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Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Práxis

Os filósofos limitaram-se sempre a interpretar o mundo de diversas maneiras; porém, o que importa é modificá-lo.

Introduções ao papel do professor de língua portuguesa na sala de aula.

30.11.07

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Segundo Pierre Bordieu, na voz de Patrice Bonnewitz, a cultura escolar é a cultura da classe dominante. Em outros termos, o que pretende salientar o autor é que a escola legitima a cultura da classe burguesa como única e incontestável, relegando, ou melhor, desprezando as outras formas culturais e de experiências que não se encaixam nesse modelo burguês. Isso porque tanto a escolha das disciplinas, como a própria linguagem simbólica (regras, comportamentos, ambientes) adotada na escola é produto da relação de forças entre grupos sociais. Assim, segundo Bourdieu, não existe justificativa alguma em se estudar a literatura canonizada e não se estudar as outras formas de linguagem e representação artísticas mais características das classes populares, ou menos consumidas pelos representantes da classe dominante, como a história em quadrinhos, os grafites, o hip-hop, etc.

Como os filhos das classes superiores dispõem de um capital cultural herdado de suas famílias, é mais fácil para eles lograrem êxito no que concerne à assimilação e adaptação às exigências estipuladas pelo sistema escolar. Este capital cultural adquirido logo cedo por essas crianças “compõem um ambiente propício às aprendizagens e explicam o sucesso escolar dos filhos destas classes. Estas aquisições, constitutivas do habitus, produzirão seus efeitos ao longo do percurso escolar. Assim, não é surpreendente que os 'herdeiros', estudantes oriundos da burguesia, sejam super-representados nas universidades, em relação aos 'bolsistas', de origem social modesta”. (BONNEWITZ, 2003, p.115)

Dessa forma, a escola age como impositora cultural — guinada sempre pelo grupo dominante —, cujo principal objetivo é impor a visão de mundo burguesa, e não outra. Daí o fracasso escolar, na perspectiva de Pierre Bourdieu, da maioria das crianças filhas de operários e de membros de classes menos abastadas.

 

 

Para que a escola possa realizar a produção social, isto é, garantir a dominação dos dominantes, ela deve ser dotada de um sistema de representação fundado na negação dessa função. Tal é o papel da ideologia, definida numa acepção marxista como um conjunto de representações deformadas das relações sociais produzido por uma grupo ou uma classe e realizando uma legitimação de suas práticas. A ideologia apóia os sujeitos e tende a erigir suas práticas sociais em práticas legítimas, diante dos outros grupos ou classes e/ou classes. (BONNEWITZ, 2005, p.116)

 

 

Sob essa perspectiva, não é sofisma afirmar que a escola, longe de ser libertadora, é sim conservadora, pois atua em função da manutenção da ordem vigente e mantém a dominação dos dominantes sobre as classes populares.

Essa dominação, por outro lado, não é feita apenas pela escolha do currículo escolar — que requer dos alunos afastados do sistema um verdadeiro processo de desculturação, de negação do seu próprio modelo de enxergar o mundo —, mas também pelo sucateamento, no Brasil, do ensino público. Ou seja, não bastasse o fato de a escola se mostrar indiferente às diferenças de habitus, implementando uma “pedagogia da ausência de pedagogia”, os alunos do ensino público brasileiro ainda sofrem com o descaso do Estado brasileiro para com a educação pública. Assim, alunos do ensino público, no Brasil, sofrem, concomitantemente, duas exclusões: a de ter um programa curricular extremamente alheio ao seu modo de ver e pensar o mundo e a pouca estrutura que a escola pública brasileira oferece.

Ademais, tem o fato da “diferença da língua”. A língua burguesa comunica um certa ligação com a linguagem, uma certa tendência à abstração e ao intelectualismo. Já a língua popular, mais dinâmica e versátil que a primeira, “se manifesta inversamente, por uma tendência a majorar o caso particular, a desenvolver pouco as argumentações estruturadas, ao contrário das exigências escolares. A criação da cultura escolar aparece assim como um exemplo de violência simbólica”. (BONNEWITZ, 2005, p.120)

Todas essas questões se tornam evidentes e incontestáveis quando transplantadas para uma análise mais estrutural da educação brasileira, em especial a educação pública, ainda mais agravada pelo descaso do Estado. Não que a educação brasileira não seja toda ela excludente e repressora, impondo uma linguagem e um modo de ver o mundo eminentemente burgueses, pelo contrário. Acontece que nesse processo os alunos da educação pública sofrem ainda mais em decorrência do descaso e da falta de políticas sérias para a educação brasileira. A educação, ao invés de estratificar a sociedade, ou melhor, de reforçar a estratificação social vigente, deveria atuar como agente libertador e igualitário entre os diferentes membros sociais, não excluindo a matéria oficial, desde que importante para o crescimento intelectual do aluno, porém não relegando as outras formas culturais de ver e pensar o mundo, de forma a buscar equalizar o erudito e o popular. Eis a meta da educação: tornar o erudito popular e o popular erudito, mais ou menos como o fez Vinícius de Moraes, usando elementos populares e eruditos em sua poesia musicada, muito ouvida e reconhecida.

Tratando-se no ensino da língua portuguesa essa também é a meta. Contudo, ao se afirmar isso é claro que não está se excluindo o ensino da gramática normativa nas salas de aula; o que se pretende é passar esses conhecimentos de uma outra maneira. Primeiramente, no que concerne ao professor, este, ao meu ver, tem servir como uma espécie de elo entre o aluno e a matéria abordada em sala de aula, dando voz ao aluno e respeitando seu tempo e seu modo de ver e perceber o mundo a sua volta. Por outro lado, o assunto abordado não pode ser o mesmo que se dá hoje no ensino convencional, principalmente no ensino do português. Isso porque a gramática é uma espécie de convenção lingüística, um acordo estipulado entre intelectuais e estudiosos, que decidiram estipular o estudo da língua dessa maneira e não daquela outra. Ou seja, quando se convencionou a estrutura básica da gramática normativa do português, o fez se baseando em escritores já canonizados, como Luiz de Camões, Machado de Assis, Eça de Queiroz, dentre outros, excluindo-se completamente o português das ruas e desrespeitando, inclusive, as diferenças regionais.

Não obstante, como se viu, a gramática foi elaborada à luz de escritores de diferentes épocas, o que quer dizer que o português ali contido nunca existiu enquanto língua viva e orgânica de fato, ainda mais que entre Brasil e Portugal, por exemplo, existem significativas diferenças de elaboração lingüística nem sempre respeitadas pela gramática tradicional (normativa). Assim, como o português padronizado como língua oficial foi calcado tendo como base escritores canonizados, somente uma parcela pequena da população, já afeita às leituras de muitos deles, conseguem pleno êxito nas salas de aula, em se tratando de língua portuguesa. Os demais (a grande maioria) claudica e se sentem desestimulados em aprenderem algo que não condiz com sua realidade, com o seu modo de ver o mundo, e acabam se sentindo incapazes de dominar aqueles códigos, achando que não dominam a própria língua da qual são falantes nativos.

Isso porque a gramática tradicional praticamente despreza a língua falada. Fazendo uma simples metáfora é como se a língua fosse um rio corrente, que tivesse em constante mudança, em constante movimento, e a gramática uma poça de água, estagnada e velha. Quando o rio enche demais e transborda, renova parcialmente a água daquela poça, trazendo novas águas e elementos. Assim é a linguagem, e por isso que uma vez ou outra a gramática sofre algumas pequenas alterações. Porém, estas só vêm a acontecer quando as alterações lingüísticas extravasam os meios populares e chegam aos membros da classe dominante.

Cabe, assim, ao professor de língua portuguesa, assim que ciente dessas questões, buscar alternativas do ensino da língua que fujam dessas técnicas, sem, contudo, excluir o ensino do padrão, pois esse se faz importante no meio social. Uma técnica interessante, e que vem dando certa em algumas escolas, é trabalhar com produção textual em sala de aula, estimulando a criatividade e a leitura em sala de aula. Um dos caminhos hoje interessantes é buscar trabalhar com textos acessíveis não somente no meio impresso, mas também em outras fontes, como mídias (literatura falada), por exemplo.

É claro que para se trabalhar com esse tipo de material, supõe-se, no mínimo, que a escola tenha uma biblioteca razoavelmente estruturada. A técnica não é difícil e pode ser uma alternativa interessante para se passar o conhecimento formal, sem excluir, ou sem desprezar as experiências dos alunos. Cada um leria um livro a seu gosto, elaborando em seguida um pequeno resumo escrito do livro e trocando-o com outros colegas, assim como também os livros. Como forma de estímulo à leitura, podería-se tentar as mídias, que instigariam os alunos a buscar, quem sabe, outras fontes. Com a leitura continuada, os alunos, intrinsecamente, apreenderiam com mais facilidade as regras gramaticais, cabendo ao professor, apenas, a tarefa de indicá-los as diferenças entre a linguagem coloquial — viva, criativa e orgânica — e gramática tradicional.

Todavia, a técnica a ser usada é um mero detalhe nessa discussão, na medida em que o escopo deve recair na forma em como é explorado o conteúdo do ensino de língua portuguesa nas escolas brasileiras. Tratando-se a gramática como linguagem formal padrão, acessível aos poucos que têm acesso à cultura denominada erudita, cria-se uma espécie de guerra onde os que dominam o código lingüístico se enquadram mais facilmente nos mecanismos classistas sociais. Quem não domina esse sistema de códigos tem uma oportunidade menor de sucesso, na medida em que não dialoga diretamente com a classe dominante. Enquanto não se altera a o programa curricular no Brasil, o papel do professor de língua portuguesa é servir de ponte entre o aluno e a matéria oficial, sem contudo desculturalizá-lo. Não fazer isso é incorrer ao erro de sempre e perpetuar um preconceito não reconhecido: o preconceito lingüístico.

HÉLIO GASPARINI

08.11.07

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Sentado em seu leito, Hélio olha perdidamente para o seu reflexo projetado no espelho dependurado sob a parede. Aquela figura esquálida, de meia idade, calvo e de cabelos grisalhos parece distorcer-se levemente como se o seu reflexo aos poucos se esvaísse. Sinceramente não se perturbara mais com esta imagem, pois há alguns dias já percebera tamanha disparidade em seu reflexo. Provavelmente alguma falha no espelho provocara assustadora aberração, embora jamais ouvira alguém lhe relatar nada semelhante. Nem mesmo ele, sempre tão taciturno e pacato, acreditava ter nesse fenômeno algo de sobrenatural ou sobre-humano. Também pudera, tratar uma “simples” distorção de seu reflexo como algo extraordinário poderia significar que desvirtuados estavam seus sentidos, o que, de fato, não parecia corresponder com a verossimilhança dos fatos. Pelo contrário, sempre muito solícito, o discreto escriturário de um modesto escritório de advocacia já até pensara em adquirir um novo espelho para dar cabo a esse desagradável equívoco. Idéia que imediatamente teve que ser adiada não somente pelo simples fato de a lua já estar posicionada no ponto mais alto do céu, anunciando que já era passada a hora de seu descanso, mas principalmente pelo dispêndio que tal ato causaria ao seu modesto e suado ordenado.

 

 

 

 

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Uma fina e úmida névoa matinal de inverno encobre o ambiente, ofuscando levemente a paisagem. Embora a temperatura esteja amena e o sol ainda não tenha desbancado por completo no horizonte, o nosso Hélio retira de seu guarda-roupas seu velho paletó puído e cheirando a mofo. Um ato quase que frenético usar uma peça tão quente para um inverno com temperaturas relativamente elevadas e ausente do típico vento sul que costuma bater impiedoso, e com freqüência, na cidade de Florianópolis. Certa vez lera em um livro, perdido na imensidão turva de sua memória, que o vento é portador de importantes coisas. Não sabia ao certo o que isso significava, nem que proporções adquiria em sua vida tal afirmação, mas temia a possibilidade de não ter que conviver com as fortes rajadas, quase que diárias, de vento. Temeroso a qualquer meio de transporte marítimo, tinha a convicta certeza de que não sofreria do mal de Ulisses, 20 anos à deriva em alto-mar, mesmo porque nem à praia gostava de ir, embora residisse não muito distante de algumas. Esse seu curioso gosto pelos ventos alíseos — que, se não o traziam benefícios concretos, malefícios muito menos — poderia ser explicado talvez por essa dificuldade física que o ser-humano tem em se adaptar a novas experiências que fujam ao seu cotidiano fatídico.

 

De qualquer forma, o sol já despontara no horizonte. Como a semana é de férias, não se apressou em levantar-se da cama para ir trabalhar. Caso fosse dia de expediente, sua refeição matinal seria sorvida rapidamente, com nacos de pão sendo alternados com goles esparsos de café preto, seqüência que seria realizada quase que automaticamente por nosso protagonista. Nesse dia, não sabe bem o porquê, acordou pensando na sua imagem desfigurada no espelho, pensamento que repeliu de imediato. De fato, é de se estranhar tamanha atitude, na medida em que para Hélio Gasparini a sua imagem desfigurada, mesmo que vista de relance, pouco o incomodava. Sentiu um espasmo por perceber que a aterrorizante visão não o deixava em paz. O estado de letargia que se abateu sob Hélio foi breve porém intenso, e o fez indagar a respeito de todos esses constrangedores e perturbadores acontecimentos. Seria tudo isso verdade? Não estaria ele enganado, ou até mesmo iludido? Lembrara, nesse momento, que a primeira vez que percebera algo de diferente no seu reflexo foi numa tarde chuvosa, após beber praticamente uma garrafa inteira de vinho. Ademais, essa imagem não teria sido vista no espelho, e sim na beira da praia, enquanto caminhava após a estiagem da chuva. A sensação que teve, naquele momento, é que sua imagem borrava gradativamente até se tornar uma imperfeita mancha.

 

Não deu muita atenção ao ocorrido, mesmo porque sua visão, além de deturpada pelo efeito do álcool, ficou prejudicada pelo leve balancear das sinuosas ondas. Contudo, desse dia em diante todas as vezes em que se deparou com sua imagem no espelho teve essa mesma sensação, embora não tão claramente quanto naquela primeira vez na praia. Talvez por isso tenha se mantido, até nesse instante, relativamente despreocupado com esses fenômenos. Acontece que nessa manhã de julho, ensolarada e amena manhã de inverno, Hélio despertara pensando em todas essas coisas. Por um instante sentiu medo de se deparar com seu próprio semblante. Não fazia sentido, sabia bem disso, todavia preferia evitar sua própria imagem a ter que se deparar consigo mesmo, seu maior medo. Mesmo ciente de que nada havia de errado consigo, e de que ninguém, nenhum colega de bar sequer, tivesse notado pequena diferença que fosse em seu semblante, algo lhe dizia, nesse momento, que sua fisionomia estivesse de fato desfigurada. Sensação que tentou aplacar de imediato, mas que inevitavelmente não conseguiu.

 

A saída que encontrou nosso protagonista para afastar os maus pensamentos foi se dirigir, ainda cedo, para o bar Maria do Mar, próximo à orla da praia da Barra da Lagoa, não muito distante de sua casa. O aconchegante bar é propriedade de Dona Dorotéia, uma senhora gorda,com um olhar cândido e um sorriso acalentador e com fartos seios pendendo sob suas largas roupas. Viúva de um marinheiro gaúcho, mudou-se ainda jovem de Fortaleza, com o marido, para Florianópolis, de onde nunca mais veio a sair. Com o falecimento precoce do marido, lá pelos idos da década de 1960, montou, com o dinheiro recebido do governo, esse modesto, porém agradável e muito bem freqüentado bar. Como já afirmado, a manhã estava deveras agradável, propícia para um passeio à beira-mar, curtindo o calor gostoso das manhãs ensolaradas de inverno e relaxando com o balé das gaivotas que sobrevoam os barcos de pesca fundeados no canal da praia. Todavia, com o espírito um tanto nublado, Hélio refuta essa opção, dirigindo-se ao Maria do Mar.

 

— Quem é vivo sempre aparece, hein!, disse sorridente Dona Dorotéia. Fazia tempos que não te via por essas bandas.

 

Com um ar de poucas palavras e incomodado pela presença inoportuna da mulher, resignou-se a cumprimentá-la com um discreto sorriso, seguido de um leve aceno de cabeça, respondendo o que quase sempre respondia: “— ocupado, minha senhora. Muito ocupado”. Verdade é que Dorotéia sabia que não estava ocupado, mesmo porque bar é local para tudo quanto é tipo de gente, menos para gente ocupada. Até mesmo em seu estabelecimento, conhecido pelos moradores da região como local agradável e tranqüilo para se freqüentar, é incomum a visita repentina de alguém que vive ocupado. Seu bar é freqüentado por pescadores no final de tarde, por pessoas à procura de um momento de lazer, após estafante dia de trabalho, por pessoas em férias, ou até mesmo por bêbados e vadios, estes em horário de baixo movimento. Todavia, para Dorotéia todos eram desocupados à procura de lazer, ou melhor, à procura do que fazer. Não existia freguês seu que não tinha tempo para uma visita semanal que fosse, a não ser que esse freguês se chamasse Hélio Gasparini.

 

— Vais beber alguma coisa?, perguntou carinhosamente a mulher.

 

— Que tal uma cerveja bem gelada para relaxar...

 

Com a rapidez e a exatidão dos bons comerciantes, prontamente foi atendido. Assim que deu o primeiro gole, notou algo diferente no semblante das pessoas a sua volta. Teve a ligeira sensação de que estavam todos lhe observando, como se fosse algum estranho ou algum forasteiro. Contudo, quanto mais analisava, menos percebia que algo de estanho à natureza comum ao bar acontecia. Por um momento fortuito teve essa ligeira sensação: que todos o olhavam, como se não o conhecessem. De imediato lembrou-se daquele fato elementar de sua consciência, irritando-se. Também pudera, não é comum pessoas de seu círculo social o indagarem com olhares suspeitos e constrangedores. Não estava acostumado a isso, daí seu irritamento. Menos mal que parecia apenas uma impressão sua, alimentada pelo seu transtornado espírito, fato que, todavia, não contribuiu para amenizar a suspeita de que estava sendo vigiado.

 

Querendo aparentar tranqüilidade, mostrou-se indiferente e sereno. Nesse momento já tinha esvaziado meia garrafa de cerveja e já estava se preparando para encher mais um copo. Queria encerrar logo a garrafa para poder se esconder dos olhares inquisidores que o cercavam. Não entendia como não percebera ainda ninguém o vigiando, já que sentia estar sendo constantemente observado. Algo um tanto estranho para o nosso amigo Gasparini, já que se não estava cercado apenas de amigos, muito menos de gente estranha o estava. Agoniado e constrangido, e achando toda essa situação uma bobagem criada pela sua cabeça, dá um enorme gole de cerveja, sorvendo todo o líquido contido no copo de uma única vez. É nesse momento que, de relance, se depara com sua imagem projetada na mesa que estava sentado. Um detalhe que o narrador escamoteou do leitor diz respeito ao fato de as mesas do Bar Brasil serem todas redondas e com tampos de vidro levemente escurecidos e ornados com uma singela peça artística em consonância com a decoração ambiente.

 

Quem viu a expressão de desespero que se abateu por alguns segundos sob o rosto do nosso protagonista, não teve outra sensação que não a de medo, um medo ocasionado por uma respulsa erigida pelo estado de terror que assumiu seu semblante. Novamente aquela visão o perturbara; novamente sua desfigurada imagem se construía em seu pensamento, fazendo-o crer que era uma fera. Perplexo pelo que viu — é que desta vez parecia ainda mais desfigurado seu reflexo — bebeu rapidamente mais um copo de cerveja e se retirou sem pagar a conta e sem se despedir de Dorotéia. Atitude que para a proprietária do bar foi considerada normal, na medida em que conhecia bem a personalidade de Hélio. Não fora a primeira vez que se retirara sem falar com ninguém, nem mesmo com ela, colega de anos. De repente decorra daí sua relativa indiferença a essa atitude repentina. “— Vive com a macaca, esse velho rabugento!”, dizia, com um discreto sorriso nos lábios, a proprietária do bar.

 

Foi assim que deixou para trás o Maria do Mar, rumo a sua casa. Certamente muitas coisas pensou nesse trajeto, pois ficara realmente com uma “pulguinha atrás da orelha”. Se até então apenas ele tinha notado algo de estranho em si mesmo, agora a situação mudara, pois não foram poucos os olhares furtivos porém desconfiados. “— O que será que está acontecendo comigo? Por que diabos estou me transformando num sujeito sem expressão, quase sem identidade?”, perguntou a si mesmo. E é bem assim que se sentia: um sujeito sem expressão e identidade. Já no seu quarto, resolveu deitar-se na cama para descansar um pouco. A idéia era dormir para tentar esquecer esta tarde, porém sabia que não conseguiria descansar tão cedo, já que em sua cabeça ruminavam muitos pensamentos — um verdadeiro turbilhão de sentimentos. Como se pode perceber, a vida de Hélio Gasparini é monótona e, até certo ponto, solitária. Quando não está trabalhando, vai para casa, e quando não faz uma coisa nem outra passa no bar de Dorotéia. Uma vez ou outra que pratica uma caminhada na praia para espairecer os pensamentos e sentir o cheiro gostoso da maresia. Porém, após aquele acontecimento, nunca mais se aventurara a caminhar pelas areias brancas da praia. O receio que aquela inusitada situação o causara, fez com que Hélio se encastelasse ainda mais, se tornasse ainda mais introspectivo e retirado.

 

Atitude execrada por alguns a maneira como Hélio se escondia em si mesmo, mas atitude certamente tomada como uma medida preventiva e de auto-preservação de si mesmo. Ainda mais agora, após notar certa estranheza no semblante das pessoas que o analisavam. Sempre muito solícito, Hélio nunca fora uma pessoa exposta aos olhares furtivos, porém agora estava completamente recluso, à parte do mundo que o cerca. Até mesmo seus peculiares modos sofreram algumas mudanças, e seu gosto pelo passeio, sentindo o forte vento sul batendo no seu rosto (acompanhado de seu puído paletó), teve que ceder lugar à reclusão em sua casa. O sol que anteriormente resplandecera imponente nas paredes internas de seu quarto, agora se escondia fugidio por detrás das persianas — espécie de invólucro protetor que nutria em Hélio uma espécie de segurança materna.

 

Como nosso amigo Hélio não tinha ninguém para orar por ele, acabou contratando uma empregada, ou melhor, uma pessoa para limpar sua casa semanalmente. Mesmo que não fosse uma pessoa desatenciosa com os afazeres domésticos, serviços mais pesados de limpeza necessitavam de alguém mais experiente para o assunto. Como as férias ainda eram correntes, Hélio Gasparini permaneceu trancafiado em sua masmorra, relativamente despreocupado com o mundo a sua volta . Lamentava apenas as horas demoradas que prolongavam ainda mais seus dias e suas noites. Talvez por isso passava dois ou até três dias inteiros trancado em seu quarto, com as janelas fechadas e a porta semi-aberta, apenas digerindo esses acontecimentos. É como se a relativa escuridão que envolvia o seu quarto o acalmasse, fazendo-o esquecer, mesmo que por instantes, sua degradante situação. Até mesmo a mulher que ele contratara para fazer os serviços mais pesados da casa raramente o via. Mesmo porque não durou muito no ofício, a pobre mulher, já que, para Hélio, o fato de ter que conviver quase que diariamente com aquela figura desconhecida causava-lhe um certo desconforto e mal-estar.

 

E não era para menos, já que seu reflexo, cada vez mais borrado, desfigurava agora não somente seu rosto, mas seu corpo por inteiro, a ponto de se sentir, Hélio, como uma enorme e berrante mancha ambulante. Se outrora apenas o seu rosto era uma massa desfigurada, agora todo o seu corpo também o era. Braços, pernas, dedos, joelhos e pés, nada escapava. Tudo se tornara uma massa amorfa, como se todo o seu ser se contorcesse. Nesse momento, por algum motivo fortuito, Hélio Gasparini percebeu que não seria mais o mesmo, que sua identidade mudara para sempre e que o restante de sua vida passaria trancafiado em seu escuro quarto. Nunca mais sentiria o vento sul tocar o seu rosto, nem iria mais ao bar Maria do Mar — local para ele aprazível. Até mesmo as raras caminhadas na praia agora começavam a fazer falta, motivo que o levava a crer que toda a sua vida sumira, tornando-se uma página obscura num passado remoto.

 

Passados alguns meses de seu sumiço ninguém notara sua falta, a não ser Dorotéia, que, por vezes, ia a sua casa, à procura de notícias. Não encontrando nada, nem ninguém, voltava cabisbaixa para o bar, indagando-se qual seria o seu fim. Raramente se falava em Hélio, raramente se comentava a sua repentina ausência. Nem mesmo os colegas de trabalho, alguns afeitos a sua presença, sentiram a sua falta. Independente do que diziam ou deixavam de dizer acerca da pessoa inusitada que fora Hélio Gasparini, o certo é que sua figura ficara para sempre ofuscada na lembrança de todos que um dia tiveram contato com ele. Hélio Gasparini evaporara do mundo como uma fina névoa, não deixando saudades ou lembranças, ficando apenas, em seu lugar, uma figura amorfa, sem nome, títulos e identidade.

Há 90 anos atrás...

04.11.07

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"...As operações começaram às 2 horas do dia 25 de outubro com a ocupação pelos soldados, marinheiros e integrantes da Guarda Vermelha de instalações públicas, tais como os correios, os telégrafos, a central telefônica, a estação ferroviária, a central elétrica, o serviço de abastecimento de água, os armazéns de abastecimento de alimentos, os arsenais militares, o Banco do Estado, e também das grandes gráficas. Não houve luta e os primeiros prisioneiros se entregar resignadamente.

 

O apoio à insurreição, ao Soviete e aos bolcheviques era tão maciço que não houve necessidade de barricadas nem de intensos tiroteios nem de movimentação súbita de tropas. Tudo ocorreu sem que muito sangue jorrasse. Às 10 horas, embora ainda não se tivesse tomado a sede do governo provisório, o Palácio de Inverno, o Comitê Militar Revolucionário do Soviete de Petrogrado divulgou um boletim anunciando a vitória, a deposição do governo e a transferência do poder para o próprio Comitê. Às 12 horas o Pré-Parlamento foi evacuado e os seus membros se dispersaram sem resistência.

 

    Mas a rendição do Palácio de Inverno não tinha se consumado.

 

    O 2º Congresso dos Sovietes da Rússia, cuja data de início era prevista para o mesmo dia 25, foi instalado antes que o Palácio de Inverno fosse ocupado pelos insurretos. Evidentemente houve atraso no início dos trabalhos, uma vez que todos queriam saber sob que governo transcorreria a reunião. Na abertura contaram-se 650 delegados com direito a voto. Os bolcheviques, como se esperava, conquistaram a maioria: 390 votos. Mais tarde vieram mais delegados e o número de participantes chegou a 900. Mantiveram-se os bolcheviques em maioria: numa primeira votação, contaram-se 505 votos pela passagem do poder para os sovietes, contra 162; assim mesmo esses 162 votos dividiam-se entre votos dados pela "democracia" e outros tantos dados em favor do governo provisório, uns pretendendo que os cadetes seguissem no governo, outros contrários.

 

    Os conciliadores fizeram diversos discursos exigindo o fim da insurreição e assegurando que se fosse derrubado o governo, os bolcheviques não sustentariam no poder por mais do que alguns poucos dias ou que a Rússia ingressaria numa guerra civil. Como suas ameaças não surtissem o efeito imediato desejado, desanimaram e foram abandonando a Congresso dos Sovietes. Os delegados socialistas-revolucionários dividiram-se: os de esquerda permaneceram no Congresso, os outros se foram. Cerca de metade dos mencheviques - uns 70 delegados - também deixaram o Congresso.

 

    Às 2 horas e 10 minutos do dia 26 de outubro, quando a sessão de abertura do Congresso já invadia a madrugada, o governo provisório rendeu-se."

 

 

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O texto acima é de José Augusto Alvarenga, e pode ser lido aqui.