Sobre a Liberdade
Jóe José Dias
Em 1944, em um artigo intitulado A república do silêncio, Sartre afirmou nunca terem os franceses sido tão livres quanto à época da ocupação alemã. De fato um "paradoxo" que somente a filosofia é capaz de produzir. Afinal, por que diabos era livre um povo que tinha seus direitos suprimidos e sua liberdade destruída pelo Reich alemão? Que liberdade era essa se os gestos mais triviais do cotidiano eram rigidamente controlados pelo nazismo em ascensão na Europa? Ora, porque para Sartre - dialogando diretamente com Bertolt Brecht - cada gesto era um compromisso. Assim, a resistência - como qualquer outra coisa - significava uma escolha, sendo portanto um exercício de liberdade. Isso significava não renunciar à construção de sua própria existência quando os invasores queriam moldá-la, reduzindo-a a objeto passivo e sem forma.
Uma das mulheres revolucionárias mais atuantes do século XX, Rosa Luxemburgo, utilizando-se de uma linguagem mais poética, afirmou que "quem não se movimenta não percebe as correntes que o aprisionam". De fato, à revolucionária alemã ficou o legado de várias frases sobre a liberdade, como a conhecidíssima "A liberdade é quase sempre, exclusivamente, a liberdade de quem pensa diferente de nós", aludindo obviamente à privatização e ao controle da informação e dos valores às elites, de maneira similar como - também poeticamente - exclamou Brecht, em seu poema Privatizado.
Sartre foi um existencialista. E para o existencialismo a existência precede a essência. Assim, para o filósofo francês e a corrente filosófica por ele encampada, não há algo anterior à existência que impeça um ser humano de tomar livremente as decisões que construirão o seu futuro. Isto dá ao humano a plena imputabilidade pelos seus atos. O que ele faz da sua existência é culpa ou mérito exclusivamente seu. O que ela é hoje resulta de decisões que tomou no passado, e o que será resultará das decisões que toma no presente.
A despeito do caráter estreito e pequeno-burguês de seu raciocínio ao afirmar que o indivíduo em um mundo controlado e dividido em classes é dono do seu destino, Sartre foi feliz ao notar o caráter de resistência que há no ato de conquistar a liberdade. Crer que todos os sujeitos têm direito à escolha neste mundo em que vivemos é desprezar as relações sociais históricas forjadas há séculos, que tanto privilégios têm gerado a uma meia dúzia de eleitos às custas da miséria social e espiritual de uma imensa maioria. É, em suma, abdicar-se da reflexão justa, partindo de um pressuposto de que todos partem de um mesmo lugar e que têm as mesmas condições. Sartre, neste ponto, é a negação encarnada do pensamento revolucionário de Rosa Luxemburgo.
De qualquer forma, o pensamento de Sartre continua vivo, inclusive se o abordamos a partir de um pressuposto classista. Na França da segunda guerra, ocupada pelo nazismo alemão, parte considerável da população (uma fatia bastante superior àquela que os próprios franceses gostam de admitir) foi complacente ou colaborou com o invasor, que tanto oprimiu e massacrou o povo enquanto aniquilava os direitos mais elementares conquistados a sangue e suor pelos trabalhadores franceses. Neste processo encontravam-se a burguesia, a pequena burguesia e setores médios da França arrastados política e ideologicamente por estes setores.
E não à toa. O velho Trotsky dizia que há em todo o pequeno-burguês uma partícula de Hitler. A França, como a Alemanha e o conjunto da Europa ocidental, passava por uma grave crise econômica que levara milhões de pessoas à miséria quase absoluta. A burguesia francesa convivia diariamente com a possibilidade de uma revolução que à expropriaria do poder*: precisava urgentemente derrotar a classe operária, restabelecer a ordem e acalmar os ânimos da pequena burguesia, raivosa e falida, mas não tinha forças para isso.
Sejamos honestos, o nazismo veio a calhar na França daquele período: não havia outra saída enquanto classe para burguesia e parte da pequena burguesia senão a de se juntarem placidamente às fileiras do nazismo: covardemente se curvaram a Hitler. De fato, não cabe aos dominadores o conceito de Liberdade explanado por Sartre, tampouco àqueles que gravitam o poder; ao oprimido cabe este exercício. E quem mais preparado a exercê-lo que o operário, que está no âmago da produção e encarna em si todas as contradições do sistema capitalista?
Antes de salvar a França das garras do fascismo, a burguesia preferiu salvar sua própria pele e arrastou consigo os setores diretamente a ela ligados. Suplantou, em detrimento de suas necessidades enquanto classe, as palavras de ordem da revolução que ela mesma dirigira (e que fora feita pela pequena burguesia), quase um século e meio antes: liberté, egalité, fraternité. Todas as instituições do estado burguês foram coniventes à invasão nazista, e não somente na França. Aos oprimidos coube a resistência, este ato de escolha Revolucionário e Libertário.
Hoje, com a crise do capitalismo avançando e abocanhando os direitos que os trabalhadores conquistaram e mantiveram durante décadas de duras lutas (praticamente isolados, diga-se de passagem) a muitos está colocada novamente esta problemática. A resistência enquanto instrumento de libertação e ato de Liberdade está na agenda de atividades da classe trabalhadora. Rebeliões se espalham em todo o mundo: Chile, Equador, Vietnã, Iraque, Hong Kong, Haiti, Palestina e Catalunha são apenas alguns dos exemplos.
O mundo arde (e não é isso uma metáfora) e o capitalismo falido não tem condições de resolver as contradições que ele próprio criou. Pelo contrário! Por incapacidade, as acentua. Hordas de desempregados e pobres morando nas ruas assolam a Europa e os Estados Unidos, enquanto banqueiros espoliam dos estados a riqueza produzida de forma coletiva. Assim como a destruição do planeta pela necessidade de acumulação de capital da burguesia... Eis alguns exemplos da barbárie iminente. E embora o desenvolvimento da luta de classes tenha seu desenvolvimento desigual no planeta, é um sofisma afirmar que os elementos que a desencadeiem não sejam combinados.
A história é prenhe de surpresas, e seu desenvolvimento, embora combinado, se dá de maneira desigual. Em 2013, por exemplo, em um momento diferente da luta de classes do continente, o Brasil foi vanguarda no processo de lutas que hoje se desencadeia de maneira mais radicalizada. Este processo, bastante discutido, culminou na eleição de Bolsonaro para a presidência da República do Brasil.
A partir de então muito se tem escrito. Os reformistas (PT, PSOL...), incapazes de fazer uma autocrítica, desvinculam-se covardemente deste processo, acusando os trabalhadores pela situação em que o país se encontra. Acusam a sociedade brasileira de assistir intencionalmente inerte ou de maneira complacente a retirada do resto de direitos que nos sobram. Esquivam-se de falar, contudo, que foi o fracasso do modelo reformista que culminou, como em outros momentos da história, com o ascenso da extrema-direita ao poder.
Porém, nem tudo são espinhos ou flores! A conjunta brasileira em si traz algo de positivo: desmascarou o caráter do Estado democrático de direito tão alardeado pelos galardões da burguesia e colocou em cheque o próprio conceito de democracia tão defendido por todos aqueles que historicamente suprimiram a liberdade de pensar e agir da maioria da população. E, a despeito daqueles que se jubilam em afirmar que se deu um ou dois passos atrás, esquivam-se de afirmar que a vitória do Messias é oriunda de um processo histórico que se repete (não como tragédia, mas como farsa) e de que ele mesmo, Bolsonaro, é filho desta democracia, deste estado laico repleto de cristãos que sempre oprimiu com a ponta da baioneta aqueles que historicamente luta(ra)m por liberdade e por direitos.
Em suma, com toda a sua arrogância que lhe é peculiar, e com toda a imbecilidade vulgar de seu raciocínio raso, o presidente do estado brasileiro nada mais é que a encarnação viva e escancarada de um mundo burguês que há décadas está em crise, e em todas as suas esferas: política, de valores, social..., na qual o Brasil, com sua elite colonial, não é apenas mais que uma reles amostra vulgar e torpe de um mosaico mais rico e diversificado e com proporções globais ainda mais ignóbeis e devastadoras. Que os valores democráticos burgueses - assim como as suas instituições - não servem à classe trabalhadora é insofismável. Acontece que, depois de toda a nossa experiência contemporânea, defendê-la ficou ainda mais complicado. É como dizia Lenin: "Um imbecil pode, por si só, levantar dez vezes mais problemas que dez sábios juntos não conseguiriam resolver". E que assim o seja!
Não há como prever (a curto prazo) o que acontecerá. Convulsões sociais poderão desalojar os usurpadores do poder, ou poderemos seguir para o cadafalso como humanidade. O que é certo, no entanto, tomando a frase de Sartre, é que somente poderão dizer no futuro que foram livres neste tempo os que agora estão se comprometendo e resistindo. Mas não somente contra este ou aquele governo, contra este ou aquele regime, tampouco somente neste ou naquele país; contra o capital a nível global, e com um programa de classe capaz de atender aos interesses da classe trabalhadora em seu conjunto. E que vivamos com a dignidade que somente os seres livres podem ostentar, pois são realmente livres aqueles que resistem!!
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* Na Grécia, por exemplo, a burguesia foi expropriada por meio de uma revolução vitoriosa no final da segunda guerra mundial. Contudo, sob ordem de Stalin, o partido comunista a recoloca no poder, restabelecendo o estado capitalista antes mesmo que as conquistas revolucionárias se acomodasse em um estado degenerado aos moldes soviéticos. Apenas mais um dos inúmeros golpes que o stalinismo - esta máquina de esmagar revoluções - aplicaria à classe trabalhadora mundial.
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