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Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

A Conjuntura política brasileira e a crise aguda do capitalismo

30.12.18

Giovanni Alves - Barbárie social e devir humano dos homens

 

Vivemos um período de crise acentuada do capital. E não nos referimos apenas ao capitalismo tupiniquim, mas na América Latina. No mundo inteiro, bem da verdade. Gigantescas mobilizações, radicalizações de protestos, repressão, insurreições, resistência dos povos, numerosas greves e o ressurgimento eleitoral da extrema direita em alguns países são apenas alguns reflexos desse processo. 2018 foi, sem dúvida, um ano bastante turbulento na política internacional. O que dizer do povo nicaraguense, que há meses luta contra a ditadura de Daniel Ortega e Sérgio Murillo; ou da marchas de imigrantes hondurenhos; ou do grande confronto entre Palestinos e o Estado sionista de Israel, na denominada “marcha de retorno”, que completou, em 2018, 70 anos. Tivemos ainda manifestações massivas de mulheres na Argentina, Irã, no Chile, Brasil, etc; greves enormes no Brasil, como a dos caminhoneiros, que parou o país por dias; as mobilizações radicalizadas dos “coletes amarelos”, na França, greves radicalizadas e cada vez mais numerosas na China, EUA e na Grécia, que inclusive ajudaram a desmascarar, neste último período, o governo do Syrisa. Eis alguns exemplos do que se vislumbrou no horizonte político neste ano.

 

O confronto cada vez mais latente entre revolução e contrarrevolução aberto a partir do novo ciclo descendente do capitalismo, iniciado na crise de 2007/2008, se dá graças à instabilidade política e a uma maior polarização da luta de classes. A instabilidade se manifesta no aumento da tensão e da quebra do equilíbrio da ordem capitalista, que culmina em crises internas dos próprios países centrais, como EUA, Alemanha e França, por exemplo. Já a polarização recai em enfrentamentos cada vez mais agudos entre revolução e contrarrevolução, criando crises nos partidos reformistas (e também tradicionais) e abrindo caminho para posições mais radicais, como a esquerda revolucionária e a extrema direita. Sob essa ótica é que devemos compreender esse rico mosaico.

 

Diante da queda tendencial da taxa de lucros, a burguesia necessita retomar (internacionalmente) o crescimento de seus lucros. Para isso age diretamente no “chão da fábrica”, impondo cada vez mais medidas abusivas aos trabalhadores: atraso de salários, diminuição dos salários, assédio para trabalhar horas a mais (entrando mais cedo e saindo mais tarde), aumento do ritmo de produção e até mesmo promessas idiotas de recompensas fúteis para os que atenderem estas imposições, chegando até a demissões e fechamento de plantas de fábricas. Todas essas medidas, além de acentuar as contradições já inerentes ao capitalismo, cria outras, tornando a vida dos trabalhadores um verdadeiro martírio.

 

Todavia, para que se apliquem todas essas medidas políticas, a classe dominante, a burguesia, utiliza-se do aparato repressor dos estados que ela controla, por meio dos governos por ela financiados. Sem esses estados para legitimar esses ataques seria-lhe impossível avançar nessas medidas, pois somente respaldado neles é que consegue, enquanto classe, avançar nos ataques. O Estado não é neutro. Longe disso! Mesmo o “pai” do liberalismo político, John Locke, explicou a criação do Estado pelos donos de propriedade privada (homens bons), com o objetivo de melhor protegê-la, e isso tudo em 1681.

 

Os estados modernos – como os conhecemos – foram forjados pela classe dominante para servir aos seus interesses (o tempo todo), principalmente em tempos de crise aguda do capital. Eles são utilizados para controlar as contradições entre as classes. Para tanto, a classe que os controla, como forma de subjugar as outras, utiliza-se de diversos mecanismos de coerção: dos mais sutis, como o da democracia burguesa, dando a falsa ideia de uma democracia exercida por meio do voto, até as mais autoritárias, quando estas estão desgastadas, como as ditaduras.

 

Não à toa a preferência que tem a burguesia em levar às eleições – como forma preferida – processos radicalizados de luta, como foi o caso do Egito, por exemplo, na chamada primavera árabe. Ou então todo o processo revolucionário grego, dentre outros. É que as eleições – que servem apenas para legitimar o poder exercido pela burguesia – dão a falsa ideia de que somos agentes de um pretenso estado de mudança de um estágio a outro.

 

E aí entramos em uma seara bastante em voga nos dias de hoje: a defesa da democracia, tratada aqui de maneira abstrata, rudimentar, ou, como diz Lenin, “pura”. Não foi incomum, aliás, foi bastante frequente, corriqueiro na verdade, a vulgarização deste conceito, aqui no Brasil, principalmente depois o impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef, tratado (também de maneira vulgar) como um golpe, discurso alavancado pelo próprio PT. Muitos saíram às ruas, nas redes sociais, em jornais de “esquerda” país a fora, e até no exterior, em defesa da democracia. Raros, contudo, foram aqueles que a discutiram de maneira sóbria, séria e consistente.

 

Lenin, em seu livro “O Renegado Kautsky”, no capítulo sobre as democracias operária e burguesa acusa não se poder falar de “democracia pura” enquanto vivermos em um mundo dividido por classes sociais. Segundo o autor: “‘democracia pura’ é não só uma frase de ignorante, que revela a incompreensão tanto da luta de classes como da essência do Estado, mas também uma frase triplamente vazia, pois na sociedade comunista a democracia, modificando-se e tornando-se um hábito, extinguir-se-á, mas nunca será democracia ‘pura’”.

 

Democracia pura” é, então, uma frase liberal bastante mentirosa. Um engodo que grande parte da esquerda – intencionalmente – utiliza para justificar suas políticas recuadas. Trata-se de um truísmo utilizado no intuito de eludir a essência burguesa de democracia, sinônimo de capitalista. Inclusive setores que se intitulam marxistas, e mesmo trotskistas, esquivam-se dos “ensinamentos” de Marx e Engels e de toda a experiência acumulada por anos de lutas do marxismo revolucionário e consagram a este termo um lugar especial em suas análises. Apropriam-se do marxismo aquilo que é caro aos liberais, como a superioridade não somente do capitalismo, mas da democracia forjada pela burguesia em relação à idade média, de maneira geral, para vociferar aos quatro ventos sua superioridade. No entanto, “rejeita, silencia e esbate no marxismo aquilo que é inaceitável para a burguesia (a violência revolucionária do proletariado contra a burguesia para a suprimir)”, conclui Lenin.

 

Vejamos o que dizem Engels e Marx, em citação direta de Lenin:

 

Não só o Estado antigo e feudal, mas também “o moderno Estado representativo é um instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital” (Engels, na sua obra sobre o Estado). “Ora, como o Estado é, de fato, apenas uma instituição transitória, da qual a gente se serve na luta, na revolução para reprimir pela força os adversários, é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda usa o Estado, usa-o não no interesse da liberdade, mas da repressão dos seus adversários, e logo que se pode falar de liberdade o Estado deixa de existir como tal” (Engels, na carta a Bebel de 28.III.1875). “O Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra e de modo nenhum menos na república democrática do que na monarquia” (Engels, no prefácio à Guerra Civil de Marx). O sufrágio universal é “o barômetro da maturidade da classe operária. Mais não pode ser nem será nunca, no Estado de hoje (Engels, na sua obra sobre o Estado. O senhor Kautsky mastiga da forma mais fastidiosa a primeira parte desta tese, aceitável para a burguesia. Mas o renegado Kautsky passa em silêncio a segunda, que sublinhamos e que não é aceitável para a burguesia!). “A Comuna devia ser não um corpo parlamentar, mas um corpo de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo... Em vez de decidir de três em três anos ou de seis em seis que membro da classe dominante havia de representar e reprimir (ver- und zertreten) o povo no Parlamento, o sufrágio universal devia servir ao povo constituído em Comunas como o voto individual serve a todos os outros patrões para escolherem operários, capatazes e contabilistas no seu negócio” (Marx, na obra sobre a Comuna de Paris, A Guerra Civil em França).

 

Em suma, há séculos que a burguesia se apropria do Estado para exercer sobre as classes a ela subjugadas seu ideal de mundo. E o faz, em todas as vezes, utilizando-se desses mecanismos pseudo-democráticos (é notável o fato de que a democracia burguesa, esta que conhecemos hoje, não tenha suas origens sob bases minimamente democráticas). E aí retornamos à mesma problemática: os limites da democracia burguesa. Não podemos nos esquecer que ela nos deu de presente um protofascista, eleito dentro das regras deste jogo. Defendê-la, é, em suma, defender também Bolsonaro. Alardeá-la como legítima é dar carta branca a Cunha, Temer, Renan Calheiros, Aécio Neves, dentre outros. E, para aqueles que se intitulam marxistas, a contradição se torna uma tragédia, não somente por ludibriar os trabalhadores, mas por negar o marxismo e jogar na lata de lixo um dos seus mais básicos ensinamentos: a do caráter do estado e do papel da democracia burguesa.

 

Não podemos cobrir o sol com uma peneira; o regime democrático burguês está em crise, do mesmo jeito que está o capitalismo. Vivemos em uma época em que todos os valores burgueses estão sendo questionados pelas massas. E, no entanto, o que fazemos? Apagamos o anseio de lutas jogando um balde de mentiras na cara dos trabalhadores. Dizemos a eles que a democracia lhe é boa, embora sinta na pele o contrário. Afirmamos que vale à pena defendê-la, embora tenha sido utilizada para o gozo e para satisfazer as necessidades de uma única classe social. Afirmamos o tempo todo que o problema da corrupção é inato ao ser humano e não fruto de um sistema econômico que depende da corrupção para a sua sobrevivência. Ilusões, ilusões, ilusões. O Estado é burguês e é utilizado pelos capitalistas para retomarem o crescimento da taxa de lucros. É importante reafirmar que esta necessidade de retomada das taxas da burguesia é uma necessidade global, do capitalismo, pois derivam daí todos estes planos de austeridade impostos para a classe trabalhadora no mundo, de forma desigual, porém altamente combinada!

 

No Brasil, desde 2007/2008 já se sentia os efeitos das manifestações da crise mundial, embora o Estado brasileiro, à época governado pelo PT, desmentisse o assunto, disseminando a ideia de que não passava de uma simples “marolinha”. Não tardou muito para que a afirmação de Lula fosse desmentida, mostrando-se correto o prognóstico já por nós levantado. Tanto que, de lá para cá, a crise só fez aumentar. É que, no fundo, ressoa nas palavras destes “sábios embusteiros”, a velha crítica de Trotsky (Imperialismo e crise da economia mundial, p.35): “Economistas burgueses e reformistas, que têm um interesse ideológico em embelezar a situação difícil do capitalismo, dizem: em si e por si a atual crise não prova nada; pelo contrario, é um fenômeno normal. Assim como Trotsky, não concordamos com isso!

 

Há mais de 10 anos, hoje, no Brasil, o descontentamento dos trabalhadores se agudiza. Amargamos, de acordo com o IBGE (agosto deste ano), com 27,6 milhões de desempregados. O PT (juntamente com MDB de Temer) não governou para os trabalhadores, pelo contrário, governou para o capital, para a burguesia. A classe trabalhadora não saiu na defesa de massas do governo Dilma. A maioria dos trabalhadores aceitou a instrumentalização parlamentar do impeachment  (e ele existe exatamente para isso!), os trabalhadores não saíram às ruas contra a prisão de Lula (e o PT nem queria isso!). Diante deste cenário de crise que se arrasta agudizando desde 2007, os governos de conciliação de classes escolheram muito claramente manter o nefasto jogo de alianças junto aos seus chefes: a burguesia e suas frações de classe.

 

Criou um conjunto de narrativas – expressão bastante utilizada hoje em dia nos meios político e sindical – que não se sustentam na realidade histórica mais imediata: o tempo presente. Parte de seus dirigentes inventaram a narrativa do golpe. Diante deste suposto golpe era necessário combater os golpistas, mobilizando, para tanto, sua gama de intelectuais para o desenvolvimento desta narrativa através de palestras, cursos, etc. Mas o que vimos foi exatamente o contrário. Mal foi dado o suposto golpe e a cúpula do partido (PT) já estava lá deliberando (internamente) as alianças com os golpistas para as eleições municipais! Calma, não acabou ainda… Muitos quadros importantes do PT não “gostaram” dessa narrativa do golpe, como foi o caso do candidato às últimas eleições pelo partido, Fernando Haddad. Neste caso, Haddad, continuou discordando do golpe (ou do conceito), vindo a demonstrar seu ponto de vista abraçando os supostos golpistas com palavras decorosas de dar orgulho em muita gente (talvez a família de Renan Calheiros seja emblemática). As construções destas narrativas são artificiais. Marx e Engels desenvolveram um conceito preciso para isso: Ideologia.

 

Mas não pararam por ai. Outra narrativa construída é a do fascismo. Esta veio somar com a do golpe. Estaria acontecendo a ascensão do fascismo no Brasil e seria necessário apoiar o PT para que se combatesse este grande mal. De acordo com a narrativa (Ideologia), seria preciso votar no PT para se combater o fascismo no Brasil. Francamente! Mas o que seria fascismo? Bem, segundo a simples concepção filosófica do termo, nada mais é que um movimento político e filosófico ou regime (como o estabelecido por Benito Mussolini na Itália, em 1922), que faz prevalecer os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais e que é representado por um governo autocrático, centralizado na figura de um ditador.

 

Mas podemos avançar um pouco mais neste conceito para que possamos compreendê-lo melhor, de maneira mais rica, visando a compreender não somente o seu caráter, mas sua função. No que concerne àquele (ao caráter), vale lembrar que, dentre tantas coisas, o fascismo tem seu exército próprio, seus interesses e sua própria lógica de poder. É, sem dúvida, o jogador reserva da burguesia, utilizado somente em momentos muito específicos da luta de classes. Na Itália, Polônia ou Alemanha, por exemplo, teve ele que entrar em antagonismo violento não somente com a social-democracia de seu tempo, mas com todos os demais partidos da burguesia. Criou um regime próprio e entrou em consonância com a própria lógica do sistema de produção capitalista: a anarquia econômica se completou com a anarquia política.

 

Porém, como ascende o fascismo na Europa neste período? Segundo Trotsky, em “Revolução e contrarrevolução na Alemanha” (p.25): “o fascismo provém de duas condições: de um lado, de uma grave crise social; de outro lado, da fraqueza revolucionária do proletariado alemão. A fraqueza do proletariado, por sua vez, tem duas causas: primeiro o papel histórico particular da social democracia, que ainda é uma agência poderosa do capitalismo nas fileiras do proletariado; em seguida, a incapacidade centrista da direção do P.C. em unir os operários sob a bandeira da Revolução”.

 

Em suma, o ascenso de Hitler na Alemanha, em 1933, deu-se devido ao fracasso do comunismo e do reformismo como saídas políticas viáveis tanto para a classe trabalhadora, como para setores enraivecidos da classe média e da pequena-burguesia. o velho embate entre revolução e contrarrevolução. Segundo Trotsky, Hitler seria vencido somente mediante uma frente única que compreendesse os comunistas do P.C. stalinista com os sociais-democratas, reformistas naquele período. No entanto, graças ao sectarismo do partido comunista, que via a social-democracia daquele período como conciliadora do nazismo, negou-se a empreender tal tarefa.

 

Voltemos a Trotsky (p.294-295):

 

Admitamos que a social-democracia, sem intimidar-se perante os seus próprios operários, quisesse vender a Hitler a sua tolerância. Mas o fascismo não faz essa transação: não precisa da tolerância, mas da demolição da social-democracia. O governo de Hitler só pode realizar a sua tarefa se quebrar a resistência dos trabalhadores, desfazendo-se de todos os órgãos capazes de tal resistência. Eis em que consiste o papel histórico do fascismo.

Os stalinistas se limitam a um julgamento puramente psicológico ou, mais exatamente, moral, dos covardes e egoístas pequeno-burgueses que dirigem a social democracia. É lícito supor que esses traidores patenteados se separem da burguesia e a ela se contraponham? Método tão idealista pouco tem de comum com o marxismo, que não parte do que os homens pensam de si mesmos e do que desejam, mas, antes de tudo, das condições em que estão colocados e de que modos essas condições se transformarão.

A social-democracia sustenta o regime burguês, não por causa dos lucros dos magnatas do carvão, do aço e outros, mas por amor ao seu próprio lucro, o qual ele recebe, como partido através do seu numeroso e potente aparelho. Certamente, o fascimo nenhuma ameaça constitui para o regime burguês, cuja defesa está afeta à social-democracia. Mas o fascismo prejudica a força que a social-democracia exerce no regime burguês, bem como as rendas que ele recebe por seu desempenho. Se os stalinistas esquecem este lado da questão, não o perde de vista a social-democracia, que considera o fascismo como um perigo de morte, pairando não sobre a burguesia, mas justamente sobre ela, social-democracia.

Quando mais ou menos há três anos, acentuamos que o ponto de partida da próxima crise política, segundo todas as probabilidades, se formaria em torno da incompatibilidade entre a social-democracia e o fascismo; quando, baseados nesse fato, acusávamos a teoria do social-fascimo de ocultar, em vez de desvendar, o conflito próximo; quando chamávamos atenção para a possibilidade da social-democracia, com uma parte considerável de seu aparelho, ser arrastada, pela marcha dos acontecimentos, a uma luta contra o fascismo, proporcionando ao Partido Comunista um ponto de partida favorável à ofensiva ulterior – muitos camaradas nos acusavam – e havia entre eles não só funcionários alugados, mas até verdadeiros revolucionários – de “idealizar” a social-democracia. Só nos restava dar de ombros. É difícil discutir com gente cujo pensamento para precisamente no ponto em que a questão apenas começa para os marxistas.

 

Se vivêssemos, na atual conjuntura, o perigo do ascenso do fascismo imediato, a política correta (como já descrito) seria uma frente única com todas as correntes possíveis: reformistas, marxistas, liberais, etc, para derrotá-lo. No entanto, o que estamos presenciando é justamente o inverso: uma batalha parlamentar, protagonizada pelo PSL e outros partidos da direita tradicional de um lado, e PT, PSOL e PCdoB do outro, mas cuja própria CUT (Central Única dos Trabalhadores), braço sindical do PT, pareceu aderir ao “chamar Bolsonaro para o diálogo”, com a justificativa vil de que trabalhadores tenham votado em seu programa. Aceita inclusive negociar pautas da contrarreforma da previdência, desde que expurgue outras, das quais não fez ainda sequer menção clara.

 

Há quem acredite que estamos vivendo uma “onda conservadora” e que esta tenha fortalecido uma pretensa ascensão do fascismo, estereotipada – no caso brasileiro – na figura de Jair Messias Bolsonaro. Contudo, como vimos, tal ideia é contraditória. Primeiro porque o fascismo é um movimento de massas, que visa única e exclusivamente a destruir qualquer forma de organização da classe trabalhadora, instituindo um estado de exceção, fortemente nacionalista, de proteção à burguesia nacional, à economia e às fronteiras nacionais. Segundo, porque ele surge da necessidade de se derrotar um ascenso em um momento de crise aguda, onde outros mecanismos mais seguros, como a democracia, entram em grave crise. O fascismo é então fruto da disputa entre revolução e contrarrevolução e geralmente “entra em cena” em momentos de crise revolucionária, como uma última saída da burguesia para se manter no poder. Assim, se há uma onda conservadora, compreendida aqui por um conjunto de ideias favoráveis à manutenção de um estado de ordem, por que a necessidade de um estado fascista, sendo este regime muito arriscado?

 

Não afirmamos, contudo, que o governo Bolsonaro será tranquilo e que não haverá repressão. Pelo contrário! Cremos inclusive que não está descartada a possibilidade de um autogolpe, como ele mesmo tenha deixado transparecer, caso não consiga, pelas vias democráticas, aplicar as contrarreformas a que se propõe. Parte desse processo, inclusive, parece estar em andamento, como é o caso de ter eleito, nos cargos mais altos da república, inúmeros militares de alta patente das forças armadas. Não temos dúvida do caráter altamente repressor do seu governo e não temos dúvida alguma que o homem Bolsonaro traz consigo uma série de valores fascistas. Isso é claro.

 

Todavia, acusar-nos de escolher o candidato “A” em detrimento de “B” por tratar-se do “mal menor”, é grosseria. Insistimos nesse debate porque, para nós, está descartada a possibilidade muito em voga do mal menor, que cria uma falsa polarização de forças. O questionamento de quem é o mal menor, para os marxistas: Lula ou FHC, Dilma ou Collor, Bolsonaro ou Haddad ou Ciro Gomes, não faz o menor sentido. Isso porque o sistema que combatemos, o capitalismo, tem necessidade de todos estes elementos. Agora, se esses elementos entram em conflito ou em contradição, devemos aproveitar a ocasião para utilizarmos dele a favor da construção de uma alternativa revolucionária. Do mesmo modo que, se um destes elementos ameaça de morte a possibilidade de construção desta alternativa, ou mesmo o partido que se propõe a ela, devemos combatê-la de antemão.

 

Trotsky, no livro acima citado (p.126), já dizia:

 

Uma escala compreende sete notas. A pergunta: qual dessas notas é a “melhor”: dó, ré ou sol? é uma pergunta desprovida de sentido. O músico, porém deve saber quando e em que tecla bater. Compreenderam? Para uma compreensão limitada daremos ainda mais um exemplo: Se um inimigo me faz engolir diariamente pequenas porções de veneno, e se outro quiser, num beco, atirar contra mim, derrubarei primeiro o revólver das mãos deste segundo inimigo, porque isso me dará possibilidade de acabar com o primeiro. Isto, entretanto, não quer dizer que o veneno seja “mal menor” em comparação com o revólver.

 

Quando decidimos, contudo, em chamar voto no segundo turno em Fernando Haddad, não o fizemos por crermos no caráter classista do governo do PT e da frente popular. Tampouco por crermos na possibilidade do fascismo neste momento; assim, optamos por julgarmos na possibilidade franca de um autogolpe, alterando o regime e a classe política e instaurando um governo bonapartista no país, extremamente violento. Isso cercearia demais as liberdades de organização, mas não as extinguiriam plenamente, como o faz o fascismo. O governo Bolsonaro traz consequências imprevisíveis. Isso é indiscutível; subestimá-lo seria um erro. O que questionamos é o ascenso do fascismo, como tal, neste momento histórico, e sua associação ao governo de Jair Bolsonaro (não a sua figura), um governo completamente privatista, entreguista, de abertura das fronteiras nacionais para o capital internacional e da destruição de uma economia nacional calcada na indústria de manufaturas. Também discordamos da “onda conservadora”, incongruente com a tese de suportar o fascismo.

 

Esse argumento raso (o da onda conservadora) teve apenas um apelo eleitoral, e é uma pena que tenha tido muitos adeptos. Embora o marxismo afirme que o homem não faz a história como quer, mas sim segundo as condições que encontra, ao mesmo tempo não nega em nenhum momento a subjetividade, a vontade e a inteligência como fatores muitas vezes decisivos na história. O ponto de vista que considera o homem um mero joguete nas mãos de forças econômicas e sociais supra-humanas, que perseguem seus próprios fins, não tem nada em comum com o marxismo. A concepção de sociedade que despreza a inteligência é, ela própria, carente de inteligência. As ideias, quando absorvidas pelas massas em movimento, se transformam em força material e, portanto, podem mudar os rumos da história. Assim Marx e Engels formularam o pilar de sua concepção materialista da história em A Ideologia alemã.

 

Evidentemente existem grupos políticos que desejaram dar um golpe institucional do governo petista de Dilma, mas não o fizeram, pois o regime lhes garantiam instrumentos para o afastamento de quem governa o executivo. Também é evidente que o fascismo existe sim no Brasil, inclusive, graças ao governo de Vargas, que Lula tanto elogiou! A questão aqui é outra: as narrativas petistas trabalham com meias verdades para esconder a sua responsabilidade política diante da classe trabalhadora. O PT é o grande responsável pelos desdobramentos da crise e o seu combate no Brasil.

 

Foram anos de conciliação de classes. A frente-popular constituída pelo PT prometeu fazer o impossível: unir os trabalhadores à burguesia. Obviamente que isso enrijeceu a luta de classes, funcionando como uma espécie de colchão entre os distintos interesses de cada campo. O problema é que, como toda a frente-popular, não fez isso para defender os trabalhadores; o fez a mando da burguesia!

 

Não nos iludamos em achar que o PT algum dia fora revolucionário. Não, longe disso! O Partido dos Trabalhadores nasceu de um forte ascenso de lutas no país como possibilidade concreta, naquele período, de representar a classe trabalhadora. Tanto que sua direção era formada por membros da classe. Não foram os poucos que doaram parte de sua vida na construção do partido. Muitos surgiram depois, crendo ainda no papel progressivo do partido na política nacional. Em seu surgimento, o PT fora mais operário que o próprio PCB em seu auge aqui no país. Este se desfigurou muito rapidamente. Todavia, a Verdade é que, desde 1989, o PT fez uma escolha: a de partilhar para governar. Ou seja, se curvou à lógica da reação democrática da burguesia.

 

Hoje o PT é um partido burguês, com um programa elaborado para a burguesia. Seus dirigentes não são mais aqueles velhos e bons dirigentes trabalhadores, no sentido político que já se reivindicou (muitos são milionários, grandes empresários). Há muito tempo que a classe trabalhadora não se vê mais representada pelo PT, tanto que, a duras penas, conseguem sustentar a ideia de que são trabalhadores, e isso mesmo graças às suas fortalezas políticas, como CUT e MST. E, sobre este aspecto, coloca outra desgraça para a classe trabalhadora, pois este sindicalismo burocrático (pelego, na gíria), contribui com a patronal, deixando para a classe trabalhadora, além de ilusões parlamentaristas, uma descrença na representação sindical. O mesmo desdobramento ocorre com os partidos políticos e as representações políticas. Isso tudo muito bem sintetizado nestas expressões populares: “o sindicato não faz nada”, “os políticos são todos iguais; só pensam neles”.

 

Marx e Engels, na “Ideologia Alemã” (p.47), escreveram algo que é muito reproduzido, porém pouco aplicado:

 

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.

 

Antes de condenarmos a classe trabalhadora, é preciso compreendê-la. Há sim sindicatos sérios, da mesma maneira que há – pelo mundo – partidos revolucionários. No entanto, qual é a grande referência para as massas, ao menos atualmente? Aquilo tudo que é hegemônico, incluindo o PT, que se tornou mais um. Diante deste cenário, a classe trabalhadora, uma grande maioria, presa na política que o próprio PT ajudou a ser educada… Olham para a cena política e já não confiam mais nos que aí está. É ainda refém da reação democrática burguesa, presa ao individualismo e personalismo. Não acredita em suas próprias forças e acabam buscando saídas em pretensos “líderes políticos”. É um ciclo vicioso. E eis a tragédia.

 

Ou seja, a opção por este reacionário do Bolsonaro, este sanguessuga corrupto e inescrupuloso, que por 30 anos permaneceu no PP (antigo PPB), um dos partidos mais corruptos do país, mais envolvido em corrupção que o próprio PT, por exemplo, acabou sendo a alternativa, pois não havia outro “líder político”, aos olhos das massas, que representasse a mudança. O classismo foi deixado de lado, substituído por uma perspectiva individualista. Esse horizonte pequeno burguês, cujo limite político esbarra no mito da democracia, arrastou os trabalhadores para o covil. E, sob este aspecto, o PT, reformista que é, deve ser apontado como responsável maior de todo este movimento dos trabalhadores que apoiam uma proposta de governo irracional, que defende abertamente o machismo, a homofobia, a lgbtfobia, o racismo, o etnocentrismo, e por ai vai.

 

Os apoiadores de Bolsonaro (defensor de torturadores e que fez e faz apologia à ditadura militar) estão sendo chamados por muitos como fascistas (em grande medida pela narrativa petista sobre o fascismo). Isso é um erro grave! Por quê? Porque o apoio a um candidato que representa o que há de pior na política hegemônica da burguesia não significa que este eleitor faça parte de uma falange urbana, ou mesmo as organizações armadas contra o regime, contra a constitucionalidade. Pensar assim é ignorar plenamente os elementos que apresentamos anteriormente. Esta leitura simplista interessa ao PT e suas colaterais. A narrativa petista do “fascismo” ignora (propositalmente) até mesmo os marcos do regime que o nefasto Bolsonaro utilizou para chegar ao poder e representar a burguesia. Esta explicação não interessa à classe trabalhadora e às organizações revolucionárias! É preciso ganhar politicamente a classe trabalhadora. Condená-la, a justiça da burguesia já faz todos os dias.

 

Tampouco cabe o argumento de que votar em Bolsonaro representa um ataque às instituições democráticas. Para setores importantes da pequeno burguesia, bem como para outros tantos da classe média, a democracia (mesmo a burguesa em stricto sensu) não passa de uma “casca”. Se ela não está funcionando, arranja-se outra alternativa. Assim funciona a cabeça de parcela importante desses setores. Não há portanto, relação alguma com predileção política pelo fascismo, tampouco há relação de grau de instrução o voto dado. Há sim uma relação de classe: classe média e pequena burguesia, por não terem uma plataforma política e por almejarem o poder, acabam invariavelmente reproduzindo valores burgueses e a eles se ajustando. Sua perspectiva é individualista, conservadora. Para o pequeno burguês o mundo pode ser por ele controlado; assim como para boa parte da classe média. Contudo, se é verdade que são classes conservadoras, não é mentira que sejam vacilantes. Isto é, podem vacilar da direita para à esquerda a depender da conjuntura política e das alternativas que vislumbra no horizonte político próximo. Não é, portanto, correta, a afirmação de que invariavelmente vão para a extrema direita estes setores.

 

É verdade que o fascismo existe e ele deve ser combatido nas ruas, não nas urnas. Os grupos neofascistas não são hegemônicos, principalmente se observamos os votos recebidos por Bolsonaro. Esta maioria que se manifesta deste nefasto candidato, mais expressa o seu descontentamento com a frente popular, conciliadora, encabeçada pelo PT. Associando a isto, séculos de uma formação social conservadora; reacionária; escravocrata e entregue aos interesses do imperialismo, temos um descontentamento histórico da classe que trabalha para sobreviver e que está desesperada para encontrar uma saída para a crise que vive no tempo presente. Ora, Engels e Marx continuam acertivos: a saída para os seus problemas os trabalhadores as encontram dentro de uma perspectiva burguesa, afinal, as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes.

 

Respondam com honestidade intelectual: todos que conhecemos e que votam em Bolsonaro são realmente neofascistas? Nosso trabalho é organizar a classe contra a burguesia, os racistas, machistas, lgbtfóbicos, contra os neofascistas, contra os latifundiários e todos esses jamais serão destruídos com as eleições da burguesia. As demandas da classe trabalhadora jamais serão atendidas com as eleições. Nunca foram. É preciso ganhar politicamente a classe trabalhadora. Esta é a tarefa mais árdua daqueles que defendem a construção da luta revolucionária organizada. Uma imperiosidade se apresenta: como melhor conquistar a classe trabalhadora para a luta organizada? Diante de um governo da democracia da burguesia, cheia de limites estratosféricos (jamais confundir a democracia burguesa com a democracia operária) ou diante de um governo declaradamente antidemocrático e de apologia às ditaduras e as torturas? Aí está colocada parte das tarefas do nosso tempo sobre o que fazer diante da acentuada crise do capital.

 

Eis o panorama geral da conjuntura brasileira, abordando outros aspectos importantes para a análise. Contudo, a despeito da sucinta explicação da vitória de Bolsonaro, vejamos agora, para finalizarmos este debate, como se deu sua campanha eleitoral, baseada toda ela em mentiras e calúnias. Como ela foi construída.

 

Iniciemos então nossa reflexão partindo de um dos “argumentos” frequentemente utilizados pela militância bolsonarista nas redes sociais: “esse pessoal ‘de esquerda’ sempre com esses ‘textões’ querendo nos ludibriar”. Pois bem, quando ouvimos ou lemos argumentos deste tipo estamos nos deparando com alguém que constrói sua reflexão a partir de uma espécie de ressignificação da realidade, calcada em uma simplificação onde todas as contradições são resumidas em uma guerra infinita entre o bem o mal, geralmente atribuindo todos os problemas do mundo a uma única fonte de dados. É muito corrente nas doutrinas políticas ou religiosas este princípio e acaba funcionando como uma espécie de “introdução” que visa a popularizar uma determinada doutrina, escoimando o sujeito de longos debates filosóficos.

 

A esse princípio soma-se o da ampliação e desfiguração, que nada mais é que a divulgação seletiva de informações cujo intuito é valorizar aquelas favoráveis para determinado objetivo, em detrimento das desfavoráveis. É sempre muito utilizada em propagandas políticas, mas em tempos de internet, esse processo recebeu especial atenção, já que se amplificou essa seletividade por meio das redes sociais favorecidas por estas ferramentas: apoiadores de determinada causa consomem, em sua grande maioria, apenas informações que confirmem seu ponto de vista, tidos como neutros, justos e corretos. Tudo aquilo que contradiz a este conjunto ideológico é tido como falso, mentiroso, e todo este processo de construção passa necessariamente pela caricaturização de correntes políticas e ideológicas contrárias, que reforçam e valorizam crenças preestabelecidas.

 

Um outro princípio comum é o da orquestração, que pode ser entendido como a constância de temas. Assim, uma boa campanha orquestrada consegue manter um mesmo argumento de fundo. No caso da campanha de Jair Bolsonaro, o ódio a tudo o que remeta à esquerda – tratada de maneira rasa e abstrata, como tudo o mais –, associando-a sempre ao fracasso, ao diferente, ao maléfico, ao terrorismo. Aproveitaram-se da crise econômica, da crise de legitimidade do regime democrático burguês, da piora da qualidade de vida das pessoas em seu compto geral, do aumento do desemprego, da violência, do fracasso do projeto reformista, enfim, do caos provocado por décadas de governos entreguistas, para orquestrar uma campanha de desmoralização geral, que culminava sempre em um sentido: o problema do Brasil é o excesso de direitos, a corrupção e o comunismo.

 

Temos ainda a repetição, que é sempre massiva, massante, entediosa, tendenciosa, cansativa. Esse é um princípio de extrema importância, já que a partir dele é que se vão proliferar, exaustivamente, os outros princípios. Não se trata aqui de valorizá-lo mais que os demais, já que este processo de “coerção neurolinguista” não existiria sem esse conjunto de técnicas. Contundo, uma propaganda política, principalmente a falaciosa, necessita dessa repetição, pois somente a partir dela é que se torna possível a “internalização” desse conjunto de preceitos e a negação de outros.

 

Notemos que, especialmente nesta campanha, via redes sociais, essas propagandas têm se apropriado dessas técnicas como “nunca antes na história deste país”. Todavia, pelo menos dentre os estudiosos sérios, não se acredita que a propaganda por ela mesma tenha o poder de inculcar massivamente informação que seja. Ela, de fato, não tem esse poder. E isso, militantes da área que for sabem muito bem. Os que creem nisso, recaem no mais raso, puro e vulgar idealismo. A propaganda age, isso sim, sobre um substrato existente: a propaganda, a informação, a mentira… só se alastram se puderem se firmar minimamente na realidade. E aí temos o quinto e último princípio, o da transfusão. Toda a pessoa, sociedade, cidade, país etc traz consigo um conjunto de valores que são utilizados sim pela propaganda. A arte do propagandista consiste, então, em saber conciliar a conjuntura político-econômica com esses elementos para apoiar a construção de sua propaganda e ideologia. Em suma, todos os absurdos que ouvimos, lemos e/ou assistimos não são criados pela propaganda, mas por ela instrumentalizados; tudo isso já circula na sociedade. Todas essas contradições existem, em maior ou menor expressão.

 

Vejamos como isso funcionou na prática. Retornemos dois meses, em plena disputa eleitoral, para compreendermos como se alicerçou a campanha de Jair Messias Bolsonaro, toda ela praticamente realizada pelas redes sociais (em sua maioria o WhatsApp) e financiada, grande parte, por caixa 2 de empresas apoiadoras, que investiram milhões no financiamento deste sistema complexo de calúnias e mentiras. Por meio do princípio da simplificação criou-se memes, palavras de ordem, montagens fotográficas, falsificações (muitas vezes grosseiras), slogans que difundiam seus preconceitos. Aos evangélicos, por exemplo, blasfemou-se os adversários por propalarem ideologia de gênero, por defenderem o aborto e por desrespeitarem ícones sagrados; para os conservadores e homofóbicos, o “kit gay”, a mamadeira erótica, a sexualização precoce das crianças nas escolas; àqueles desesperados pela crise econômica, como trabalhadores desempregados e setores pequeno-burgueses à beira da falência, associaram a tragédia econômica pela qual passa o pais à nação vizinha, a Venezuela, imersa em uma grave e profunda crise econômica, supostamente vista como um modelo político-econômico, etc. Todo esse sistema ideológico, como não poderia deixar de ser, foi associado ao comunismo, do qual teve como principal representante político-partidário o PT.

 

Toda esse conjunto de informações falsas, selecionadas com vistas a desmoralizar os adversários (ampliação e desfiguração), foi orquestrada calçando-se em ideologias (falsas consciências) existentes que ganharam muito maior amplitude em decorrência da atual conjuntura econômica, de plena crise da burguesia (transfusão). Essas matérias foram repetidas à exaustão por um longo período, por meio de um complexo sistema de fake news capaz de neutralizar qualquer notícia negativa que pudesse atingir o candidato. Utilizou-se, inclusive, da decadência e crise de confiança da imprensa burguesa pra impor sua própria “narrativa”. E mesmo assim, à medida que sua campanha ia sendo lentamente denunciada e compreendida, sofreu um desgaste considerável no segundo turno, perdendo espaço para o candidato do PT, Fernando Haddad, que tirou quase 9 milhões de votos de diferença, apesar de toda a conjuntura política e de todo este complexo mecanismo de calúnias.

 

Ora, o capitalismo está em crise, uma crise profunda, que, ao que parece, está longe de ser solucionada. Reflexo do seu esgotamento enquanto modelo econômico, que ano após ano vem levando a humanidade à beira da barbárie total. Isso, obviamente, além de reforçar e calçar todas essas ideologias, que no fundo são oriundas da luta entre as classes: racismo, homofobia, xenofobia, xenofilia, dentre outras, traz à tona com mais força outros elementos místicos de nossa sociedade, como a astrologia e as diversas teorias da conspiração. Some-se a isso o irracionalismo de nossos tempos, como o terraplanismo e algumas correntes pós-modernas, que lançam à tona um idealismo vulgar e raso. Eis aí um complexo sistema ideológico que atua como um potente catalisador com vistas a alienar e a dividir os trabalhadores, que, se bem utilizado, pode fomentar uma bem-sucedida campanha de ódio em massa. Eis o que foi realizado: a campanha de Bolsonaro soube trabalhar com isso ao atribuir à toda grande imprensa o rótulo de mentirosa (princípio da ampliação e desfiguração) ao questionar a votação por urnas eletrônicas, a confiabilidade dos institutos de pesquisa, as decisões da justiça, etc.

 

Essa descrença nas instituições burguesas, bem como na sua grande mídia, invés de ser debatida sob um viés crítico, foi sob um viés reacionário. A vitória de um programa extrema direita, com laivos fascistas, se deu graças a condições históricas e políticas geradas a partir de uma crise conjuntural do capitalismo, aliada à falta de alternativa de um programa de esquerda aos olhos das massas capaz de aglutinar os setores descontentes. A vitória de Bolsonaro é um fenômeno mundial, que tem como pano de fundo a situação pré-revolucionária em que vivemos oriunda do desgaste geral do capitalismo a nível mundial, aliada a uma grave crise de direção revolucionária que seja capaz de unificar em um programa socialista trabalhadores e setores médios.

 

Fizemos a maior greve geral da história que poderia ter posto abaixo não somente a reforma trabalhista, como o próprio governo Temer. Uma greve que, se continuada e aliada a outras lutas que ocorriam no país à época, abririam uma conjuntura desfavorável ao crescimento massivo desse discurso neofascista de Jair Bolsonaro, e aumentaria ainda mais a crise de legitimidade do regime democrático burguês. No entanto, tendo em vista o processo eleitoral e o receio de um ascenso de massas por fora das organizações burocratizadas dos trabalhadores, PT, CUT e os corruptos da Força Sindical enterraram qualquer continuação desse movimento. A CSP-Conlutas defendeu sozinha uma nova greve geral, mas ela ainda é pequena e a traição falou mais alto.

 

A polarização insuflada pelo PT e seus satélites cristalizou essa faixa de eleitores da ultradireita. Não é difícil entender: o PT desacreditado, o vice da Dilma metido em corrupção e atacando com contrarreformas os pobres, a classe média e os trabalhadores, e qual a política central da “esquerda” neste processo? “Lula Livre!” A única opção antissistema que apareceu pra massa foi Bolsonaro. E esse processo, por sua vez, fortaleceu os núcleos duros do bolsonarismo que, minoritários, expandiram-se e “colocando a cabeça pra fora”. Uma das piores coisas que foi feita esses anos foi tachar de “coxinha”, alienado, golpista e tudo o mais todos esses setores indignados e desencantados com os políticos e o regime. Esse desprezo incutido aproximou-os das garras do lobo. Isso mesmo.

 

Porém, nem tudo são flores para Bolsonaro. Primeiro, porque sua campanha se calçou em fake news; e estas têm sempre um lastro curto. Mas não somente! Há enormes contradições que já se expressam em seu mandato, que ainda nem iniciou. Há já um desgaste – obviamente que ainda bastante minoritário – de setores que já o olham com desconfiança. A garrafa de oxigênio dele é pequena, e parece saber disso. Ainda mais que seu crescimento é fruto de um ascenso, não de um retraimento das lutas. E por não ser um nacionalista burguês, como seria um governo fascista, mas um ultraliberal, que continuará as políticas anteriores, de maneira mais agressiva, fragilizando ainda mais a economia brasileira por meio das privatizações e de ataques dos direitos, a tendência é que os conflitos se acirrem e que sua imagem sofra um grande desgaste em pouco tempo.

Reflexões (necessárias) sobre o sistema educacional brasileiro

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      Segundo Pierre Bordieu e Passeron, na obra A Reprodução1, a cultura escolar é a cultura da classe dominante. Em outros termos, o que pretende salientar o autor é que a escola legitima um discurso e uma cultura burguesas como únicos e incontestáveis, relegando, ou melhor, desprezando as outras formas culturais e de experiências que não se encaixam nesse modelo burguês. Em suma, mesmo nos limitando a universo limitado do capitalismo, onde a escola não seria mais que uma propaladora de ideias, ao invés de transformar a sociedade e permitir a ascensão social daqueles que não estão "bem localizados" na escala social, a escola ratifica e reproduz as desigualdades. E isso se revela a partir da escolha das disciplinas, passando pela própria linguagem simbólica (regras, comportamentos, ambientes) adotada na escola, que é produto da relação de forças entre grupos sociais2.

      Toda essa concepção, vislumbrada à luz dos escritos de Marx – mas não somente –, de onde extraíram parte de suas perspectivas teóricas, é formulada com base ao que os autores denominam de “violência simbólica”, que nada mais é que a imposição arbitrária de uma cultura dominante como única cultura válida, e, portanto, vista como cultura geral. Visão baseada a partir de uma sociedade dividida em classes sociais.

      De fato, já para os jovens Engels e Marx3, em seus primeiros escritos, a história de todas as sociedades até o presente era história das lutas de classes. Mas não somente! Ambos os autores, naquele que é considerado o documento político mais importante da classe trabalhadora, por fundamentar – mesmo que de maneira ainda "crua" – um programa cuja função principal foi a de formular em bases científicas uma “plataforma política” que atendesse às necessidades da classe trabalhadora, elencam:

A moderna sociedade burguesa, emergente do naufrágio da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Ela apenas colocou novas classes, novas condições de opressão, novas estruturas de luta no lugar das antigas.

A nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se, contudo, pelo fato de ter simplificado os antagonismos de classes. A sociedade toda cinde-se, mais e mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes diretamente confrontadas: burguesia e proletariado.4

 

Assim, a partir de seus estudos, Bourdieu salienta haver diferenças culturais no interior de uma sociedade de classes, possuindo, a burguesia, um determinado patrimônio cultural constituído de normas de falar, forma de conduta, de valores, etc. Já as classes trabalhadoras possuem outras características culturais que lhes têm permitido sua manutenção enquanto classes. Ao ignorar, contudo, estas diferenças socioculturais, a escola acaba por privilegiar em sua teoria e prática as manifestações e os valores culturais das classes dominantes. Com essa atitude, a escola favorece aquelas crianças e jovens que já dominam este aparato cultural. E para este sujeito a instituição escolar atua como uma extensão da sua prática social e até mesmo de sua família, enquanto os filhos das classes trabalhadoras precisam assimilar a concepção de mundo dominante5. Afinal, em um mundo controlado pela burguesia, imprime-se um mundo a sua imagem e semelhança, em todos os sentidos e em todas as esferas da sociedade, incluindo as universidades.

Para aqueles das classes trabalhadoras, para seus filhos, a escola acaba por representar uma ruptura aos seus valores, que são escoimados, desprezados6. Em outras palavras, cabe a estes sujeitos a dura tarefa de novos padrões ou modelos de cultura. Sob essa ótica, não é difícil de apreender que é muito mais fácil para os alunos filhos das classes dominantes alcançar o sucesso escolar que para aqueles que não só precisam aprender um novo jeito de pensar e agir, como a desaprender aquilo de que já sabiam. Ou seja, precisam se negar enquanto sujeito social – inclusive no que concerne a relegar seus hábitos e substituí-los por hábitos estranhos: começam a reproduzir todos os vícios e preconceitos das classes dominantes7 (muitas vezes preconceitos de classe, de gênero e de raça, que atuam como segregador social praticamente impossíveis de serem destruídos) – se quiserem se tornar um sujeito ativo nessa sociedade.

Como os filhos das classes superiores dispõem de um capital cultural herdado de suas famílias, é mais fácil para eles lograrem êxito no que diz respeito à assimilação e adaptação às exigências estipuladas pelo sistema escolar. Este capital cultural adquirido logo cedo por essas crianças “compõem um ambiente propício às aprendizagens e explicam o sucesso escolar dos filhos destas classes. Estas aquisições, constitutivas do habitus, produzirão seus efeitos ao longo do percurso escolar. Assim, não é surpreendente que os ‘herdeiros’, estudantes oriundos da burguesia, sejam super-representados nas universidades, em relação aos ‘bolsistas’, de origem social modesta”8.

Mas não somente. Em países subdesenvolvidos como o Brasil, elementos estruturais e socioculturais oriundos de países onde as relações capitalistas se dão sobre bases mais sólidas, mesclam-se com elementos primitivos de nossa sociedade, acentuando e amplificando assim as contradições inerentes ao próprio capitalismo. Essas características são também elas fomentadas pelo sistema escolar.9

Dessa forma, a escola – assim como as universidades, aliás, principalmente estas – age coercitivamente como impositora cultural — guinada sempre pelo grupo dominante —, cujo principal objetivo é impor a visão burguesa de mundo, e não outra. Daí o fracasso escolar da maioria das crianças filhas de operários e de membros de classes menos abastadas. Voltando a Bonnewitz:

Para que a escola possa realizar a produção social, isto é, garantir a dominação dos dominantes, ela deve ser dotada de um sistema de representação fundado na negação dessa função. Tal é o papel da ideologia, definida numa acepção marxista como um conjunto de representações deformadas das relações sociais produzido um grupo ou uma classe e realizando uma legitimação de suas práticas. A ideologia apoia os sujeitos e tende a erigir suas práticas sociais em práticas legítimas, diante dos outros grupos e/ou classes.10

 

À luz dessa perspectiva, não é sofisma alguma afirmar que a escola, longe de ser libertadora, é sim conservadora, pois atua em função da manutenção da ordem vigente e mantém a dominação dos dominantes sobre as classes populares.

Essa dominação, por outro lado, não é feita apenas pela escolha do currículo escolar — que requer dos alunos afastados do sistema um verdadeiro processo de desculturação, de negação do seu próprio modelo de enxergar o mundo11 —, mas também pelo sucateamento, no Brasil, do ensino público. Ou seja, não bastasse o fato de a escola se mostrar indiferente às diferenças de habitus, implementando uma “pedagogia da ausência de pedagogia”, como diria Paulo Freire, os alunos do ensino público brasileiro ainda sofrem com o descaso do Estado brasileiro para com a educação pública. Assim, alunos do ensino público, no Brasil, sofrem, concomitantemente, duas exclusões: a de ter um programa curricular extremamente alheio ao seu modo de ver e pensar o mundo e a pouquíssima estrutura que a escola pública brasileira oferece.

Ademais, há o fator crucial da “diferença da língua”, já que há enormes diferenças entre o falar burguês e a linguagem popular. Enquanto aquele conserva uma certa tendência à abstração e ao intelectualismo, esta é mais dinâmica e versátil, manifestando-se de maneira inversa à variante conhecida como culta e por uma tendência a majorar o caso particular. O que acaba por acarretar no desenvolvimento de argumentações mais simples, menos estruturadas, contrariando as exigências escolares. Citando Bonnewitz12: “A criação da cultura escolar aparece assim como um exemplo de violência simbólica”.

Todas essas questões se tornam evidentes e incontestáveis quando transplantadas para uma análise mais estrutural da educação brasileira, em especial a educação pública, ainda mais agravada pelo descaso do Estado13. Não que a educação brasileira não seja toda ela excludente, impondo uma linguagem e um modo de ver o mundo eminentemente burguês. Pelo contrário! Acontece que nesse processo os alunos da educação pública sofrem ainda mais em decorrência do descaso do Estado para com a educação brasileira. Esta ao invés de estratificar a sociedade, ou melhor, de reforçar a estratificação social vigente, deveria atuar como agente libertador e igualitário entre os diferentes membros sociais, não excluindo a matéria oficial, desde que importante para o crescimento intelectual do aluno, porém não relegando as outras formas culturais de ver e pensar o mundo, de forma a buscar equalizar o erudito e o popular. Eis a meta da educação: tornar o erudito popular e o popular erudito, à medida como o fez Vinícius de Moraes, usando elementos populares e eruditos em sua poesia musicada, muito ouvida e reconhecida. Só que não: no capitalismo, uma educação com esses princípios - mesmo nos países mais desenvolvidos - é impossível.

Tratando-se no ensino da língua portuguesa em estritu sensu essa também é a meta. Contudo, ao se afirmar isso é claro que não está se excluindo o ensino da gramática normativa nas salas de aula; o que se pretende é passar esses conhecimentos de outra maneira. Primeiramente, no que tange ao professor, este, a meu ver, tem de servir como uma espécie de elo entre o aluno e a matéria abordada em sala de aula, dando voz ao aluno e respeitando seu tempo e seu modo de ver e perceber o mundo a sua volta. Por outro lado, o assunto abordado não pode ser o mesmo que se dá hoje no ensino convencional, principalmente no ensino do português. Isso porque a gramática é uma espécie de convenção linguística, um acordo estipulado entre intelectuais e estudiosos, que decidiram convencionar o estudo da língua dessa maneira e não daquela outra. Ou seja, quando se convencionou a estrutura básica da gramática normativa do português, o fez se baseando em escritores já canonizados, como Luiz de Camões, Machado de Assis, Eça de Queiroz, dentre outros, excluindo-se completamente o português das ruas e desrespeitando, inclusive, as diferenças regionais.14

Todavia, como nosso local de inserção social é também ele determinante para a as escolhas de nossos discursos – discursos estes que muitas vezes se inscrevem em uma determinada época –, e embora fatores de ordem inconscientes determinem as singularidades de todo o sujeito e de todo o discurso, é impossível falar de uma pretensa autonomia tanto do autor, quanto do discurso. Como afirma Coracini15, “Não é possível, a rigor, falar de autonomia se considerarmos que ‘toda e qualquer relação consigo ou com os outros será inevitavelmente uma relação construída e regulada’ (CORACINI, 2001, p. 181), uma relação de poder que inclui certos pensamentos, ações e sentidos e exclui outros”. Em suma, toda forma de representação cultural tem ela cumplicidade com o poder e a dominação.

Nesse sentido, a reflexão crítica que pressupõe a autonomia e a emancipação e, com elas, toda uma galáxia de conceitos – liberdade, independência, integridade, verdade, sinceridade, escolha racional, dentre outros – constitui apenas mais uma ideologia que escamoteia relações de poder, sob o disfarce te(le)ológico da construção de uma sociedade democrática – e da construção de uma escola ideologicamente neutra, que defende o conhecimento objetivo, autêntico, desinteressado, verdadeiro. Finalmente a promessa da torre de marfim que se gostaria de ver concretizada, mas que permanece como uma ilusão que revela na forma de desejo recalcado e, como tal, sempre perseguido!16


Perpetuam-se, dessa forma, relações de poder pela exclusão, sob o manto de uma aparente inclusão de todos.

Não obstante, como se viu, a gramática foi elaborada à luz de escritores de diferentes épocas, o que quer dizer que o português ali contido nunca existiu enquanto língua viva e orgânica de fato, ainda mais que entre Brasil e Portugal, por exemplo, existem significativas diferenças de elaboração linguística nem sempre respeitadas pela gramática tradicional (normativa). Assim, como o português padronizado como língua oficial foi calcado tendo como base escritores canonizados, somente uma parcela pequena da população, já afeita às leituras de muitos deles, conseguem pleno êxito nas salas de aula, em se tratando de língua portuguesa. Os demais claudicam e se sentem desestimulados em aprenderem algo que não condiz com sua realidade, com o seu modo de ver o mundo, e acabam se sentindo incapazes de dominar aqueles códigos, achando que não dominam a própria língua da qual são falantes nativos.17

Não conseguem perceber, graças à escola, que a gramática tradicional praticamente despreza a língua falada. Fazendo uma simples metáfora – extraída de Bagno, em seu clássico Preconceito Linguístico – é como se a língua fosse um rio corrente, que tivesse em constante mudança, em constante movimento, e a gramática uma poça de água, estagnada e velha. Quando o rio enche demais e transborda, renova parcialmente a água daquela poça, trazendo novas águas e elementos. Assim é a linguagem, e por isso que uma vez ou outra a gramática sofre algumas pequenas alterações. Porém, estas só vêm a acontecer quando as alterações linguísticas extravasam os meios populares e chegam aos membros da classe dominante.

Cabe, dessa maneira, ao professor de língua portuguesa, assim que ciente dessas questões, buscar alternativas do ensino da língua que fujam dessas técnicas, sem, contudo, excluir o ensino do padrão, pois esse se faz importante no meio social burguês18. Porém, no que tange especificamente a esta questão, cabe também ao professor questionar o conteúdo estipulado, situá-lo e compreendê-lo dentro de determinadas margens político-ideológicas, para que não caia na armadilha de reproduzi-las meramente e de manter assim as relações fixas de poder intactas19.

E isso só é possível rompendo radicalmente com o modelo de ensino vigente e adotando outra forma, mais dialética e menos formal. Um modelo capaz de abordar toda a riqueza e toda cor da realidade, todos os seus elementos vivos e atuantes. A despeito do pensamento cognitivo, que começa com a diferenciação, com a fotografia instantânea, com estabelecimento de “termos-concepções”, nos quais os momentos separados do processo são estabelecidos, mas dos quais o processo como um todo escapa. Estes “termos-concepções”, criados pelo pensamento cognitivo são então transformados em grilhões. A dialética remove esses grilhões, revelando a relatividade dos conceitos imóveis, a transição de cada um.

Não afirmo, todavia, que a função do professor seja nula. Seria desqualificar seu papel de formador de opinião e a influência que exerce sobre os alunos, bem como relegá-lo. Não é isso. Todavia, para que ocorram de fato mudanças reais na educação brasileira, faz-se necessário um rompimento radical com este falido modelo, que segrega (em diferentes estágios) professores e alunos. Afinal de contas, como bem definiu Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. O que é impossível dentro do capitalismo.

Sei que é corrente na educação o pensamento da autonomia do(a) professor(a) em sala de aula e compartilho também da ideia de que assim deve ser. Não é incomum ouvirmos e lermos algo como: "mas o(a) professor(a) tem autonomia para gerir sua aula como ele bem quiser". Há aí, contudo, uma falácia enorme. Primeiro porque a educação é tratada, mesmo nos meios públicos, como mercadoria, e o professor, como um número a mais em uma empresa, que tem metas a cumprir e um cronograma para respeitar. Se não o fizer, corre sérios riscos de ser mais um na fila por emprego. Mas não somente! Acontece que, como todo cidadão contemporâneo, o(a) profissional da educação foi também educado sobre esse modelo falido. E mais do que ninguém é quem sofre maior pressão para reproduzi-lo. Pressão social, pressão econômica, pressões institucionais, dentre outras. E mesmo que greves venham ou vão, mesmo que em determinados períodos sua consciência avance no esclarecimento das enormes contradições imersas no seu métier, ela acaba refluindo. Não pela sua incapacidade de reflexão, mas pela ingloriosa tarefa que tem de enfrentar patrões, burocratas sindicais e todo um complexo sistema de coerção que o desistimulam e o fragmentam.

É claro que – mesmo neste modelo fracassado de educação, e mesmo sob uma perspectiva burguesa de ensino –, para se trabalhar com esse tipo de material anteriormente referendado (novas mídias, literatura...) seria necessário que as escolas públicas tivessem, no mínimo, uma estrutura adequada, com salas de informática, com bibliotecas razoavelmente estruturadas, etc.20, do mesmo jeito que profissionais bem preparados e remunerados, com tempo destinado de sua carga horária para se dedicarem à pesquisa e à elaboração de novas estratégias de ensino, por exemplo. O que, de fato, não faz parte da realidade brasileira. A burguesia nacional é intencionalmente incapaz de preparar a sociedade como um todo para atender a seus próprios interesses, as suas próprias necessidades enquanto classe autônoma. Como não é “dona de seu próprio nariz” e como não tem um projeto próprio de nação, marginaliza as classes populares, marginalizando inclusive – mesmo que parcialmente – a si própria. Covarde, prefere gerir os negócios da burguesia internacional, servindo de gestora de grandes corporações estrangeiras, invés de assumir para si o roubo da riqueza alheia. Entrega ela mesma a riqueza produzida pelos trabalhadores, invés de se apropriar ela própria dela.

Daí o duplo fracasso das instituições educacionais brasileiras: se por um lado se mostra incapaz – do ponto de vista do trabalhador – de se tornar uma ferramenta de libertação, à exemplo dos outros modelos de outras nações capitalistas, do outro, o fracasso também decorre por ser parte do projeto burguês brasileiro excluir as parcelas populares da própria educação burguesa. Mas os motivos desse segundo projeto, suas causas mais globais, seriam tema para outro ensaio. Do momento, fica-se a conclusão: não basta reformar o ensino; é preciso revolucioná-lo por inteiro, assim como toda a sociedade, pois somente revolucionando-a é que poderemos criar um ensino realmente pleno e libertador. Somente o socialismo pode libertar o trabalhador de seus grilhões e somente uma sociedade socialista, governada pelos trabalhadores, pode fazer acontecer um modelo educacional verdadeiramente livre, dialético e libertador. Verdadeiramente pleno.


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REFERÊNCIAS



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NOTAS

 

1 BOURDIEU, P; PASSERON, J. C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

 

2 Dessa forma, segundo Bourdieu, não existe justificativa alguma em se estudar a literatura canonizada e não se estudar as outras formas de linguagem e representação artísticas mais características das classes populares, ou menos consumidas pelos representantes da classe dominante, como a história em quadrinhos, os grafites, o hip-hop, etc. Ver: DIAS, Jóe José. Entre o popular e o erudito: o papel do professor de língua portuguesa nos ensinos fundamental e médio. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/artigos/759350. Acesso em: 25/11/2016.

 

3 Ver: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. 1848.

 

4 Idem.

 

5 Ver: FORTUNATO, Sarita Aparecida de Oliveira; STIVAL, Maria Cristina Elias Esper. Dominação e reprodução na escola: visão de Pierre Bordieu. Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2008/anais/pdf/676_924.pdf. Acesso em 25/11/2016.

 

6 Ver: DIAS, Jóe José. Op.cit.

 

7 Ao negar a si mesmo, nega sua origem, seus costumes e raízes, passando a vislumbrar ao mundo e a si próprio com o olhar do outro, sob a perspectiva do opressor. E agindo como tal, reproduz preconceitos de classe, de raça e de gênero que visam a destruir os laços de comunhão com os seus, que além de desagregá-lo, de separá-lo dos indivíduos de sua classe, faz com que reproduza em seu contexto social estes mesmos vícios que o atacam. Um bom exemplo é a dupla jornada imposta às mulheres trabalhadoras que, depois de uma longa jornada de trabalho – onde por sinal são menos remuneradas que seus colegas homens –, se veem socialmente obrigadas a assumirem para si as tarefas domésticas. E isso só é possível porque existe em nossa sociedade a ideologia machista, fomentada que é pelas instituições do estado burguês e pelos aparatos midiáticos majoritários, por ele financiados.

 

8 BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 80.

 

9Esse parágrafo é importante, na medida em que busca situar o texto na realidade brasileira. É que tanto Bordieu, quanto Bonnewitz discutem o sistema educacional francês. Assim, além de discutirmos o papel que a classe dominante (a burguesia) tem ao criar ideologicamente os sistemas educacionais pelo mundo, discutiremos algumas especificidades da educação brasileira, que acumula outros problemas e contradições àqueles já inerentes na educação burguesa. Cada classe cria sua cultura e, por conseguinte, sua arte. A história conheceu as culturas escravistas da Antiguidade clássica e do Oriente, a cultura feudal da Europa medieval e a cultura burguesa que hoje domina o mundo.

 

10 Idem, p. 116.

 

11 Ver: DIAS, Jóe José. Entre o popular e o erudito: o papel do professor de língua portuguesa nos ensinos fundamental e médio. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/artigos/759350. Acesso em: 25/11/2016.

 

12 BONEWITZ, Patrice. Op.cit., p. 120.

 

13 Ver: DIAS, Jóe José. Op.cit.

 

14 Idem.

 

15 CORACINI, Maria José Rodrigues Faria. A abordagem reflexiva na formação do professor de língua. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da (Org.) Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 312.

 

16 Idem, p. 313.

 

17 Idem. Ibidem.

 

18 Uma técnica interessante, e que vem dando certa em algumas escolas, é trabalhar com produção textual em sala de aula, estimulando a criatividade e a leitura. Um dos caminhos hoje interessantes é buscar trabalhar com textos acessíveis não somente no meio impresso, mas também em outras fontes, como mídias (literatura falada), por exemplo.

 

19 Não sejamos, contudo, inocentes em pensar que o professor tem autonomia completa de expor o conteúdo da maneira que achar mais conveniente. Mesmo aqueles mais conscientes de seu papel são forçados a seguir um cronograma (que extravasa questões meramente conteudísticas) que não foi pensado e elaborado para democratizar um ensino isonômico. Pelo contrário! Como foi visto, o papel da escola é o de segregar os alunos filhos das classes populares, incutindo-lhe uma educação alienígena ao seu modus vivendis, por fazê-los vislumbrar o mundo e a si mesmos com o olhar do opressor, sem direito a questionamentos. Sutilmente ou não (vejamos o caso recente da chamada “Lei da Mordaça”, no caso brasileiro), o papel da escola em um estado capitalista – como parte das instituições do estado burguês – é o de agente coercitivo e segregador, agindo não somente sobre os docentes, mas principalmente sobre os discentes. O ensino não precisa de uma reforma; precisa sim ser reformulado, reestruturado sobre outras bases. E isso é impossível na sociedade capitalista em que vivemos. Desprezar este fato seria responsabilizar os professores pela reprodução consciente da ideologia burguesa de maneira geral, bem como pelo fracasso do sistema de ensino brasileiro em particular.

 

20 No que se condiz à técnica não parece difícil, podendo ser uma alternativa interessante para se passar o conhecimento formal, sem excluir, ou sem desprezar as experiências dos alunos. Cada um leria um livro a seu gosto, elaborando em seguida um pequeno resumo escrito do livro e trocando-o com outros colegas, assim como também os livros. Como forma de estímulo à leitura, poder-se-ia tentar as mídias, que instigariam os alunos a buscar, quem sabe, outras fontes. Com a leitura continuada, os alunos, intrinsecamente, apreenderiam com mais facilidade as regras gramaticais, cabendo ao professor, apenas, a tarefa de indicá-los as diferenças entre a linguagem coloquial — viva, criativa e orgânica — e gramática tradicional.

Todavia, a técnica a ser usada é um mero detalhe nessa discussão, na medida em que o escopo deve recair na forma em como é explorado o conteúdo do ensino de língua portuguesa nas escolas brasileiras. Tratando-se a gramática como linguagem formal padrão, acessível aos poucos que têm acesso à cultura denominada erudita, cria-se uma espécie de guerra onde os que dominam o código linguístico se enquadram mais facilmente nos mecanismos classistas sociais. Quem não domina esse sistema de códigos tem uma oportunidade menor de sucesso, na medida em que não dialoga diretamente com a classe dominante.

Crescimento e crises no capitalismo

09.12.18

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Na apreciação de acontecimentos e séries de acontecimentos a partir da história atual, nunca teremos condições de retroceder até a última causa econômica. Mesmo nos dias de hoje, em que a imprensa especializada pertinente fornece material em abundância, ainda é impossível, inclusive na Inglaterra, acompanhar dia após dia o passo da indústria e do comércio no mercado mundial, assim como as mudanças que ocorrem nos métodos de produção, de tal maneira que se possa fazer, a todo momento, a síntese desses fatores sumamente intrincados e em constante mudança, até porque os principais deles geralmente operam por longo tempo ocultos antes de assomar repentina e violentamente à superfície. A visão panorâmica clara sobre a história econômica de determinado período nunca será simultânea, só podendo ser obtida a posteriori, após a compilação e a verificação do material. A estatística é, nesse ponto, recurso auxiliar necessário, mas sempre claudica atrás dos acontecimentos. Por isso, tendo em vista a história contemporânea em curso, seremos muitas vezes forçados a tratar como constante, ou seja, como dado e inalterável para todo o período, este que é o fator mais decisivo, a saber, a situação econômica que se encontra no início do período em questão; ou então seremos forçados a levar em consideração somente as modificações dessa situação oriundas dos próprios acontecimentos que se encontram abertamente diante de nós e que, por conseguinte, estão expostos à luz do dia. Por isso, nesse ponto, o método materialista com muita frequência terá de se restringir a derivar os conflitos políticos de embates de interesses das classes sociais e frações de classes resultantes do desenvolvimento econômico, as quais podem ser encontradas na realidade, e a provar que os partidos políticos individuais são a expressão política mais ou menos adequada dessas mesmas classes e frações de classes.

Friedrich Engels. Prefácio aa [As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850, de Karl Marx (1895)]. Boitempo .

 

O presente texto tem por mote discutir, a partir do ensaio de Leon Trotsky «La curva del desarrollo capitalista»1 (A curva do desenvolvimento capitalista, em português), os ciclos de crise dentro do capitalismo, bem como analisar o debate público entre ele e o economista menchevique Nicolai Kondratiev. Trata-se de uma reflexão inicial sobre o tema, bastante polêmico entre nós marxistas, mas não só: pretendemos aqui trazer à tona esta reflexão, um tanto esquecida nos meios políticos e até acadêmicos, sem, contudo, pretender esgotar o tema, bastante caro às nossas fileiras.

 

Sabemos da importância da tarefa, e não vamos nos abster. Iniciaremos então nossa explanação partindo de uma espécie de resumo das ideias de Trotsky sobre a questão, para em seguida contrapô-la às de Kondratiev. É sim uma tarefa hercúlea de se resolver hoje em dia, em seu pleno e amplo desenvolvimento, «o determinar daqueles impulsos subterrâneos que a economia transmite à política de hoje»2, muitos dos quais ocasionados à pressa em que buscamos respostas a questões complexas. Daí a necessidade de se recorrer à materialização de conceitos teóricos a partir da experiência cotidiana de atividades políticas, a tal práxis, como diriam Engels e Marx.

 

Mas a política segue seu fluxo, em um ritmo semelhante, sem mudanças significativas de qualidade. Assim, conceitos «abstratos» como «os interesses da burguesia», «o imperialismo», «o fascismo», dentre outros, cumprem muito bem suas tarefas, que são a de interpretar minimamente fatos políticos com relativa profundidade algumas vezes, mas os reduzindo a tipos familiares de análises, que são de inestimável importância para se compreender os paradigmas políticos de cada um deles.

 

Contudo, quando ocorre uma mudança mais séria na situação política e econômica, estas explicações mostram todos os seus limites, deixando-se desvendar todo o discurso vazio que carregam. Isso porque são discursos absolutistas, invariáveis, antidialéticos. Assim, no curso dessas mudanças que surgem, faz-se necessário debruçar com seriedade e paciência e estudar de maneira profunda e analítica, intuindo não somente determinar aspecto(s) qualitativo(s) desse processo, mas também a possibilidade de se medir quantitativamente os impulsos da economia sobre a política. Estes «impulsos» «representam a forma dialética das ‘tarefas’ que se originam a fundação dinâmica e são transmitidas para buscar solução à esfera da superestrutura»3.

 

Já as oscilações da conjuntura econômica (auge – depressão – crise) são provocadas por impulsos periódicos, ocasionando mudanças ora quantitativas, ora qualitativas, que alternam vez ou outra o campo político. Assim, o índice de desemprego, a relação favorável ou não da balança comercial no comércio exterior, a taxa de lucro da burguesia, a relação que o estado mantém com as classes subservientes, dentre outros, estão intrinsecamente ligados à conjuntura econômica e exercem uma influência monstruosa sobre a política.

 

Uma leitura feita somente a partir desses pressupostos econômicos é por si só satisfatória para compreender, por exemplo, a evolução dos partidos políticos na sociedade (assim como seus programas), a função das instituições estatais (o papel que cumprem para a manutenção da ordem vigente) e suas relações com os ciclos do desenvolvimento capitalista. Todavia, seria um sofisma afirmar que os ciclos – embora muito importantes – explicam todo o processo. Bem da verdade, tais ciclos, longe de serem fenômenos econômicos fundamentais para o desenvolvimento capitalista, não são mais que seus derivados. Dessa forma, se queremos de fato compreender a dinâmica das crises dentro do capitalismo, devemos também adentrar mais profundamente nos pontos de ruptura da conjuntura comercial e industrial, que influenciam diretamente outras questões importantes neste processo, como tendências políticas, legislação e todas as formas de ideologias, por exemplo.

 

Mas o capitalismo não se caracteriza somente pela periódica recorrência dos ciclos; de outra maneira, a história seria uma repetição completa e não um desenvolvimento dinâmico (dialético). Os ciclos comerciais e industriais assumem diferentes facetas em diferentes períodos. A diferença principal entre eles perpassa nas suas interrelações nos períodos de crise e de ascensão (auge) de cada ciclo. Em suma, se «o auge restaura com um excedente a destruição ou a austeridade do período precedente, então o desenvolvimento capitalista está em ascensão. Se a crise, que significa destruição, ou em todo caso contração das forças productivas, sobrepassa em intensidade o auge correspondente, então obtemos como resultado uma contração da economia»4. Finalmente, se tanto a crise quanto o auge se parelham no que concerne à magnitude, obtém-se um equilíbrio temporário da economia.

 

Dessa forma, não é difícil perceber o agrupamento em série destes ciclos mais ou menos homogêneos. Ou seja, quando temos um conjunto de cliclos com auges agudamente delineados e crises débeis e/ou de vida curta, podemos afirmar que estamos passando por épocas de «pleno» desenvolvimento capitalista. Neste ponto, a curva de desenvolvimento está ascendente. Porém, quando as relações entre auges e crises permanecem relativamente estáveis por anos ou décadas – a despeito de oscilações cíclicas ocasionais –, ou quando a curva se inverte, passando a ser composta por crises agudas em detrimento dos auges pequenos e esporádicos, podemos dizer que a curva se mantém estável ou se torna descendente. Neste caso, há a declinação das forças produtivas.

 

E é claro que essa interrelação entre os ciclos interfere diretamente nas formas (política, leis, filosofia, poesia...) como atuam os estados. E não é menos claro que uma transição de um estágio (ou época) a outro ocasiona necessariamente as maiores convulsões nas relações entre classes e entre estados.

 

Veja como se distancia esse raciocínio de uma concepção puramente mecanicista dos ciclos e, mais, da visão corrente de atual desintegração capitalista oriunda por meio destes ciclos. Infelizmente esta é a visão mais corrente em nossos meios, inclusive entre os marxistas (e marxianos acadêmicos), que legam erroneamente a Marx esses postulados. «Filisteus vulgares!», diriam uns. Se a substituição periódica de auges «normais» por crises «normais» encontrasse escopo em todas as esferas da vida social, então uma transição de toda uma época de ascenso a outra de declinação, ou vice-versa, engendraria os maiores distúrbios históricos. Contudo, não é difícil demonstrar que, em muitos casos, as revoluções e as guerras se expandem entre a linha de demarcação de duas épocas distintas de desenvolvimento econômico, como por exemplo a união de dois segmentos diferentes da curva capitalista. Analisar toda a história moderna desde este ponto de vista é realmente uma das tarefas mais gratificantes do materialismo dialético.

 

Não à toa ter sido este o fulcro central de um debate harmônico entre Trotsky e Kondratiev. Vejamos o que diz Trotsky a este respeito:

 

Continuando con el Tercer Congreso Mundial, el profesor Kondratiev se aproximó a este problema – como es usual, evadiendo dolorosamente la formulación de la cuestión como fuera adoptada por el Congreso mismo – intentando agregar al "ciclo menor”, cubriendo un período de diez años, el concepto de un "ciclo mayor”, abrazando aproximadamente cincuenta años. De acuerdo a esta construcción simétricamente estilizada, un ciclo económico mayor consiste de unos cinco ciclos menores, y además, la mitad de ellos tienen el carácter de ascendentes, mientras la otra mitad son de crisis, con todas las etapas necesarias de transición. La determinación estadística de los ciclos mayores compilada por Kondratiev deberá ser sujeta a una cuidadosa y nada crédula verificación, tanto respecto a los países individualmente como al mercado mundial como un todo. Es ahora imposible refutar por adelantado el intento del profesor Kondratiev a investigar las épocas rotuladas por él como ciclos mayores con el mismo “ritmo rígidamente legítimo” que es observable en los ciclos menores; esto es obviamente una falsa generalización de una analogía formal. La recurrencia periódica de ciclos menores esta condicionada por la dinámica interna de las fuerzas capitalistas, y se manifiesta por sí misma siempre y en todas partes una vez que el mercado ha surgido a la existencia.

 

Mas do que trata Kondratiev, afinal de Contas?5 No início dos anos 1920, mais especificamente em 1922, o economista russo Nicolai Kondratiev produziu um estudo sobre a regularidade do desenvolvimento da economia capitalista e definiu, com base em análises estatísticas, que a uma fase de expansão segue-se outra de contração. Essa teoria, chamada pelo autor de «teoria das ondas longas», sugeria que as crises no capitalismo seriam determinadas por períodos mais ou menos longos, com cerca de 50 anos de duração cada, e oriundas elas mesmas da dinâmica interna do próprio capitalismo. Uma visão mecânica economicista da realidade. Partindo de curvas empíricas, Kondratiev construiu curvas teóricas, que, a seu ver, mostravam tendências seculares. «Considerou ter encontrado dois ciclos longos e meio entre 1780 e 1920, anunciando que, quando escrevia, iniciava-se a fase descendente do terceiro ciclo. Propôs, em seguida, uma interpretação dessas curvas: «A base dos ciclos longos é o desgaste, a reposição e o incremento do fundo de bens de capital básicos, cuja produção exige investimentos enormes. (…) A reposição e o incremento desse fundo não é um processo contínuo. Realiza-se por saltos»6. Revela-se aí uma possível explicação sua para origem desses ciclos econômicos. Nada escapa a este modelo.

 

Seus argumentos repousaram na defesa de que a dinâmica das variações estava determinada por contradições econômicas endógenas: um movimento de rotação de capital com um ciclo longo, porém embasado, segundo o autor, no mesmo padrão causal para os ciclos curtos descoberto por Karl Marx, em O Capital.

 

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No entanto, Trotsky duvida de uma aproximação endógena ao tema do desenvolvimento capitalista na longa duração, e defende que os fluxos e refluxos da luta de classes incidem sobre as flutuações dos processos econômicos. Dessa forma, e visando a mostrar a inconstância do raciocínio de Kondratiev, sugere o uso infundado, por parte daquele, do termo «ciclos», na medida em que não se deve destacar a durabilidade e o caráter das crises capitalistas pela sua própria dinâmica interna, mas pelas condições externas que constituem a estrutura da evolução capitalista como um todo. Assim, citando o próprio Leon, a «aquisição para o capitalismo de novos países e continentes, o descobrimento de novos recursos naturais e, no despertar destes, fatos maiores de ordem ‘superestrutural’, tais como guerras e revoluções, determinam o caráter e a resituação das épocas ascendentes estancadas ou declinantes do desenvolvimento capitalista».

 

Para Trotsky, ainda dialogando com Nicolai, é preciso estabelecer a curva da evolução capitalista, incorporando a ela seus elementos periódicos (recorrentes) e não periódicos (tendências básicas). Após fixar a curva (por meio de técnicas da estatística econômica) poderá dividi-la em períodos dependentes do ângulo de ascenso ou descenso com respeito ao eixo de abscissas. Por este meio obter-se-á um quadro do desenvolvimento econômico, ou seja, a caracterização de «a verdadeira base de todos os acontecimentos que se investigam», para citar Engels.

 

Em outras palavras, enquanto Trotsky trata o tema de uma forma mais próxima ao materialismo histórico dialético, seu interlocutor se afasta. Isso porque logra sucesso ao analisar a dinâmica do capitalismo sem a necessidade de incorrer ao emprego da visão em termos de equilíbrio (mesmo que do tipo estático móvel), como é comum entre os economistas da tradição econômica burguesa. É certo que Kondratiev não foi um economista burguês, tampouco flertou com a teoria liberal, contudo sua teoria resvala – em decorrência muito do seu mecanicismo e economicismo, inúmeras vezes criticados por Engels e Marx – nestes pressupostos teóricos.

 

Isso quer dizer que, para Kondratiev, em sua teoria das «ondas longas», os ciclos seriam exatamente momentos de ruptura do equilíbrio. Essa visão particular das crises ocasionou algumas leituras inusitadas, como a feita por Schumpeter, economista austríaco muito em voga na primeira metade do século XX, que se utilizou desta teoria para entender as crises como oriundas do surgimento trazido pelo empreendedor capitalista. Todavia, se em Schumpeter tal perspectiva, «equilibrista», derivava de sua origem no pensamento econômico burguês, em Kondratiev a origem encontrava-se no economicismo peculiar do tipo de marxismo ao qual era adepto: a tradição econômica marxista dos mencheviques e do «marxismo legal» russo, que trabalhava numa perspectiva de equilíbrio do capitalismo e de visão mecânica das relações e fenômenos.

 

Na «curva» de Trotsky se conseguiria analisar os rumos dinâmicos do desenvolvimento capitalista de crises e ascensos, identificando essas modificações e as determinações extraeconômicas (políticas governamentais, lutas des classe, descobrimentos científicos e tecnológicos, conquistas de novos mercados, guerras, etc.), que forçam a entrada do capitalismo em suas várias e sucessivas fases, as viradas no rumo de seu desenvolvimento.

 

Esse debate, é claro, não passou incólume aos círculos marxistas. Ernest Mandel (Apud ARCARY, Valério)7, grande propagandista francês do marxismo, também entrou nesta querela. Vejamos o que diz a respeito do tema:

 

Lorsque le premier essai de Kondratieff sur «Les cycles longs de la conjoncture» parut en 1922, son auteur était probablement convaincu que sa description et ses hypothèses seraient l'objet d'un large accord, et il ne put cacher sa surprise devant la vive critique formulée par Trotsky contre son texte. Dans un article publié au cours de l'été 1923, Trotsky utilisa des données publiées par le Times de Londres pour démontrer que «la courbe du développement capitaliste» connaissait de temps à autre des tournants brusques, sous l'impact d'événements exogènes, tels que les révolutions, les guerres ou autres bouleversements politiques (la chronologie que proposait Trotsky en ce qui concerne les tournants dans le trend etait la suivante : 1781-1851, 1851-1873, 1873-1894, 1894-1913, 1913-... Elle correspond de très près aux périodisations avancées avant lui par d'autres auteurs(...) que Trotsky ne connaissait probablement pas. La convergence de si nombreux auteurs sur la chronologie, alors meme qu’ils travaillaient indépendamment les uns des autres, souligne les traits distinctifs des développements historiques du capitalisme au xix siècle. Cela revenait à critiquer Kondratieff pour sa tentative de présenter l'ensemble des facteurs politiques comme des facteurs endogènes, autrement dit d'ignorer l'autonomie des processus sociaux par rapport à la sphère économique.8

 

As preocupações de Trotsky na polêmica contra Kondratiev são, portanto, de dupla natureza: uma teórico-metodológica, e outra política. A primeira questão remete ao perigo de critérios econômicos unilaterais, que ignorem a centralidade dos processos político-sociais; a segunda recai no perigo das generalizações catastrofistas e que sustentavam o vaticínio de uma iminência da revolução, como se o capitalismo pudesse ter uma «morte natural», sem a interferência de agentes sociais para derrotá-lo.

 

Para Mendel, dentre outras coisas, era possível a conciliação entre as curvas de Trotsky e Kondratiev. Ele centrava sua análise de convergência entre ambas teorias a partir do desenvolvimento econômico, algo não muito diferente (em partes) do que protagonizou Schumpeter. Ora, para Trotsky as questões referentes ao desenvolvimento econômico sempre estiveram no centro de suas preocupações. Embora raramente as tenha organizado em artigos ou livros de maneira sistemática, suas conclusões partiram a partir desta premissa. E em nenhum momento o teórico e líder bolchevique esboçou conclusões semelhantes às de Kondratiev. Pelo contrário! A despeito de toda a polêmica gerada, inclusive nos círculos marxistas, há dois mecanismos analíticos, inclusive muito mais próximos do método científico usado por Trotsky, que nos ajudam a elucidar estas questões: a regulação econômica pela «lei do valor», desenvolvida por Preobrazhensky, e a direção do desenvolvimento, expressa por Engels.

 

No que concerne ao período em que foram escritas ambas as teses, vale ressaltar, primeiramente, que a de Kondratiev é posterior à de Trotsky. No entanto, a despeito da época, o que pesa entre as duas é de fato a perspectiva sobre a dinâmica das crises dentro do capitalismo. Se para aquele a crise pela qual passava o sistema era grave, porém momentânea, já que não era mais que uma fase de passagem para outro período de expansão do capitalismo, para o trotskysmo em geral era igualmente mais uma dentre outras tantas crises, porém sem caráter terminal. Isso porque era muito mais grave que as anteriores, já que vínhamos de uma guerra mundial que praticamente destruiu – ao menos naquele momento – seu «equilíbrio dinâmico».

Assim, sob essa perspectiva, essa desorganização demoraria anos para se encerrar. E não morreria de morte morrida; seria necessária uma grande derrota em escala global dos movimentos sociais e de um problemático rearranjo internacional, difícil naquele momento. Isso abriria espaço para organizar uma ofensiva revolucionária socialista mundial, abrindo a possibilidade de uma derrota definitiva do capitalismo. Em suma, enquanto para Kondratiev o capitalismo possuía uma dinâmica própria, independente inclusive de fatores a ela externos, para Trotsky e outros bolcheviques, a crise seria superada somente mediante a derrota da classe trabalhadora em âmbito mundial, o que veio de fato a ocorrer, isolando a ex-URSS e possibilitando - fruto da antiga sociedade - a ascensão de uma burocracia estatal, liderada por Stálin, que levaria a cabo o primeiro estado operário da história.

Segundo Almir Cezar Filho9, sobre este tema:

Marx e Engels, assim como Lênin e Trotsky, sempre mostraram a inter-relação causa-efeito-causa entre os fenômenos econômicos e políticos. Mas, diferentemente, Kondratiev, em sua teoria das “ondas longas”, apesar de partir acertadamente de Marx e Engels, de temas como os ciclos econômicos, a relação entre a luta de classes e os movimentos do capital, o recrudescimento dessa luta em momentos de crise, porém conclui considerando equivocadamente os fenômenos políticos como mero sintoma ou reflexo do ciclo econômico.

Mas, Marx não fala da fase de crise como um momento de perturbação do equilíbrio do capitalismo, mas como momentos da dinâmica desse sistema; componente obrigatório do processo temporal de acumulação.

Não há uma oposição entre equilíbrio e desequilíbrio, entre momentos sucessivos de equilíbrio e desequilíbrio. Mas há sim a idéia de dinâmica regular ou normal (na perspectiva de auto e retro-acumulação do capital), sendo que periodicamente adicionados por momentos de crise da acumulação e da necessidade de destruição do capital excedentário, que permitirá quando superados a própria retomada da trajetória de acumulação. Isto é, momentos que a dinâmica se torna irregular e/ou instável. Com esta abordagem, há um sentido lógico na dialética da acumulação ao ciclo, que é ignorado por Kondratiev.

Embora Kondratiev acerte na concepção de que o ciclo econômico respeita determinações puramente endógenas, respeitando características intrínsecas à própria acumulação do capital em larga escala, erra ao conceber tal abordagem ao desenvolvimento capitalista no longo prazo.

Partindo desta premissa, quando Trotsky cita as «determinações extraeconômicas» para falar da dinâmica do capitalismo no longo prazo, não viola, como seu «rival», a explicação marxista sobre o caráter endógeno do processo de acumulação do capital e sua relação direta com os ciclos de crise do capitalismo. Pelo contrário: com uma clareza dialética impressionante, nos explica, como poucos, que as flutuações cíclicas da dinâmica capitalista podem ter sua causa no próprio processo de acumulação. Ou seja, é também mais claro que Nicolai.

Quanto à dinâmica econômica de longo prazo, mais sujeita às delimitações estruturais, seria, portanto, mais pautada pela direção, enquanto que a dinâmica de curto prazo, conjuntural, seria pautada, em grande parte, pela regulação pela lei do valor, a grande responsável pela crise, já que é a lei fundamental do desenvolvimento capitalista, intrínseca à lei do mercado, segundo Preobrazhensky. A crise é resultado da própria operação da lei do valor, sendo ela, portanto, a força motriz que gera a interrupção do processo de acumulação, sempre impulsionada que é por fatores extraeconômicos, que aceleram, freiam ou truncam as direções do processo de desenvolvimento do sistema capitalista. Esta lei, por sinal, enriquece ainda mais a visão trotskysta das crise, deixando-a mais rica e robusta.

 

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Notas:

 

1 Artigo publicado pela primeira vez na revista Vestnik Sotsialisticheskoy Akademii (Revista da Academia Socialista), edição 4, em 1923. O referido texto em espanhol foi publicado em Naturaleza y dinámica del capitalismo y la economía de transición. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky, 1999). Acesso no dia 08/12/2018 em: http://revistaryr.org.ar/index.php/RyR/article/view/344.

2 TROTSKY, Leon. La curva del desarrollo capitalista.

3 Idem. Ibidem.

4 Idem. Ibidem.

5 Valério Arcary trata assim o tema: Embora ela esteja associada para sempre aos artigos que Kondratiev publicou em 1922, as primeiras apresentações da hipótese são anteriores. O que, em geral, é ignorado. Nas suas origens, a regularidade de ciclos longos atraiu o interesse tanto de militantes da Segunda internacional como Parvus, na verdade, Helphand, militante russo emigrado, pioneiro também na análise da contradição entre o amadurecimento do mercado mundial e a preservação exacerbada dos Estados nacionais, e que estabeleceu ainda uma estreita relação com Trotsky em torno das primeiras formulações da teoria da revolução permanente, e Van Gelderen que escreveu, em 1913, um único trabalho sobre as ondas longas que, por força das circunstâncias de um destino trágico que, de resto, foi o de sua geração – suicidou-se em 1940 quando da invasão nazi – só foi traduzido do holandês em 1996 e, portanto, sequer era do conhecimento de Kondratiev, ou dos outros participantes da debate russo de 1928 no Instituto da Conjuntura. Pareto escreveu, também, sobre as ondas longas. (…)

Ver: ARCARY, Valério: Será que existem as ondas longas de Kondratiev?. Disponível gratuitamente para download em: https://www.academia.edu/15551898/Ser%C3%A1_que_existem_as_ondas_longas_Kondratiev. Acesso em 09/12/2018.

 

Fonte: Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Schumpeter.

7 «Ernest Mandel et la pulsation de L’histoire», in ACHCAR, Gilbert. Le marxisme d’Ernest Mandel, Paris, PUF , 1999, p. 82/3,).

8 Idem. Quando o primeiro ensaio de Kondratieff sobre os «longos ciclos na economia» apareceu em 1922, seu autor estava provavelmente convencido de que sua descrição e suposições seriam objeto de um amplo acordo, e ele não pode esconder sua surpresa com a afiada crítica formulada por Trotsky contra seu texto. Em um artigo publicado no verão de 1923, Trotsky usou os dados publicados pelo Times de Londres para demonstrar que «a curva do desenvolvimento capitalista» conhecia, de tempos em tempos, viradas bruscas, sob o impacto de eventos exógenos, tais como revoluções, guerras ou outras perturbações políticas (a cronologia proposta Trotsky sobre pontos de viragem na tendência foi a seguinte: 1781-1851, 1851-1873, 1873-1894, 1894-1913, 1913 - ... Corresponde muito de perto às periodizações avançadas por outros autores (...) que Trotsky provavelmente não conhecia. A convergência de tantos autores sobre a cronologia, embora trabalhassem independentemente uns dos outros, salienta as características distintivas dos desenvolvimentos históricos do capitalismo no século XIX, que equivaliam a criticar Kondratiev por sua tentativa de apresentar todos os fatores políticos como fatores endógenos. Em outras palavras, ignorar a autonomia dos processos sociais em relação à esfera econômica.

9 CEZAR FILHO, Almir. Crise, ciclo e desenvolvimento no capitalismo. In: http://teoriaerevolucao.pstu.org.br/crise-ciclo-e-desenvolvimento-no-capitalismo/. Acesso em: 02/12/2018.

Ars Poetica

07.12.18

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não quero estragar o poema

com meus versos sujos e tortos

 

apodrecer nos versos

nascidos da morte

 

enquanto uma parte de mim perece

o mundo

              me engole

                                me engole

                                                  me engole

fundo sem fundo

 

                             como uma chama acesa

que num lampejo só

ilumina a cidade inteira.

 

 

L'avare, de Molière: une œuvre universelle

05.12.18

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Écrit en 1668 par le Français Jean-Baptiste Poquelin, connu sous le nom de Molière, la comédie L’Avare est l’une des œuvres qui se tournent vers le texte de Plaute, intitulé Aulularia, écrit approximativement en 2 av. Bien qu'il établisse une relation intertextuelle avec le travail du dramaturge latin, il le transforme, lui attribuant de nouvelles tonalités.

 

C’est parce que L’Avare ne tire pas ses influences seulement de Plaute, mais il melange principalement des sources italiennes et françaises – qui proviennent en grande partie du théâtre populaire du Moyen Age – et les mélange avec le modèle latin. De sorte que, si nous rompons un parallèle entre la pièce de Molière et Aulularia, nous remarquerons quelques différences par rapport au mélodramatique.

 

En Aulularia, par exemple, il y a un autre noyau dans la narratif qui pousse le sujet principal du récit, dans ce cas l’avarice. Ainsi, nous voyons que dans la comédie de Plaute il y a aussi une relation entre la fille du protagoniste Euclion et le jeune homme qui l’avait abusée, aussi bien que la possibilité du mariage entre elle et Eudoro (cet homme là); précisément l’existence de ces relations est ce qui fait caractériser le jeu latin non seulement comme une comédie de caractères mais aussi comme une comédie d’intrigue.

 

Déjà dans L’avare, bien que le caractère de miser soit également maintenu chez Harpagon, le protagoniste du complot, il y a dans cette avarice une contradiction non retrouvée en Aululária. Ainsi, si Euclião n’interfère pas directement avec la relation de sa fille avec son « consort », Harpagon est tout le contraire: en émettant le bonheur conjugal de ses enfants en empêchant leurs relations amoureuses, ils assument un certain proéminence, partageant l’espace de la scène avec la propre avarice.

 

Cette question peut être observée au tout début de l’œuvre, dans le deuxième discours de Cléante, fils d’Harpagon, qui afirme aimer quelqu’un, mais qui, selon son père, abandonne ses volontés :

 

Harpagon : Oui, j’aime. Mais avant que d’aller plus loin, je sais que je dépends d'un père, et que le nom de fils me soumet à ses volontés; que nous ne devons point engager notre foi, sans le consentement de ceux dont nous tenons le jour; que le Ciel les a faits les maîtres de nos vœux, et qu’il nous est enjoint de n’en disposer que par leur conduite; que n’étant prévenus d’aucune folle ardeur, ils sont en état de se tromper bien moins que nous, et de voir beaucoup mieux ce qui nous est propre ; qu’il en faut plutôt croire les lumières de leur prudence, que l’aveuglement de notre passion; et que l’emportement de la jeunesse nous entraine le plus souvent dans des précipices fâcheux. Je vous dis tout cela, ma sœur, afin que vous ne vous donniez pas la peine de me le dire : car enfin, mon amour ne veut rien écouter, et je vous prie de ne me point faire de remontrances.

 

Même avant, dans une conversation entre Valère et Élise, il lui conseille de ne pas avoir peur d’être jugée par la société; dit que l’avarice et l’austérité du père justifient sa conduite. En d’autres termes, au premier moment où l’adjectif « avarice » apparaît dans la pièce, il est directement lié aux valeurs chrétiennes présentes dans l’œuvre et à l’oppression du père à sa fille.

 

En Aulularia, ces relations n’acquièrent pas ce schéma. Au contraire, ces relations sont secondaires. En fait, il n’y a aucun dialogue (au moins ce qui reste du travail) entre Euclion et sa fille, ni la relation entre eux n’est pas décrit. Les indices qui nous laissent Plaute nous renvoient simplement aux coutumes à l’époque de l’Empire romain, et non à l’amour que l’on ressent pour elle. Il y a une déviation de caractère, mais cela n’interfère pas dans la vie de son héritière.

 

Le personnage de Molière aime profiter de l’avantage pécuniaire dans toutes ses relations personnelles, même celles avec les gens de son noyau familial. Ce fait résume les aspects importants de la constitution de l’avare: attire l’attention sur l’absence de toute forme de bons sentiments, met en évidence leur capacité à sortir de toute situation qui présente un risque de perdre de l’argent et met en évidence l’activité d’usuraire, trace attribué par Molière à la personnalité de l’avare, afin d’élaborer une critique sociale à la pratique des prêts dans des conditions abusives.

 

Quand nous regardons les deux premières scènes de L’Avare, par exemple, nous remarquons l’absence du protagoniste, bien que plusieurs allusions soient faites à Harpagon. Cependant, comme les caractéristiques décrites de son caractère, ces allusions accentuent le caractère oppressif du caractère associé evidemente à leur avarice. Si nous comprenons les caractéristiques d’un personnage comme ce qu’il fait, ce qu’il dit et qui parle de lui, on peut dire qu’à Harpagon l’emporte sur ce qu'il dit de lui, mettant en évidence des aspects qui ne sont pas comiques.

 

L’élément comique apparaîtra seulement dans la troisième scène, au cours de laquelle le personnage principal est également caractérisé par ce qu’il fait et ce qu’il dit. Il est dans ce contexte qui donne l’épisode des mains, dans lequel, de façon similaire à Plaute, Molière a mis son avide de demander aux autres mains de Flèche, le serviteur de son fils, après avoir exposé les deux mains. En plus de cet épisode, qui a une fonction claire de faire rire des actions de l'avide, il a aussi l'apparition de divers « a parts »,produites à la fois par l’avare et par le serviteur. Ces ressources, assez courantes dans toute la tradition dramatique occidentale, visent à établir une complicité entre le personnage et le public et contribuent également à provoquer le rire du public.

 

En attribuant ces traits à son avare, il est possible de voir que Molière favorise leur différenciation en ce qui concerne le caractère de Plaute. Euclion était après tout un homme pauvre, mais Harpagon ne partage pas ces mêmes traits ; au contraire, il se définit comme un homme riche qui exploite les hommes pauvres en leur imputant un intérêt élevé. Cela ne met pas en valeur le ridicule de son avarice, mais l’insensibilité et le caractère répréhensible de ses actions. Autant n’est pas le pauvre Harpagon que la phrase la plus fréquente dans sa bouche se réfère précisément à la richesse: « mon riche mâle ».

 

De ce point de vue, il n’est pas un sophisme d’affirmer que la caractérisation de l’avarice travaillée par Molière est influencée par les valeurs chrétiennes, dans la mesure où la richesse finit par dénigrer l’être humain. Harpagon n’est pas un homme pauvre comme Euclion parce que dans la vision chrétienne les pauvres sont décrits comme de bons hommes, qui seront récompensés. C’est un homme riche, et un homme riche « pollué » par un péché capital, qui finit par apporter de la souffrance à ceux avec qui il vit.

 

Pourtant, bien qu’il ne soit pas pauvre, l’avare de Molière prétend l’être. Et en ce sens, il est proche de celui de Plaute, puisque, comme ce dernier, il n’admet pas avoir de l’argent:

 

Cléante : Mon Dieu, mon père, vous n’avez pas lieu de vous plaindre e l’on sai que vous avez assez de bien.

Harpagon : Comment ! J’ai assez de bien ? Ceux qui le disent en ont menti. Il n’y a rien de plus faux, et ce sont des coquins qui font courir tous ces bruits-là.

 

Ainsi, l’avare Harpagon, comme Euclion, craint que le fait de savoir qu’il a de l'argent est un risque pour son existence même.

 

Mais si Euclion regrette d’avoir gardé l’or dans son pot depuis si longtemps, Harpagon ne le fait pas. Même si dans les deux cas ils ont eu leur argent volé. Dans le cas du protagoniste de Molière, grâce à sa stabilité financière: comme un usurier, de façon exponentielle multiplié leurs actifs par intérêt abusifs. Ne fait également aucun doute dans Harpagon entre l'amour et l'argent, même si, selon le protagoniste, Mariana n’était qu’un caprice. Après tout, comme l’a déclaré Flèche, « l’amour n'a pas été créé pour des gens comme lui ».

 

Il n’est pas étonnant qu’il n’y ait pas de regret dans Harpagon pour son avarice, comme dans Euclion, qui donne au gendre le trésor retrouvé, bien qu’il y ait aussi une « fin heureuse » dans les deux récits, mais de qualités différentes. Si pour Euclion le bonheur consiste précisément dans le fait qu’il s'est affranchi des liens de son or qui l’emprisonnait dans la marmite, le bonheur d’Harpagon consiste précisément dans le fait qu’il a recouvré son argent. Ainsi, si Euclião est victime de son avarice, on ne peut pas en dire la même chose de Harpagon.

 

À cet égard, nous pouvons dire que l’avariceest le personnage central dans la commédie de Plaute. Dans le cas de Molière, Harpagon est un avarre, mais ses fautes ne se limitent pas à l’avarice; sont associés à des déviations de leur caractère, typiques de leur classe sociale. Ainsi, à la différence du travail latin, la pièce de Molière est aussi une critique de la petite bourgeoisie de son temps, qui montrait déjà les contours de ce qui allait devenir des années plus tard.

Os problemas programáticos e teóricos dos conceitos de esquerda e direita: seus limites e suas contradições

02.12.18

No debate político há termos que de tão ordinariamente empregados parecem ter significado óbvio, sem necessidade de maior reflexão sobre eles. Esquerda é um deles. Entre os movimentos de oposição ao presidente Michel Temer, por exemplo, todos se identificam como de esquerda. A direita está no governo. Contudo, a aparente simplicidade oculta questões bastantes profundas como se verá a seguir.

 

Alguns significados

Os termos direita e esquerda, como se sabe, qualificaram originalmente os lugares ocupados no parlamento pelos setores conservadores (a direita) e os setores mais revolucionários da burguesia e pequena-burguesia (a esquerda) da França revolucionária do final do século XVIII.

Essa definição bastante genérica obviamente ganhou novos conteúdos dados pela luta de classes e chegou ao vocabulário atual com a carga das grandes experiências políticas do século XX e XXI. Isso está refletido nas análises dos fenômenos sociais do período.

Eric Hobsbawm, por exemplo, fala de uma esquerda no pós-Segunda Guerra que incluía até humanitários liberais e social-democratas moderados[1]. Também usa a variação esquerdista para qualificar certo tipo de golpes militares comuns na América Latina e no mundo islâmico. Na Europa haveria o exemplo de Portugal, em 1974[2], na Revolução dos Cravos.

Por sua vez, Jacob Gorender propõe uma definição genérica:

…esquerda [é] o conceito referencial de movimentos e ideias endereçados ao projeto de transformação social em benefício das classes oprimidas e exploradas. Os diferentes graus, caminhos e formas dessa transformação social pluralizam a esquerda e fazem dela um espectro de cores e matizes.[3]

Vindo de outra tradição, Michael Löwy classifica todos os governos latino-americanos de frente popular recentes de esquerda. De um lado, haveria os social-liberais, como o do PT no Brasil, e do outro, os antioligárquicos, antineoliberais e anti-imperialistas, como o venezuelano[4].

Por fim, lembremos que em Lênin e Trotsky o uso dos conceitos em análise foi feito de forma bastante bem delimitada. Direita, esquerda e centro somente eram usados no contexto dos debates políticos internos ao partido[5]. Ou pejorativamente, como no caso da variante esquerdismo. Em todo caso, diferentemente dos exemplos citados acima, não se tratava de qualificar as lutas entres duas forças sociais com projetos políticos antagônicos.

À exceção dos dirigentes bolcheviques, para os demais autores no espectro da esquerda a diferença fundamental são os meios para mudar dada realidade social, não os objetivos de longo prazo. Haveria esse denominador comum entre tradições políticas tão diversas quanto comunismo, liberais com preocupações sociais, anarquistas, setores nacionalistas das forças armadas, dentre outros.

O embate entre esquerda e direita não é a luta de proprietários contra os não-proprietários dos meios de produção, mas sim o enfrentamento entre campos de valores: de um lado, tudo o que é considerado progressista, democrático burguês mais ou menos radical, simpático às liberdades individuais e coletivas, é igualado à esquerda; tudo o que é conservador, retrógrado, determinado a manter a ordem, ligado à direita.

 

Unificar inimigos

Como se vê, a noção de esquerda se aproxima da de progresso. Sob esse ponto de vista bastante genérico, cabem programas que a princípio são conflitantes teórica e politicamente, mas que estariam unidos – e efetivamente se uniram em certas ocasiões na história – por algum projeto comum contra determinada ordem vigente. No Chile de Allende, por exemplo, o inimigo de Pinochet foi “a esquerda unida de socialistas, comunistas e outros progressistas – o que a tradição europeia (e aliás a chilena também) conhecia como ‘frente popular’ “[6].

Fica legitimada dessa maneira a unificação política entre classes irreconciliavelmente antagônicas. As frentes populares são por excelência os grandes exemplos históricos de unidade da esquerda com um projeto de poder em comum, no qual se unem direções de frações da classe trabalhadora e da burguesia.

No Brasil não foi diferente. Na verdade é um dos eixos mais persistentes entre as organizações dos trabalhadores e setores médios auto-identificados com a esquerda. O exemplo mais acabado disso é o Partido dos Trabalhadores e seu socialismo nunca muito bem definido[7]. Mas o PT e o reformismo brasileiro contemporâneo em geral não inovam nisso, sendo herdeiros de uma tradição que nasceu com o antigo PCB.

 

Campos, estratégia e luta de classes

Esquerda é, portanto, um campo político. Não necessariamente de classe, como vimos. Esse campismo é parte importante da história dos movimentos operários e dos trabalhadores.

Segundo Nahuel Moreno, se origina contemporaneamente na teoria menchevique da revolução russa. Na luta anti-czarista do proletariado, seria admitido o apoio do partido cadete, representante político da burguesia liberal. Mais do que isso: os primeiros deveriam se subordinar à direção dos segundos, a quem caberia cumprir as tarefas democráticas da transformação social naquele país.

Mas o campismo ganhou inúmeras roupagens posteriores, com Stálin, Mao Tsé-Tung, Michel Pablo e Pierre Lambert. Ou seja, esta concepção atravessou a fronteira do stalinismo, influenciando setores importantes do próprio trotskismo.

No lugar dos campos mencheviques, Moreno propõe adotar o aparato conceitual tradicional de luta entre burgueses e proletários. Retomando o ponto de vista leninista e trotskista nos debates sobre a Revolução Russa, fala de dois campos liderados por cada uma das classes fundamentais. “Um desses campos é o contra-revolucionário, integrado pelo czarismo, os latifundiários e toda a burguesia, incluídos os setores liberais ‘anticzaristas’. O outro, revolucionário, é integrado pela classe operária, os camponeses e todos os explorados”[8].

Vale notar que a construção deste campo revolucionário na Rússia foi descrito por Lênin não como a unidade entre grupos políticos, mas acima de tudo como responsável por unir os setores de classe citados por Moreno.

Essa relação, ao contrário do que se poderia supor, não foi pré-condição para a tomada do poder pelos bolcheviques. Em uma das descrições que faz deste processo, o líder bolchevique explica que na realidade o assalto ao Estado promovido pela classe operária é que teria sido condição para atrair o apoio massivo dos camponeses[9].

A razão é simples: somente com o aparato estatal na mão, o partido e a classe poderiam tomar medidas que provassem na prática aos demais explorados e oprimidos que valia a pena abandonar as ilusões em qualquer alternativa burguesa. É sob esse ponto de vista que Lênin explica, por exemplo, a medida de impacto do novo governo ao nacionalizar as terras.

 

Os limites do conceito

O problema teórico-prático começa quando, como se faz abusivamente no debate político brasileiro, esquerda e direita são explicitamente ou não tornados sinônimos de proletariado e burguesia. Isso é herança dos campismos de todo tipo, mas, no caso do Brasil, possivelmente a origem mais imediata sejam as elaborações do PCB sobre a revolução brasileira.

Em nossa opinião, utilizar o conceito de esquerda – por conseguinte de direita – é válido quando não se trata do conflito entre proletariado/trabalhador e burguesia. É possível, por exemplo, descrever a trajetória de determinado partido, afirmando que “foi à direita” ou “foi à esquerda”.

Contudo, aqui surge aquela que é a questão decisiva: o arco de alianças estratégicas definido pelo campo. Uma força política ir à esquerda não indica que se aproxima de compor o campo revolucionário, cuja missão histórica é expropriar a burguesia. Para tomar o mesmo exemplo: o petismo pode zigue-zaguear à vontade, alternando paralisia e luta, e isso não o fará necessariamente sair do campo contra-revolucionário.

Até uma figura que não causa dúvida em ninguém sobre qual classe representa, como Fernando Henrique Cardoso, pode “ir à esquerda” e defender a legalização da maconha, por exemplo. Haverá quem diga: “isso já é um exagero!” Mas permaneçamos plenamente no campo de possibilidades que o conceito oferece.

A classificação adequada, portanto, precisa relacionar interesses de classe com suas cristalizações em organizações políticas. Assim, o correto é tratá-las por marxistas, centristas ou reformistas. Em todos esses casos, poderemos ver oscilações “à esquerda” e “à direita”.

Por fim, esquerda como sinônimo combinado de valores progressistas e proletariado só faz sentido no âmbito de um tipo determinado histórica, teórica e politicamente de programa da revolução brasileira: o democrático-popular. A esmagadora maioria da esquerda faz uso desse referencial, caso das diversas correntes do PSOL e outros grupos menores. O caso mais emblemático é obviamente o PT.

Curioso é que um aspecto quase consensual entre vários analistas da esquerda da falência política petista é a conciliação de classes. Mas os mesmos que dizem isso, quando se propõe a unificar a esquerda forçosamente atualizam o projeto da conciliação sob a forma de novas frentes-populares em potencial ao retomarem os campos não só sem limites de classe, mas também sem fronteiras de estratégia.

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Referências

BIONDI, Pablo. O caso Lula e a mecânica do campismo. Em: http://armadacritica.blogspot.com.br/2016/09/o-caso-lula-e-mecanica-do-campismo_15.html. Consultado: 16/09/16.

GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos – o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

LÊNIN, V. I. As Eleições para a Assembleia Constituinte e a Ditadura do Proletariado. Dezembro de 1919. Obras Escolhidas, tomo 3, pp. 227-244.

LÖWY, M. Da tragédia à farsa: o golpe de 2016 no Brasil. In: Por que gritamos golpe? São Paulo: Boitempo, 2016.

MORENO, Nahuel. A Traição da OCI. S/e, s/a

SECCO, Lincoln. História do PT. São Paulo: Ateliê Editorial, 2015.

ZACARIAS, Carlos. Esquerda/direita: manual do usuário. Em: http://blogconvergencia.org/?p=4934. Consultado em: 26/08/2018.

Algumas Palavras sobre Marx*

02.12.18

Julgamos importante apresentar ao nosso leitor um breve percurso de um dos maiores revolucionários da história. Não faremos aqui um esboço biográfico (uma ótima biografia já foi escrita por Lênin), tampouco uma nota de “AllesGute zum Geburtstag” [feliz aniversário]. Este ano de 2018 marca o que vem se chamando de Marx 200, mas o que poucos dizem é que se trata de 200 anos do nascimento de um dirigente político revolucionário que dedicou a sua vida à construção de um partido internacional sobre controle dos trabalhadores, contra a burguesia e os reformistas.

Diante da grande crise do capitalismo, da brutal necessidade de realização da composição orgânica do capital, de desespero em relação a queda da taxa de lucros e a implacável austeridade ao capital variável, Karl Marx continua atual para o nosso tempo presente e revolucionário como sempre o foi.

Gostemos ou não deste revolucionário, ele é há mais de um século, a principal referência crítica à Economia Política e também à Economics, tão reivindicada pelos analistas financeiros das mais diversas matrizes teóricas.

Gostaria de chamar atenção para o projeto da modernidade burguesa. Este projeto não está escrito em apenas um conjunto de papéis, mas construído na formação de uma nova sociedade do decorrer dos séculos que marcam a passagem da sociedade feudal para a capitalista. A modernidade burguesa apresentou, emblematicamente, a partir da Revolução Francesa, um projeto universal, e para Marx esse projeto era revolucionário.

Entretanto esse caráter revolucionário deu lugar ao aspecto reacionário deste projeto, uma vez que a universalização fora abandonada no mundo prático, delegando a maioria da população um lugar cada vez mais medíocre e animal.

Neste percurso de retrocesso do projeto da modernidade, parte da burguesia esclarecida, educada no seio do projeto inicial da modernidade, se revoltará contra a própria classe e dará vida a uma das mais poderosas perspectivas críticas de toda sociedade burguesa.

Nossos leitores que estiverem ligados á um marxismo banhado pelo stalinismo tremerão todos os ossos e arrepiarão todos os pêlos agora: Marx representa parte desta elite ilustrada que não vê mais nenhuma possibilidade de realização do projeto da modernidade e desenvolverá ao lado de outros intelectuais uma trajetória antitética de sua própria classe de origem. Estamos dizendo que Marx é fruto do desenvolvimento da sociedade burguesa e que este se volta contra a própria burguesia que o educou. É um evento histórico que nenhum historiador honesto pode negar. E nisto não há nenhum problema moral e teórico na construção do pensamento marxiano. A burguesia ao negar o seu caráter revolucionário ao chegar ao poder, “empresta” de suas próprias fileiras uma das maiores potências da plataforma revolucionária do século XIX!

A superação de Marx, ou ainda, o momento emblemático da superação por Marx da perspectiva democrática liberal não se deu apenas com os estudos universitários. Estes foram fundamentais, mas é a partir das intervenções no mundo material (com pretensões transformadoras) é que fora se construindo o Marx que procuramos conhecer hoje. O que estamos apontando aqui é o papel da práxis na constituição do pensamento marxiano, nos anos de 1840, mas principalmente a partir da segunda metade desta data.

Marx, em 1842 trabalhava no jornal chamado Gazeta Renana onde se posiciona a favor dos camponeses da Renânia ao passo que a burguesia negociava com o governo de Frederico Guilherme IV. A ação no jornal diante do tempo presente exigia de Marx um tipo de tempo que o trabalho acadêmico não possui. Diante disso Marx se auto exila e resolve residir em Paris, sobretudo com a necessidade de se formar para encarar o mundo que se apresentava. Paris era o local onde algumas liberdades políticas estavam garantidas e Marx possuía o objetivo de fundar uma revista impressa, os Anais Franco-Alemães com fito de ser enviada a Prússia clandestinamente.

Em 1843 se casa com Jenny von Westphalen (o grande amor de sua vida) e parte para Paris. Com direito há algumas semanas por Kreuznach, durante esse tempo se dedica a leitura e critica da filosofia do direito de Hegel publicada anos antes em 1821. Redige o texto a partir dos seus estudos críticos sobre estado e sociedade civil em Hegel. Para Hegel o Estado fundava e organizava a sociedade civil que existia em caos. Marx não concordava com isso, mas também não tinha claro[1] como encarar essa esfinge.

Chega a Paris e vai morar em uma casa de exilados alemães. Em 1843 reconhece que algo chama sua atenção (os clubes operários, a tradição comunista, o mundo industrial mais avançado) e é nesse momento que nasce, ou melhor, vai se constituindo com mais clareza, o Marx que conhecemos hoje. Antes disso temos um jovem democrata radical, mas que agora se deparará com algo concreto que é a vanguarda do proletariado. Dedicando-se ao projeto da revista, vai conhecer Friedrich Engels. Em 1843-1844 Engels esta trabalhando na fábrica do pai em Manchester. O contato em Paris não foi dos melhores, pois Marx não simpatizara muito com o jovem Engels, filho de industrial. Entretanto, em 1844, Marx recebe um texto de Engels (Um breve esboço) e que o surpreende completamente. Texto que traz a tona suas preocupações levantadas em Kreuznach. Engels é que aponta para Marx o caminho da crítica! É aqui que Marx toma a importância da economia política e como entender a sociedade civil: era através da economia política burguesa.

No final de 1844, Engels retorna da Inglaterra, passando por Paris e estabelece sólida interlocução de idéias com Marx, iniciando ai uma colaboração intelectual que durou a vida toda e resultando em trabalhos como “A Sagrada Família”, “A Ideologia Alemã[2]” e “O Manifesto do Partido Comunista”. É também em Paris que Marx tem contato com o proletariado e a tradição que vem de François Babeuf à Louis Auguste Blanqui através das associações e o movimento operário de Paris. Temos aqui um salto na compreessão de Marx sobre o presente como história (1843-1844). Vincula-se ao movimento operário, digo, aos trabalhadores da tradição comunista e a tradição do movimento operário e é Marx que irá vincular estas duas tradições através de seus trabalhos durante a sua trajetória como investigador, militante e dirigente.

Em 1844- 1847 o problema ainda esta colocado para Marx, o das relações sociais em seu tempo presente. 1845 é expulso de Paris onde colaborava com jornais de exilados alemães. Vai para Bruxelas, agora como exilado e contacta a Liga dos Justos resultando dai um congresso da Liga[3] em 1847 na cidade de Londres, passando a se chamar Liga dos Comunistas e apresenta um programa ao mundo político em inicio de fevereiro de 1848, era o Manifesto do Partido Comunista, em nome de uma organização política (de um partido). Neste mesmo momento 1848 estoura a Primavera dos Povos.

Marx retorna a Paris, fica algumas semanas. Com o ascenso de 1848 o governo provisório cancela o ato de expulsão de Marx que volta para Renânia e cria um novo jornal “A Nova Gazeta Renana”. Desta vez, um periódico com objetivo de orientar a revolução alemã e que termina com a repressão absoluta e que o faz retornar para o exilio partido em 1849 novamente para Paris, rumo à Inglaterra. Em 1850, em Londres a desgraça se estabelece de vez para toda família Marx. Foram várias calúnias, principalmente a de que seria um agente prussiano nos textos de Vogt[4], a pauperização, a morte do filho, as doenças na família, a falta de dinheiro, e, contraditório a tudo isso, a sua maior aplicação aos estudos da economia política que deu vida a publicação ao texto central desta tese em 1859. Foi considerando esta totalidade que nos lançamos à algumas palavras sobre Karl Marx.

Hoje, em 2018, seria um absurdo, diante da crise, procurarmos entender apenas um Marx analista da sociedade capitalista. Marx era um revolucionário de primeira linha e nesta perspectiva uma das condições revolucionárias é entender o que se deseja revolucionar, sem se limitar a escrivaninha ou a biblioteca, é necessário ir às ruas, colocar as mãos na massa… Banhar-se na classe trabalhadora!

O papel do proletariado francês é de um pontapé radical na formação de Marx! Dirão os filisteus: “mas ele teve acesso apena a vanguarda do proletariado”. É verdade e o papel desta vanguarda proletária significou mais do que toda a biblioteca de Berlim na cabeça de Marx!

Sem jamais ignorar as bibliotecas, a classe trabalhadora tem um papel revolucionário na formação de Marx, principalmente quando se instala em Londres (isso também é extensivo a Engels).

Diferente de Marx, hoje, muitos de nós desejamos transformar a sociedade capitalista a partir dos departamentos universitários, da burocracia e até mesmo a partir de partidos radicalmente degenerados… Pois bem… isso não acontecerá desta maneira, não na perspectiva marxiana.

200 anos depois, as referências de Marx continuam sólidas e a composição orgânica do capital, absolutamente é a mesma! Se Marx está morto, sua contribuição revolucionária está mais viva do que nunca! Assim como a classe trabalhadora internacional!

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Referências:

[1] Atenção, “não tinha claro”, significa que neste momento de sua trajetória ainda lhe faltam elementos para a síntese e caracterização do tempo presente. Estes elementos estão em construção no pensamento marxiano e não é possível afirmar que em 1843 Marx tivesse todos os elementos necessários para a publicação de sua “Para a Crítica da Economia Política”, isso só ocorrerá em 1859. Assim, “não tinha claro” é muito diferente de “não sabia o que fazer”, uma leitura séria e atenta perceberá essa diferença com facilidade.

[2] Trabalhamos com a edição da Editorial Boitempo (MARX & ENGELS, 2007), consultando ainda as edições da Hucitec (MARX & ENGELS, 1986) e Presença de Portugal (MARX & ENGELS, 1974).

[3] Em 1844 a Liga procura Engels para uma interlocução, mas o próprio não se afina com os posicionamentos da mesma. Em 1845 Marx é contactado pela Liga, e o posicionamento não foi diferente ao de Engels. Uma organização clandestina não correspondia as aspirações de organização de Marx e Engels. Apenas depois, na antessala de 1847 é que a liga retoma a tentativa de interlocução e obtém sucesso com Engels, e somente posteriormente com Marx, estava dada a oxigenação necessária para esta organização e que assim mesmo não durará por muito tempo, dissolvendo-se tempos depois em 1852.

[4] Carl Vogtfoi representante da esquerda na Assembléia Nacional de Frankfurt entre 1848-49. Em 1859 defende publicamente a politica externa (neo)napoleônica o que lhe custará acusações de ser também um agente do bonapartismo (Napoleão III) e corruptor de intelectuais a favor dos interesses de Napoleão sobrinho. O jornal Das Volks, que recebia colaborações de Marx e Engels, divulga um panfleto anônimo contendo estas acusações e é claro de Vogt abrirá um processo. Por conta do anonimato o Das Volk teve que responder e Vogt acusa Marx como o conspirador e desferindo uma série de acusações que custou à Marx muito nervoso logo no momento em que escrevia a   sua primeira versão pública da Crítica em 1859. Marx soube esperar e após a publicação reunirá uma série de texto e não deixará a polemica com Vogt e a crítica a esse será avassaladora. Marx também processou Vogt, mas a justiça prussiana não aceitou, pois entendia que Vogt não tivera a intenção de ofender Marx (evidente posicionamento esperado do governo prussiano, tratando-se de Marx). Soubesse que Marx não era o autor do folheto anômimo, mas Karl Blind.
___________________________________________________________________________________* Artigo escrito por Jean Menezes e publicado originalmente no blog TEORIA E REVOLUÇÃO.

Capitalisme - la societé de consommation : farce ou réalité ?

02.12.18

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[Dans le capitalisme] L’argent est l’essence alienée du travail et de l’existence de l’homme ; l’essence le domine et il l’adore.

Karl Marx

 

Le facteur déterminant ultime de l’histoire est la production et la reproduction de la vie immédiate.

Friedrich Engels

 

Société de consommation. Complètement absent des analyses de Marx et Engels, ce concept, popularisé au XXème siècle, montra une longue portée, étant présent dans les lectures critiques des théoriciens de l’école de Francfort, en passant par Ana Arendt jusqu’à celles intelectuels contemporains comme Fredric Jamenson et Zygmunt Bauman, par exemple. En fait, rien ne semble plus cohérent que le capitalisme considéré comme une société de consommation, après tout, la marche imparable du capital vers une plus grande appréciation multiplie, chaque jour, la quantité et la diversité des merchandises avec lesquels nous affrontons en les insérant dans notre vie quotidienne comme une nécessité que nous ne pouvons plus éviter.

 

Malgré l’évidence (le truisme), il est utile de dire qu’une telle conception est très superficielle et, en tant que telle, fausse. Cette illusion découle du fait que les relations sociales effectives entre des individus de la forme sociale capitaliste sont voilées sous la forme brute et naturelle des marchandises et de la monnaie. Et pour cette raison, ce que nous voyons directement n’est que l’élargissement quantitatif et qualitatif des biens considérés en eux-mêmes, faisant abstraction du processus social qui les a fait émerger.

 

Dans son grand ouvrage, Le Capital, Karl Marx décrit la consommation comme la réalisation de la « valeur d’usage » des produits. Bien que la marchandise soit une valeur d’usage pour le simple fait de satisfaire une nécessité humaine quelconque, la réalisation de cette valeur d’usage est donnée dans sa consommation, qui est postérieure à son échange. C’est-à-dire la réalisation de la « valeur d’échange ». Cela signifie que si la valeur d’échange n’est pas réalisée, sa valeur d’utilisation ne sera pas réalisée également. En tant que marchandise, pour atteindre le domaine de la consommation, il est nécessaire d’abord de surmonter la sphère des échanges.

 

De ce point de vue, la consommation apparaît subordonnée à la sphère d’échange, même si la valeur d’usage est le support matériel de la valeur d’échange sous la forme de capital et le contenu matériel de la richesse dans chaque société. Ensuite, Marx analyse la formule de la circulation simple des produits: M-D-M (marchandise-argent-marchandise). Dans cette formule, l’argent apparaît comme un simple médiateur du processus et son objectif est la valeur d’usage. Dans d’autres termes, la forme M-D-M a pour objectif ultime de consommer et sa limite est la satisfaction des nécessités des consommateurs et leur valeur d’utilisation. Pour cette raison, ce formulaire est synthétisé par Marx sous la forme: vendre pour acheter. Mais la forme M-D-M n’est qu’un moment abstrait et superficiel des relations sociales capitalistes, visible dans la sphère des échanges de marchandises. Donc, Marx commence à analyser la forme M-D-M’, qui apporte la spécificité du processus d’échange de marchandises sous la forme de capital, considérée par Marx comme la formule générale du capital.

 

Dans la formule générale du capital, des transformations fondamentales peuvent être observées. La marchandise est achetée pour la revente et non plus pour satisfaire une nécessité individuele. L’argent ne fonctionne pas plus exclusivement comme monnaie, mais comme une forme universelle de richesse. Ce qui pousse la réalisation de ce circuit n’est pas la valeur d’utilisation, mais la valeur d’échange. De cette manière, évaluer la valeur à l’infini devient un objectif absolu. En résumé, la satisfaction des nécessités de consommation et la valeur d’usage sont transformées en simples moyens de ce mouvement insatiable d’auto-valorisation.

 

Il est évident que la valeur d’usage et la réalisation des besoins humains historiquement constitués par la consommation ne sont pas littéralement rejetées dans le mode de production capitaliste. Ce qui différencie cette forme sociale de toutes les précédentes, c’est que la production précéda de valeurs d’usage n’est plus subordonnée aux nécessités de l’homme, mais à la valorisation de la valeur. Dans toutes les relations sociales antérieures au capital, prédomine la production destinée à l’utilisation immédiate des produits du travail, à savoir que gouverne la production est la valeur d’usage et la prestation de services en nature. Pas sans raison, Marx vérifie qu’il ne se trouve jamais parmi les anciens une question sur la forme de propriété de la terre, etc., qui est la plus productive, laquelle d’entre elles crée la plus grande richesse, car la richesse (dans le sens d’accumulation) n’apparaît pas comme objectif de production.

 

Donc, la richesse se présente toujours sous son aspect matériel, dans sa configuration objective, dans ses déterminations concrètes, contrairement à la société bourgeoise dans laquelle elle est représentée dans la figure abstraite de la monnaie. Même l’exploitation et la maîtrise du travail d’autrui ont pour but la jouissance privée, la satisfaction des besoins de leurs propriétaires respectifs. Mais pas seulement : dans les formes sociales qui précéda le capital, face à la richesse considérée dans sa détermination matérielle, « l’homme se confronte comme sujet ».

 

Dans le capitalisme, l’homme qui travaille et le capitaliste lui-même n’apparaissent que comme l’un de ses moments. Le processus habituel d’accumulation du capital a lieu à l’insu des producteurs et le capital se manifeste avec la force d’un sujet automatique. En résumé, les biens de valeur ne sont plus liés les uns aux autres en tant que moyens de satisfaire les nécessités humaines. Au contraire ! Les hommes sont liés les uns aux autres pour répondre aux besoins de l’appréciation du capital et, pour cette raison, ne confrontent plus les produits matériels en tant que sujet, mais comme quelque chose d’extérieur, d’étrange, étranger à leur volonté.

 

Comme on peut le constater, à part les fausses apparences qui émergent de la sphère de la simple circulation des marchandises quand elle est autonome, toutes les formes sociales qui précéda le capital sont ce que l’on peut appeler la société de consommation. En revanche, rien de plus faux que de désigner le propre capital comme ce système connu par de la société de consommation. Nous sommes sur la société d’échange, de l’argent sous forme de richesse universelle et autonome régi par son accumulation de capital par l’extraction de la « plus-value ». En fait, dans aucun autre moment de l’histoire humaine, la consommation n’a été aussi valorisée qu’aujourd’hui.

 

La grande majorité des individus se contente d’acheter telle ou telle marchandise et le fétiche disparaît à partir de son acquisition. Aux États-Unis, par exemple, la patrie de la « consommation », il est courant que des maisons dont les garages sont bourrés de biens achetés et jamais consommés. Le rêve qui habite l’imaginaire de presque tout le monde sous cette forme sociale, capitalistes ou ouvrières, n’est pas la possession et l’usufruit de tout bien particulier, mais le montant en chiffres de son relevé bancaire.

 

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CONCEPTS :

 

Valeur d’échange : pour le marxisme, la valeur d’échange est mesurée par le temps de travail socialement nécessaire, c'est-à-dire le temps standard, pour produire une marchandise. Ainsi, il est possible de connaître le juste prix de chaque marchandise: par le temps de travail qui lui est appliquée ;

 

Valeur d’usage : est la qualité qui a un objet pour satisfaire une nécessité, déterminé par ses conditions naturelles ;

 

Plus-value : c’est la différence entre la valeur produite par le travail et le salaire versé au travailleur. C’est donc la base de l’exploitation du système capitaliste sur le marché du travail.

 

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P.S.: J’ai copié directement le concept « valeur d’usage » du site Wikipedia et l’ai traduit, comme j’ai pu. Déjà le concept « valeur d’échange », je l’ai copié partiellement sur le même site.