Elaborado à luz de imagens e conhecimentos pré-estabelecidos e estagnados no tempo, essa imagem que permeia o caipira paulista está atrelada a um modo de ver externo a sua cultura e corresponde aos interesses de quem detém o poder. A contingência dessa caracterização guarda máculas de um embate cultural e de classe entre o caboclo e o “senhor de terras”, detentor dos meios de produção. Essa imagem extravasa os liames sociais e vai “contaminar” os meios artísticos, como a literatura e o cinema. Assim, mesmo quando se buscou, em ambos os autores, imprimir a marca da verossimilhança entre o caipira real e o da ficção, acabou-se por fazer retumbar com mais força a marca negativa desse estereótipo, imprimindo-lhe, até certo ponto, uma identidade anômala. Por essas veredas é que trafega este trabalho.
Surgindo para a literatura em 1914, “o tal fazendeirinho”, como se auto-intitularia Lobato quatro anos mais tarde, chocou a opinião pública paulistana com a publicação de dois artigos no jornal O Estado de São Paulo. O primeiro, escrito em 30 novembro, foi intitulado de Velha Praga; e o segundo, 23 dias após, chamou-se Urupês. Isso porque o estreante escritor pintou um caipira eivado de qualidades negativas, completamente diferente daquele existente até então na literatura. Distorcendo a realidade, porém captando elementos desta, o escritor fazendeiro busca “retificar” a imagem do caipira, nesse momento estilizada ao extremo por uma literatura com laivos românticos, que via o caboclo como um tipo robusto, valente e audacioso, à moda dos heróis nacionalistas do indianismo alencariano. Daí também sua aversão ao “caipira oficial” das academias.
Em suma, Velha Praga e Urupês, mesmo que relativamente rebuscados, rompem com a tradição literária em voga não somente por inserirem um novo ponto de vista à imagem do caboclo, mas também por romperem com uma linguagem estética finissecular. Com períodos curtos e bem acabados e isento de metáforas batidas, ambos os textos, nesse sentido, antevêem o Modernismo de 1922, que romperia completamente com a estética passadista, mudando o caminho da Literatura brasileira.
Nessa fase, vemos um caipira acabado e localizado, alheio ao ambiente em que vive e sempre visto sob a ótica do dominante, daquele que detém o poder, que acaba pintando-o apenas superficialmente, não se colocando em seu lugar. Ou seja, o caipira é um títere. Sob essa perspectiva, a imagem desse primeiro caipira — visto aqui como um indolente, um preguiçoso e um adepto da “Lei do menor esforço” — é, até certo ponto, coerente, no que diz respeito à sua imagem externa, captada pelo olhar de fora. Daí a caracterização, segundo Antonio Candido, de que Lobato teria escrito o seu caipira de “maneira bela, injusta e caricatural”.
Quatro anos mais tarde, a meio caminho entre esses dois artigos e a Semana de Arte Moderna de 1922, surge, no cenário paulista, Jeca Tatu: a ressurreição, segunda identidade do caipira lobatiano. Revendo alguns de seus conceitos, Monteiro Lobato escreve esse texto como resposta aos artigos Velha Praga e Urupês. Isto é, embora em Jeca Tatu: a ressurreição o estereótipo ainda permaneça o mesmo que nos dois artigos que o precedeu, o foco muda, passando, o Jeca, a ser visto não mais como agente de sua “anemia social”, mas como vítima de políticas públicas de um Estado que o deixa à margem do desenvolvimento. Se em 1914 o caboclo é um parasita, agora é um “parasitado por verminoses”, passando de praga a vítima.
Dessa forma, e ao contrário do que buscariam os Modernistas quatro anos mais tarde, com a busca de um primitivismo como base de uma cultura iminentemente nacional, Monteiro vê no caipira justamente o inverso, ou seja, o vê como algo constitutivo de nossa fraqueza. Para o autor de Urupês, tudo que soe a primitivo tem que ser combatido para que o país, enfim, tome os rumos do crescimento das grandes nações.
Daí o estereótipo do caipira, em 1918, ser o mesmo que o de 1914; daí a anemia do caboclo, justificada dessa vez por verminoses que o depauperam. Daí também a intervenção da ciência, por meio da figura do médico, como forma de salvar o caboclo, dando-lhe oportunidade de crescer socialmente na vida, como veio a acontecer. Assim, o caipira, para se salvar, tinha que deixar de ser o que era para transformar-se em um sujeito moderno. A sua salvação estava justamente na sua extinção.
Decorrente de toda uma revisão identitária nacional, que visava a definir um caráter para a nação e para o povo que nela vive, Jeca Tatu: a ressurreição é uma tentativa de se pensar o país por ele próprio e não por idéias oriundas de fora. Somente através da exposição do nosso subdesenvolvimento se é possível desnudar e combater as mazelas da nação. É também, a exemplo dos artigos de 1914, uma forma de se fazer e pensar literatura às avessas do modelo oficial acadêmico.
Todavia, apesar de sua alteração ideológica, o texto Jeca Tatu: a ressurreiçãoJeca Tatuzinho, mudança ocorrida já em 1924, quando Monteiro Lobato usa o texto para uma campanha pública de saúde. O fato é que, somente após a distribuição gratuita dos almanaques ilustrados do laboratório Fontoura é que a figura estereotipada do caipira se difunde pelo país, tornando-se conhecida de todos os brasileiros. tornou-se conhecido somente após sua adaptação, em 1927, para o “Almanaque Biotônico Fontoura”, desta vez com o título de
A década de 1930 é permeada por mudanças não somente sociais, mas também literárias. Após a crise da bolsa de Nova Iorque, em 1929, os países latino-americanos sentem a necessidade de se modernizar e de se industrializar. Esse surto de industrialização tornou latente a necessidade de se redescobrir o Brasil pelo próprio Brasil. Essa mudança histórica trouxe vários reflexos para a literatura, tais como a mudança de foco exigida à nova geração Modernista, que passa a não privilegiar mais a ruptura estética em suas obras, mas a enfatizar questões ideológicas e sociais. É o momento de amadurecimento do Modernismo e do surgimento de escritores como Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e Graciliano Ramos, por exemplo.
Seguindo essa ótica, Monteiro Lobato lança, em 1947, um livreto de 22 páginas intitulado Zé Brasil. Com uma linguagem simples e didática e com uma acanhada edição de poucos exemplares, o texto causa o furor do governo e da igreja católica, que passam a coibir a sua distribuição. Isso porque Zé Brasil é um texto altamente combativo e de denúncia ao sistema de produção capitalista e ao latifúndio brasileiro.
Escrito com o intuito primeiro de combater o sectarismo político que jogou o PCB na ilegalidade, Zé Brasil se comunica diretamente com os trabalhadores urbanos e rurais, utilizando-se, contudo, somente da figura do trabalhador rural, ou melhor, do seu próprio caipira. É a última personificação de seu caipira, dessa vez mais consciente do seu lugar na relação de classes e do valor de sua força de trabalho. É ainda, a exemplo dos dois primeiros estereótipos, um títere, na medida em que é criado segundo a ótica do escritor combativo. Mas é, também, o revolucionário em potencial.
Mantendo em parte a ótica proposta por Jeca Tatu: a ressurreição, Lobato denuncia o latifúndio, associando-o, dessa vez, ao fator da desgraça do caipira. Se para o escritor de 1914 o caipira era tido como uma praga, alheio à própria terra, e em 1918 como um opilado pelo abandono e pelas doenças decorrentes deste, agora é a expropriação de suas terras, causadas pelo latifúndio, a principal desgraça do caboclo. É sob essa ótica que se lê a trilogia lobatiana.