos. Incide sobre esse setor para transformar toda essa base em bucha de canhão contra os trabalhadores e a população em geral, e fazer as suas próprias milícias armadas (por cima dos governadores) para seu futuro projeto de poder, ou no caso de perder as eleições de 2022.

O perigo, então, não é de uma "anarquia" nas fileiras das Forças Armadas e das PM’s, que poderiam fazer discursos políticos como bem entendessem. Não se cogitaria, por exemplo, deixar impune um oficial, ou soldado, que falasse “Fora Bolsonaro”. O perigo é o do alinhamento cada vez maior desse setor ao bolsonarismo e a seu projeto genocida e de ditadura.


É preciso uma política para as Forças Armadas

Assim como outras grandes instituições do Estado burguês, como o Judiciário, por exemplo, o Exército é composto por uma elite burocrática-burguesa com altos salários e privilégios materiais de todo tipo.

Seus quadros são selecionados não apenas, nem principalmente, por aptidões, mas fundamentalmente num processo de indicações e seleção onde a lealdade de grupo, e a defesa dos interesses de classe são os quesitos fundamentais.

Esse espírito de corpo é mantido na parte alta do Exército com prebendas de todo tipo (salários, carros, viagens, negócios etc.) e em baixo por uma hierarquia draconiana, punições brutais, nenhum direito político ou mesmo sindical.

A maioria dos oficiais de baixa patente (dos sargentos, cabos e soldados) é oriunda do mesmo povo e das mesmas classes sociais que eles são levados a reprimir todos os dias. Não existe uma barreira infranqueável entre esta massa sem direitos políticos ou democráticos mínimos e as organizações dos trabalhadores em geral.

Se de fato queremos deter a escalada bolsonarista nos quarteis, não é aos generais oficiais de altas patentes que devemos nos dirigir, mas ao seu setor mais baixo, mas próximo socialmente da classe trabalhadora. É contra seu embrutecimento permanente que devemos lutar.

Exigir que parem de reprimir as lutas dos trabalhadores, como ocorreu no dia 29 de maio no Recife. Exigir que se organizem contra o projeto golpista de Bolsonaro. Para isso, devem lutar por seus direitos democráticos de participação na política, de se organizar sindicalmente, de melhores condições de vida, etc. As instituições a que eles pertencem são inimigas da classe trabalhadora, tal como o poder judiciário, e sua cúpula de generais, como a dos juízes das altas cortes, querem atacar de todas as formas a classe trabalhadora. No entanto, assim como o funcionário da justiça, soldados, cabos, sargentos e suboficiais, não ganham nada com a destruição dos direitos dos trabalhadores ou com o capitalismo em geral. Nós já sabemos disso, eles também precisam saber.


Fora Bolsonaro e Mourão já!

A crise envolvendo Pazuello mostra que não é possível confiar na cúpula das Forças Armadas como defensora das liberdades democráticas, como vergonhosamente faz amplos setores de esquerda. Reforça ainda a necessidade de se tirar Bolsonaro e Mourão já, e não esperar 2022 deixando-o livre para ganhar o conjunto das Forças Armadas e a base das polícias militares para seu projeto de ditadura. E, por fim, que é necessário batalhar para disputar essa base, defendendo as justas reivindicações de melhores salários e condições de vida, contra o assédio de superiores e liberdade de sindicalização e expressão, asseguradas aos generais bolsonaristas, mas reprimidas aos praças.