Meu plano de trabalho, quando comecei a escrever essas notas era, de maneira simples, desenvolver algumas das principais ideias da Física Moderna e Contemporânea, trazendo para um público não especializado ideias-chave para a compreensão do mundo em que vivemos. O plano era construir uma breve evolução das ideias, mostrando a historicidade e os debates envolvidos. Mostrar a Ciência como uma atividade humana, um patrimônio coletivo da humanidade.
No entanto, esse plano teve que sofrer uma breve interrupção por causa dos ataques que a Ciência tem sofrido da parte de setores obscurantistas ligados à nova direita, cuja máxima expressão “teórica” é o embusteiro astrólogo Olavo de Carvalho. Entre outros disparates, esse senhor afirma que não há provas de que a Terra gira em torno do Sol, que a Relatividade de Einstein é uma mentira, que a Física Moderna não faz sentido, que cigarro faz bem, que combustível fóssil é “o cu da sua mãe”, entre outras reflexões profundas… A cereja do bolo é a sua defesa do terraplanismo, também endossada pelo novo presidente da Funarte.
Sim, tudo isso é desesperador. Por isso mesmo, ao contrário de tentar aqui explicar o óbvio, vou buscar fazer algo diferente. Vou fazer um esforço para tentar compreender os mecanismos que levam pessoas supostamente racionais a enlouquecerem na defesa apaixonada de ideias tão primárias, algumas das quais já foram superadas há milênios… ou seja, vou tentar falar de Psicologia, e não de Física.
É óbvio, em primeiro lugar, que se constata um enorme fracasso do sistema educacional. Dificuldade de compreensão de textos, de elaboração de um raciocínio lógico, de escuta… O sistema educacional (mesmo das melhores escolas particulares) deixa muito, muito mesmo, a desejar. O ensino de Física, salvo raras exceções, não leva minimamente à compreensão de fatos elementares da natureza. Quantas pessoas aprovadas com notas altíssimas no Enem são capazes de explicar as fases da Lua, as marés, as estações do ano? Quantas pessoas tem noção de como se mede o raio da Terra, a que distância está a Lua, como o Sol gera calor? São perguntas absurdas? Estão descoladas da realidade? Vamos a outras: como um ar condicionado ou uma geladeira produzem resfriamento? Como uma lâmpada emite luz? Por que o líquido sobe pelo canudinho? Por que um carro tem caixa de marchas? Como funciona a antena da TV/celular? Como funciona um relógio? Como “pesar” a Terra? E a Lua? E o Sol? E um átomo? Por que o céu é azul? Por que uma pipa voa? Como um avião voa? Por que o detergente funciona? Como explicar o arco-íris? Qual a idade do Universo, seu tamanho, sua temperatura, sua composição?
Tenho a triste impressão de que grande parte de meus leitores não discutiram nenhum desses assuntos em sua formação escolar. Talvez nem se lembrem de terem se perguntado sobre muitas dessas coisas. Esse é um grande efeito da educação formal que vivemos: calar a curiosidade. Espero também que minhas leitoras e leitores considerem que essas são questões interessantes e relevantes. E, pensando um pouco mais, se perguntem por que raios não estudaram isso na escola.
Não é um debate novo. A educação tem que partir do concreto, da realidade. Dialogar com os saberes prévios e expandi-los, dar autonomia, fazer diferença na vida dos estudantes, fazer sentido!
Embora todas essas questões estejam presentes nos manuais de formação pedagógicos, não estão. na prática, no dia-a-dia das escolas. Então, o primeiro elemento a se levar em conta é essa enorme falha do sistema escolar. As pessoas concluem sua educação formal com lacunas gigantescas. Grande parte daquilo a partir do qual o/a estudante é avaliado não faz sentido para ela/ele, nunca foi de fato compreendido e será prontamente esquecido na próxima esquina.
Assim, é verdade que o aluno não tem a menor ideia de porque a Terra gira em torno do Sol, por exemplo. Apenas ouviu isso e se acostumou com a ideia. O mesmo com a forma da Terra. Talvez ele tenha achado esquisito aquela coisa de que “para baixo” varia de lugar para lugar. Ache estranho que na China as pessoas vivam “de cabeça para baixo” e não “caiam”, mas também não se preocupa muito com isso. Deu pra passar nessa prova, tá bom. Como esse conteúdo nunca fez sentido para ele, apenas houve uma reprodução decorada (ou colada) na prova e pronto. Ou nem isso. Se fosse ensinada outra coisa completamente oposta, ele também aceitaria. Faria o mesmo sentido para ele. Ou seja, nenhum.
Imagine outro exemplo: todas e todos aprenderam como fazer uma divisão na escola. Possivelmente alguns já esqueceram, mas vamos supor que não. Você, que sabe dividir, por que esse método de divisão funciona? Sabe por que faz o que faz com as vírgulas? Tem alguma ideia da lógica por trás disso? Provavelmente não, correto? É exatamente disso que estou falando…
Assim, se em algum momento no futuro, essa pessoa que recebeu essa educação fragmentada e carente de significados para ela, for apresentada a uma “teoria” que, do ponto de vista científico, tem mais furos que uma peneira, esse ex-aluno não verá esses problemas porque, afinal, nunca viu sentido em nada que “aprendeu” na escola. Por isso, não adiantará retrucar essa pessoa apelando a argumentos que você acha óbvios, tipo, “mas e a gravidade?”. Você receberá uma resposta do tipo “a gravidade não existe”, sem hesitação. O sistema que essa pessoa desenvolveu, por mais absurdo que seja, faz sentido para ela, e ela rejeitará sumariamente qualquer argumentação baseada em um outro sistema que ela não entende e não aceita. O que ela defende faz sentido para ela, e isso lhe basta. Ela só quer ficar segura que não vai cair da Terra, não está preocupada com uma série de outras questões que invalidam completamente o seu sistema de ideias. Não adianta falar sobre quais são os protocolos para testar uma teoria (ou sua falsidade). Tudo que contrariar seu modo de pensar será falso. Tudo que o reforçar será, por outro lado, verdadeiro.
O indiscreto charme das teorias da conspiração
Além disso, é importante pesar dois outros elementos. Um é o efeito de “câmara de eco”. Essas pessoas vivem imersas em um ambiente (principalmente virtual), onde todos falam as mesmas coisas, e realimentam suas crenças mutuamente. Nesse ambiente, ela só tem acesso a um viés de informação, e quando defende as mesmas ideias da bolha em que está, é estimulada, compartilhada. A pessoa se sente prestigiada, inteligente, popular. Se fora daquele espaço ninguém lhe dá atenção, ali ela é importante, é uma do grupo.
O outro ponto é que como se tratam de ideias que vão contra o conhecimento amplamente disseminado, a pessoa ganha o bônus de se sentir mais esperta do que os outros, “de estar fora da matrix”, de não ser doutrinada/manipulada etc. A pessoa pensa, satisfeita: “eu não estava errada quando não entendia porque os chineses não caíam da Terra! Meu professor quis me enganar, mas eu já desconfiava!”. E aí, olha só, a pessoa também descobre que não precisa parar de fumar! Pelo contrário, ela descobriu que existe um grande complô contra o seu prazer, pois cigarros fazem bem! A pessoa se sente confortável, poderosa, muito sábia. Ela não é mais uma fracassada, é uma rebelde!
Assim, quem tenta mostrar outro ponto de vista é um doutrinado, ou pior, um doutrinador! Todos são inimigas da verdade: as universidades, a imprensa, os cientistas, os comunistas da NASA… Ela percebe disso. Ela se sente a encarnação de Neo, Trinity e Morpheus numa pessoa só! Assim, não existe possibilidade de discussão. Entenda, você é o agente Smith! Os únicos confiáveis são aqueles do seu pequeno grupo de iniciados que descobriram a verdade. Assim, no conforto dessa caverna quentinha, esta Zion particular que a pessoa construiu para si mesma, não há quem a tire. Os pressupostos dela são outros, o diálogo é impossível.
Os terraplanismos socialmente aceitos
Mas o problema vai muito além de um fenômeno de pequenos grupos. Esses processos de confusão são usados por grupos de interesse como forma de manipular as massas. Quem acredita que a Terra é plana, não terá problemas em acreditar que o PT roubou 8 TRILHÕES DE REAIS para financiar o comunismo internacional, por exemplo. Ou que não houve ditadura no Brasil, que a escravidão foi benéfica, que homossexualidade é uma doença, que a previdência pública está falida, que é preciso escolher entre empregos ou direitos, que “é muito difícil ser empresário”, que Lênin escreveu um decálogo ensinando a mentir para o povo, que os Beatles eram comunistas, que George Soros é comunista, que o PT é comunista, que cotas são racismo, que não existe feminicídio, nem cultura do estupro, que as universidades possuem laboratórios para produzir anfetaminas etc.… Steve Bannon usou e abusou das teorias de conspiração para manipular o eleitorado estadunidense na eleição de Trump. O mesmo procedimento foi usado na campanha do Brexit e na eleição de Bolsonaro. No entanto, é extremamente simplista atribuir às redes sociais, aos big data etc., a causa única ou principal desses processos.
Manipulação de informação, boatos, negação da Ciência etc., tudo isso sempre existiu. As religiões se construíram em cima da credulidade não raciocinada das pessoas. Do fato de que elas têm acesso a uma “revelação” imutável, que elas são um grupo de “escolhidos”, ao contrário dos outros, os “condenados”. Tudo aquilo que contraria a fé da pessoa é porque vem do diabo, o manipulador, o mentiroso. Deve ser combatido. Se a pessoa se vê pega em contradição, abraça a contradição. Diz que está do lado da Verdade e pronto. A mesma religiosidade que matou Giordano Bruno e encarcerou Galileu hoje insiste em banir o estudo da Evolução das escolas, impede a discussão de gênero, do Big Bang etc.
Além disso, há uma série de crenças pseudocientíficas que são amplamente aceitas e, no máximo, tidas como inofensivas, como astrologia, homeopatia, “cura quântica” etc. Foge ao escopo desse artigo, mas voltarei a elas em outro momento. A questão é que a astrologia é tão bem fundamentada quanto o terraplanismo, mas as pessoas não se chocam da mesma forma. Esse não-combate ao obscurantismo, às charlatanices de toda espécie, ajuda a pavimentar o caminho até onde chegamos.
As universidades também têm muita culpa nesse cartório. A ampla disseminação do nonsense pós-moderno, negando a existência de uma verdade objetiva e descrevendo tudo como apenas um discurso, causou um enorme mal. Sei que a intenção inicial não foi essa, mas agora, como dizer que negacionismo climático, movimentos anti-vacina, terraplanismo, etc não são “opiniões” perfeitamente aceitáveis? Afinal, “a Física é tão rigorosa quanto o vodu”, não é, Feyerabend? Como criticar absurdos como o Escola sem Partido e defender que o aluno precisa de um “Mestre Ignorante”, hein, Rancière?
Então, para encerrar por enquanto, o problema do negacionismo científico não é novo e está dentro de um contexto muito maior. Combatê-lo passa por diversas dimensões. Implica um debate político, psicológico, pedagógico, de comunicação. Uma luta contra as religiões e as pseudociências. Uma luta, enfim, contra o sistema que se utiliza de todas essas formas de alienação para se fortalecer, o capitalismo.
A questão continua a mesma: socialismo ou barbárie. Nessa luta, cabe também à classe trabalhadora defender a Ciência, colocando-a serviço da emancipação da humanidade, a serviço da construção de uma sociedade verdadeiramente livre, uma sociedade socialista. Apenas uma Revolução Socialista é capaz de romper com as cadeias da ignorância. Terrabolistas do mundo inteiro, uni-vos!
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Texto gentilmente cedido pelo companheiro RAPHAEL FURTADO e publicado em 19/12/2019. Para lê-lo na integra clique aqui.
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